Entrevista sobre Darma e raça, retirada da obra Radical Dharma: Talking Race, Love, and Liberation
Gandhi dizia que cada comunidade possui uma parcela da verdade, do Darma. Quando nos permitimos dar vazão a essas verdades adotando uma postura mais aberta, honesta, completa, íntegra – em outras palavras, quando nos tornamos radicais – percebemos a necessidade de um caminho do meio, afirma Rev. angel Kyodo williams. Ao olharmos com profundidade, vemos que nem o caminho da liberação pela pura contemplação interna, nem o caminho de uma liberação social externa prevalecem. Nesse entrecruzamento emerge um terceiro espaço, ainda-por-conhecer. É este o espaço do darma radical.
Radical Dharma: Talking Race, Love, and Liberation nasce como uma tentativa de criar uma ponte entre estas comunidades e percorrer esses espaços desconhecidos. Três professoras/es do Darma – Lama Rod Owens, Jasmine Syedullah e angel Kyodo williams – “lançam seus corpos” no terceiro espaço que nasce da bifurcação entre os caminhos interno e externo para a liberação, conversando com abertura e profundidade sobre questões fulcrais na nossa sociedade: raça e gênero.
Radical Dharma trata-se de uma compilação de entrevistas e artigos que buscam problematizar questões sociais à luz do Darma. De acordo com angel Kyodo williams, para que a transformação enquanto transcendência da forma seja possível, é necessário que observemos o construto no qual presentemente nos encontramos, ao invés de simplesmente tentar rechaçá-lo. É preciso que contemplemos o massivo emaranhado da supremacia branca, que atravessa e molda nossa forma de pensar, sentir, sonhar e agir em relação a nós mesmas/os e a(o)s outros com base na percepção do seu lugar na ordem social. A liberação a nível individual e coletivo é também a liberação das estruturas de pensamento que nos aprisionam em relações hierárquicas, dominadoras, opressoras. Desse modo, a luta dos movimentos negros é também fundamental às pessoas não-negras, na medida em que é somente através de uma verdadeira justiça racial que a humanidade pode se libertar das suas correntes de opressão: a liberação da/o oprimida/o, portanto, é também a liberação da/o opressor(a).
A grande fraude da construção da branquitude é que ela coagiu e convenceu a maioria dos brancos a não mais enxergar sua própria opressão: das mulheres pelos homens, de LGBTs por heterossexuais, de filhos por pais heterossexuais que arbitram sobre sua masculinidade, da liberdade individual da alma pelos valores capitalistas de aquisição individual. Os brancos foram ludibriados para trocar sua humanidade por seu privilégio. A mentira mais insidiosa é a de que o racismo é um problema dos Negros ou das pessoas não brancas. Brancos, acordem: não são só as pessoas oprimidas que são cúmplices na opressão. O problema também é seu.
—Rev. angel Kyodo williams, Sensei, Dezembro de 2014 (Publicação no Facebook)
HOMEM NA PLATEIA: Já vi outras pessoas que vêm nas terça-feiras à noite e que são pessoas não brancas.
MULHER NA PLATEIA: Estou falando de pessoas que vêm com o compromisso de construir a comunidade, não das que vêm só uma vez ou outra.
MULHER NA PLATEIA: Tem pessoas não brancas que vêm nas terças à noite, mas elas não voltam regularmente. Elas não se sentem parte deste sistema.
Muitas vezes, as pessoas não brancas não veem ninguém na entrada, não veem ninguém parecido com elas sentado lá em cima no tapete.
[Como pessoa não branca], as pessoas me procuram e me fazem perguntas sobre pequenas coisas que elas não se atreveriam a perguntar pra uma pessoa branca.
REV. ANGEL: Bom, isso é por pura sobrevivência. Nós fomos adaptados para sobreviver à experiência de uma sociedade racista. Essas coisas sutis que podem não parecer grande coisa, do tipo “eu sou morena, então vou encontrar pessoas parecidas comigo”, são na verdade técnicas de sobrevivência que as pessoas não brancas aprendem e precisam usar todos os dias. Como seres humanos, olhamos ao redor e nos perguntamos: “O que funciona? O que é seguro?”, porque muitos espaços dos brancos se revelam pouco seguros.
Acho que isso vai mudar, já que as comunidades estão tendo diálogos mais conscientes sobre as realidades que as pessoas enfrentam e vivenciam, e não só tentando mudar a decoração da sala, porque isso não é suficiente.
MULHER NA PLATEIA: Bom, isso é o que eu espero que aconteça esta noite. Espero que as pessoas não brancas venham e se inspirem a ter algumas ideias que elas possam compartilhar com a comunidade.
JASMINE: Como podemos lidar com a realidade de raça especificamente nesta sala — uma sala predominantemente branca — enquanto falamos sobre raça neste país? Qual é a tarefa dos brancos? Qual é a tarefa das pessoas não brancas? Qual é a nossa tarefa juntos? Como podemos chegar a um lugar onde possamos reconhecer nosso papel na mudança que buscamos, com amor, mas também com clareza?
REV. ANGEL: Acho que a história deste país não foi contada de forma honesta, e muitas pessoas de todas as raças desconhecem a verdadeira história. É por isso que nós temos muitas mazelas neste país, e uma delas é a supremacia branca, além da ignorância sobre as vantagens de ser branco nos Estados Unidos.
No caso de muitas doenças, se não mexermos na ferida e deixarmos o pus sair, ela não vai cicatrizar. Então estou feliz de fazer parte desta conversa com um [grupo] misto de pessoas, porque acho que muitos não entendem que isso é uma mazela. Algumas pessoas ainda dizem que não enxergam a cor, o que não é realista. Sendo uma mulher Negra nos Estados Unidos, tenho consciência de que não posso me expressar com a mesma liberdade que alguém que tem uma aparência diferente ou que não seja do mesmo sexo que eu.
A tradição Zen não tem uma estrutura centralizada, mas tem estruturas de poder. As estruturas de poder são um grande desafio para as pessoas marginalizadas. É claro que, ao se envolver profundamente, talvez você descubra que existem maneiras de reorganizar a sua mente em relação a esse poder, mas você tem que estar dentro, e é por isso que vemos a experiência de pessoas chegando e indo embora. Eu tenho a vantagem de ser convidada para diferentes comunidades. E todas as comunidades dominadas por brancos têm permutações ligeiramente diferentes da mesma coisa.
O Zen é formado por professores independentes. Quando os professores se tornam professores, podem fazer o que quiserem, e esse é o único motivo de eu poder existir e ser minimamente útil. Por sinal, faz parte do Zen a ideia de que, agora que eu sou professora, realmente não podem vir me falar nada.
Por outro lado, em estruturas não descentralizadas, os professores não brancos correm riscos com sua participação e existência. É sutil, mas eles não têm tanta voz. Não é porque eles não pensem a mesma coisa que eu. Tenho as mesmas conversas com eles, mas as estruturas que existem e a forma como o poder funciona enfraquece suas vozes. Isso cria um efeito cascata. As pessoas não brancas que vêm dizem: “Ok, isso é ótimo. Mas toda vez que eu olho lá para cima, mais uma vez, estão me dizendo que as únicas pessoas que podem me falar algo sobre mim mesma e me ajudar a aprender e a entender a mim mesma não têm nenhuma experiência condicionada compartilhada comigo”.
O ser humano é comunicação, e há uma comunicação nas próprias estruturas de poder. Então quem está sentado aqui diz alguma coisa. A minha vida toda, nunca era eu que deveria estar sentada aqui. Isso significa que eu tive que, como se diz, resistir – e aguentar muita coisa. Com as mudanças demográficas e conforme as pessoas estão se empoderando mais em suas próprias vidas e encontrando poder em suas próprias vidas, elas estão cada vez menos dispostas a aguentar certas coisas.
Então, conforme mais pessoas estão prontas e abertas a diferentes ensinamentos fora das religiões tradicionais e convencionais com as quais cresceram, ao mesmo tempo elas estão politizadas de tal forma que não estão dispostas a se sujeitar ao que muitos de nós nos sujeitamos por muito tempo. Elas estão cansadas.
JASMINE: Na sala de aula, sempre tenho que lembrar aos alunos que o racismo está no ar que respiramos. Não tem como não estar envolvido. Todos nós somos afetados. Reconhecer isso é parte do que podemos fazer para combatê-lo.
REV. ANGEL: Eu tenho a teoria de que o racismo é necessário para manter o capitalismo em pé. A forma de capitalismo que nós temos – e o que me enfurece não é o comércio, a troca, a permuta e tudo o mais, mas o capitalismo cancerígeno, o hipercapitalismo, o capitalismo parasitário – precisa do racismo para se manter em pé. Precisa de uma divisão entre as pessoas, para que possa haver as pessoas que consomem, as pessoas que produzem o que é consumido e, sendo bem direta, as pessoas que são consumidas.
Não só o racismo está presente na nossa sociedade em geral, mas, em muitos aspectos, ele é na verdade o formato no qual estamos apresentando nossas oferendas espirituais. Esse canal, esse veículo, essa lente de competição numa sanga Starbucks significa, em muitos aspectos, que nós também absorvemos as mesmas maneiras de manter isso funcionando e de garantir que possamos competir bem. Não podemos competir bem se tivermos uma sanga branca de classe média-alta e ela começar a deixar entrar Negros e pessoas queer. Não competiremos tão bem no nível de conforto quanto aquela sanga na mesma quadra que parece saudável e branca.
MULHER NA PLATEIA: Eu cresci em Utah num subúrbio branco, rodeada principalmente por brancos. E esse é o grupo social no qual eu sempre me senti mais à vontade, porque era o que eu conhecia. Eu vivi em vários lugares do país e me relacionei com as pessoas de diferentes maneiras, e é óbvio que são feitas suposições com base na minha aparência. Sempre existiu esse sentimento de querer me encaixar, em um grupo ou outro.
Nesse processo, há momentos em que você aprende o que não dizer e como não ser. Parece que todos esses momentos começam a se empilhar sobre você como uma roupa sólida de chumbo. E você carrega isso com você. E o processo de tirar essa roupa tão pesada de chumbo parece um esforço enorme. E também existe um certo conforto nessa roupa, porque você aprendeu a usá-la.
Em geral esses momentos são muito férteis. Existe uma percepção de “Como eu deveria ser?”. E a roupa está ali, então às vezes é só continuar usando. Estou muito curiosa em relação a esse espaço, em que talvez exista uma oportunidade de agir ou dizer ou expressar o que quer que esteja fazendo sentido para você.
REV. ANGEL: Você disse em algum momento: “Com base na minha aparência”. Você poderia dizer o que isso significa pra você?
MULHER NA PLATEIA: Claro. Sou uma Negra de pele clara. E sempre me identifiquei como Negra, mesmo sendo metade branca. Acho que pode haver situações desagradáveis em que as pessoas me procuram e me tratam como uma irmã, sabe? E eu realmente não sei como estar nesse espaço. Estou tentando me acostumar com isso, mas não parece algo genuíno porque não é a minha experiência. Também acontece de eu andar nas comunidades brancas e as pessoas quererem ter discussões sobre raça. Eu quero estar lá e ouvir sobre isso, mas é muito desconfortável e estranho.
REV. ANGEL: Obrigada por compartilhar isso. Acho que é muito importante nós reconhecermos como as nossas realidades são complexas, que não partilhamos de uma Negritude monolítica, e que não existe uma branquitude monolítica, na verdade. Isso faz parte do que a racialização da nossa sociedade fez, criando esse lugar em que não podemos ser o que somos de fato. Então é difícil ser simplesmente quem você é porque existe uma série de suposições que são impostas sobre esse corpo e essa cor.
Esse é um desafio considerável, para as pessoas não brancas e para as brancas. Que ridículo! Tipo, você só é branca. Tipo, você não vem de um lugar específico. Isso é meio louco, não é? As pessoas foram divorciadas de sua herança e complexidade e de uma conexão real com o que faz você ser quem é.
Acho que é aí que reside a liberação, nesses momentos férteis em que você tem o hábito, mas, se conseguir enxergar além dele, você tem essa verdade. Se não a enxergar, você não vai conseguir trabalhar com aquilo que não vê. Mas como você está reconhecendo a fecundidade do momento, isso significa que existe uma oportunidade de simplesmente retirar uma pequena camada daquela roupa de chumbo. Qual vai ser a sensação é algo que só você vai saber quando de fato remover essa camada e perceber como é estar um pouco mais aliviada do peso de carregar as projeções das outras pessoas sobre você, em vez de simplesmente ser você mesma, tanto para os Negros que querem que você seja a irmã deles quanto para os brancos que querem que você tenha todas as respostas sobre raça.
LAMA ROD: Com certeza. Nascemos numa situação que não escolhemos, e tem uma condição que vem junto com isso. A consciência é a ferramenta que estamos usando para olhar para isso e questionar. Então o problema não é só meu. Eu tenho um trabalho a fazer, mas todos nós temos um trabalho a fazer. O meu trabalho tem sido olhar de que maneiras eu sinto que nunca fui bom o suficiente, olhar de que maneiras eu sinto que não mereço alguma coisa ou [de que maneiras] não tem problema que certas coisas aconteçam comigo. Para outras pessoas, talvez, o trabalho seja sentir como se elas realmente tivessem o direito de fazer certas coisas, de dizer certas coisas.
REV. ANGEL: Você poderia ser específico quando diz “outras pessoas”?
LAMA ROD: Isso é generalizado. Então, me refiro a pessoas com certo poder. Estamos falando de brancos que nascem nesse tipo de condicionamento em que [a branquitude deles é] tão inconsciente que, em muitos casos, eles acham que têm o direito de dizer ou fazer certas coisas, de pensar de certas maneiras sem nunca pensar que isso é extremamente errado. Nós vemos a mesma coisa em relação ao sexo, à sexualidade, às classes. E, para muitos de nós, existem limites que são ultrapassados constantemente, e isso provoca feridas e traumas significativos.
No outro extremo, para os brancos, ainda tem muita cura que precisa acontecer. É um tipo de cura diferente. Acho que são necessários espaços diferentes para que isso aconteça, e não é papel do oprimido fazer esse trabalho em nome do opressor. Podemos espelhar certos aspectos, mas o trabalho tem que ser feito por cada pessoa dentro de seus grupos. Voltando a falar de raça – existe um trauma significativo, induzido racialmente, para o qual todos nós estamos lutando para dar voz.
REV. ANGEL: Mas em geral eu ouço que as pessoas não brancas têm esse trauma.
LAMA ROD: Eu disse que todos nós temos esse trauma. Temos tipos de trauma diferentes, mas ainda é um trauma.
MULHER NA PLATEIA: Quero dizer que estou profundamente agradecida por esta conversa e pelo seu ensinamento. Como eu posso focar na justiça racial e ainda enfrentar outras formas de opressão, algumas das quais se relacionam em grande medida com a supremacia branca, enquanto outras não? Mais especificamente, como uma pessoa com deficiência que também enfrenta discriminação com base na expressão de gênero e por ser queer, isso é muito difícil pra mim. Como posso me concentrar na raça ao combater a supremacia branca e ainda ser capaz de manter uma prática de amor que se estenda a mim mesma e às comunidades que vivenciam ou não o alcance da supremacia branca e vivenciam um intenso capacitismo?
PESSOA DOIS-ESPÍRITOS[1] NA PLATEIA: Eu gostaria de responder. Acabei de concluir um treinamento de seis meses chamado “Destreinando o racismo liberal branco”, oferecido aqui em Berkeley. Ele acontece em três fases, cada uma com seis meses de duração.
Uma pessoa com a minha aparência — 64 anos, dois-espíritos, euro-estadunidense — geralmente é considerada séria e confiável à primeira vista. Eu realmente comecei a notar bem de perto todas as pequenas microagressões contra as pessoas não brancas que acontecem através da fala, do comportamento, da exclusão, do convívio comum da vida social, então eu gosto da ideia de enfrentá-las nesse momento. É aí que a mudança começa a acontecer, e não no plano geral de querer fazer alguma coisa.
Quando nós entoamos o discurso do Dr. King[2] esta noite, ouvi ecos do que o Papa Francisco nos aconselhou: mudar o comportamento humano e promover a transformação num nível individual.
REV. ANGEL: Eu sinto que os brancos, na verdade, ao contrário do que estamos dizendo, também não conseguem ser eles mesmos completamente. E sinto que os homens, na verdade, não conseguem ser eles mesmos completamente quando estão tentando lidar com coisas do tipo: “Como eu lido com o fato de que agora tem uma pessoa marginalizada na sala, e nós não tivemos nenhuma conversa sobre isso? Eu não encarei o meu sofrimento em relação a isso, e eu simplesmente não sei o que fazer. Então eu preciso invisibilizar você porque isso me permite voltar a ser visível, que é basicamente o que a branquitude e o patriarcado fazem com as pessoas. Isso permite que as pessoas fiquem invisíveis”.
LAMA ROD: Estando presentes.
REV. ANGEL: Gostaria de perguntar a quem está na plateia: quantas pessoas sentem que têm a oportunidade de estar em espaços em que é realmente tranquilo falar sobre o sofrimento induzido e causado pelos brancos? São bem poucas. Quantas pessoas acham que é importante falar sobre isso?
MULHER NA PLATEIA: Pode repetir a pergunta?
REV. ANGEL: Sim. A branquitude faz algumas coisas nos Estados Unidos, certo? Existem muitas dinâmicas que surgem como resultado do modo como isso foi construído neste país e do modo como isso continua acontecendo diariamente depois de 450 anos. E isso que acontece gera sofrimento. É causa de sofrimento, que inclui o sofrimento das pessoas em relação umas com as outras. Sofrimento que elas mesmas provocam; sofrimento do qual elas são alvo.
O ser humano que carrega uma identidade racializada pela natureza da sociedade em que estamos — existe uma pessoa ali que é anterior a todas essas identidades. E ainda assim sempre existe algo que está operando fora daquilo. É por isso que eu digo que isso é gerado pela branquitude, assim como eu tenho formas de vivenciar o sofrimento que foi gerado por eu ser vista como mulher, por ser vista como uma pessoa não branca. Então ele é gerado por isso, não inerente a isso.
Ser branco não é inerentemente um problema. O problema é que nós temos todo um modo de nos relacionarmos com essa identidade que é o sofrimento em si, que eu acho que é uma das coisas para as quais o darma tem uma lente muito boa. Eu ser alguma coisa não é um problema inerentemente; mas sim o modo como me relaciono com isso, muitas vezes como resultado de uma identidade social coletiva e de um modo social de me relacionar com isso — é aí que reside o problema, na verdade.
Não há nada de errado com nenhum de nós. E não há nada de errado com quem nós somos ou com como nascemos, nem com a pele, o sexo, ou as partes do corpo que nós temos. É por isso que eu quero continuar ressaltando que tem uma construção acontecendo. Assim como o ego é uma construção. É algo que está lá fora. Então nós temos todos esses desafios e esse monte de sofrimento que é gerado pelo modo como nos relacionamos com esse ego, ou essa “identidade” socialmente induzida — essa projeção de nós mesmos.
HOMEM NA PLATEIA: Obrigado. Eu sou racista. Estou falando sério. Eu nasci num ar e numa água racistas. Sou um racista em recuperação, e também fui casado com uma mulher Negra durante vinte anos. Ela faleceu dois anos atrás, e ela abriu os meus olhos e o meu coração para muitas coisas, inclusive para a dor dela, e para a minha dor como homem branco. Sou membro e professor do New York Insight [Meditation Center] em Chelsea. Temos uma série de iniciativas que reúnem pessoas de todas as origens e culturas na sanga.
No mês passado, tivemos um retiro de um dia chamado “O dever do privilégio branco”. Foi muito intenso, muito desafiador, e afetuoso em alguns momentos. Passamos seis horas juntos, mas apenas com brancos, para que pudéssemos oferecer um lugar seguro para que as pessoas começassem a se abrir sobre a dor delas.
Alguém a descreveu como andar em um campo minado, basta um deslize e você é considerado racista. Em seis horas não conseguimos nem sair da superfície ao falar dos sentimentos de culpa, da raiva das pessoas não brancas, do ressentimento – todos os sentimentos escorregadios e incômodos que estão ali.
Agora estamos nos debatendo com o que fazer com isso em seguida. Como podemos tomar essas iniciativas? Temos uma sanga de não brancos. No ano passado tivemos um curso de “comunidade amada”[3] de oito semanas, em que vinte pessoas, de novo, de todas as origens, se reuniram para tentar entender a dor do outro, e a sua própria dor, usando as ferramentas do darma. É um processo contínuo, confuso, desconfortável, com interrupções e recomeços, e real. Só quero elogiar a todos aqui por fazerem parte disso. Agradeço muito aos nossos professores por organizarem isso.
MULHER NA PLATEIA: Sou líder comunitária na comunidade latina há alguns anos. Passo todos os dias da minha vida sendo muitas vezes a única pessoa branca em um grupo de não brancos que estão sempre lidando com várias questões diferentes.
[Estou] tentando entender meu lugar na organização com a qual trabalho há um bom tempo. Onde estão esses espaços em que as conversas poderão acontecer? Eu chego num lugar e tenho consciência de quem está no espaço e de como eu me faço desaparecer em certos aspectos, de como eu me coloco atrás dos cartazes nas fotos. O que eu faço com isso?
HOMEM NA PLATEIA: Eu queria falar sobre o que é ser um homem afro-americano nos Estados Unidos. Eu cresci aqui. Muitos dos meus colegas que são afro-americanos são confrontados com ódio, abuso e negatividade todos os dias. E ainda assim o objetivo é andar com compaixão. É a prática de andar com atenção plena e estar consciente. E ainda assim você deve, ao mesmo tempo, estar sempre consciente de que pode ser atacado hoje mesmo.
Em geral, eu não sinto ódio de outras pessoas com base na raça delas, nem discrimino com base na raça. Olho para todos de olhos abertos, mas eu posso afirmar com certeza que às vezes tenho que me desligar porque isso pode ser muito cansativo.
LAMA ROD: Isso é amor, sabe? Quero criar essa mensagem das mulheres e homens Negros conversando entre si sem tentar exercer poder uns sobre os outros, nem tentar dominar uns aos outros. Só conversar e lidar com as maneiras de nos relacionarmos que foram ensinadas para nós e questionar essa resistência e fazer a escolha de amar. Amar através da comunicação, da compaixão, da bondade e da paciência.
Esperamos poder realizar isso em nossas conversas uns com os outros. Estou muito grato por todos vocês estarem aqui. Não incentivo vocês a pensar necessariamente em ser aliados, mas em ir para as linhas de frente das suas batalhas, e não recuar e dizer “não posso ficar no caminho das pessoas marginalizadas”. Vão para suas linhas de frente e fiquem lá. Isso é o que vai me fazer feliz. Não fiquem atrás de mim.
REV. ANGEL: Neste contexto, uma conversa sobre raça é fundamental porque, caso contrário, o professor não consegue se relacionar, ou não está se relacionando, com o lugar onde estamos. Em última análise, nós não somos a nossa raça, não somos o nosso sexo, nem todas as nossas condições externas e projeções. Nossa experiência cotidiana é colorida por esses aspectos da mesma forma que os professores reconhecem as emoções das pessoas como um fato. Também temos que reconhecer como um fato as coisas que estão contribuindo para o condicionamento das pessoas. Se a raça não está contribuindo para o nosso condicionamento neste país, o que está?
Se a raça não está contribuindo para o nosso condicionamento diariamente — desde o útero, por gerações, até mesmo antes de chegarmos aqui — então nada está contribuindo para o nosso condicionamento. E aí parece uma perda tão grande que em uma tradição poderosa, que tem a capacidade e a linguagem para conseguir realmente explorar essa estratificação mítica, mas real, essa categorização ao mesmo tempo inventada e palpável, a conversa permaneça não iniciada.
Alguém deu um passo adiante e decidiu inventar alguma coisa para poder vender gente, para poder ser “melhor” do que as outras pessoas, e mesmo assim, por causa do paradigma, por causa do sistema e das estruturas, o impacto dessa criação, dessa projeção, é sentido e vivenciado como sofrimento — não só pelas pessoas que estão por baixo, mas também por aquelas que continuam por cima, muitas vezes sem se dar conta.
Todos nós estamos sofrendo como resultado não da raça em si, mas da nossa relutância em enfrentar e ter consciência sobre a raça e seus impactos, como isso foi construído, como está funcionando em nossas comunidades, em nossas tradições, como isso está obscurecendo nossos ensinamentos e como está afetando os ensinamentos em relação ao [que as pessoas] vão interpretar ou não. O que elas vão compartilhar, e o que não vão. No que elas vão focar, e no que não vão. Qual iconografia vai ser reconhecida, como interpretamos essa iconografia, e o que vai ser deixado de lado.
LAMA ROD: Acho que você levanta algo importante, que é o fato de que não é a raça em si que é o problema; é a relação com ela.
O darma nos ajuda a desenvolver uma relação com a natureza da coisa em si. Então, quando as pessoas e comunidades dizem “No fim somos todos iguais; essa coisa de raça não existe”, em última análise, é claro que isso é verdade, e nós queremos agradecê-las por esse ensinamento do darma. Todos nós precisamos ser lembrados disso, mas então temos que voltar o nosso foco para o modo como ainda nos relacionamos uns com os outros como se a raça e a cor da pele tivessem esse significado inerente. Estamos criando o significado, como a Rev. angel estava apontando; estamos criando isso. E a nossa conversa tem que voltar para os modos como criamos significado e o desconstruímos através das nossas práticas, das nossas ferramentas de diálogo e consciência crítica.
REV. ANGEL: Mas existe também o significado que foi criado para nós, certo? O significado herdado que, sem questionar, estamos levando adiante. Uma das ferramentas extraordinariamente essenciais da meditação, do darma da forma como foi escrito, é questionar. E o que está dando errado nas comunidades que foram desenvolvidas e mantidas por pessoas que estão sustentando o privilégio branco é uma recusa a questionar certas áreas.
Não existe algo do tipo “Ah, questione apenas isto”. Não se ensina a questionar apenas as emoções. Você deve questionar a sua experiência. Questione tudo o que você vivencia. Porque, sim, existe o absoluto, e existe o relativo, então a única coisa que deve ficar de fora do seu questionamento são as coisas com as quais você não tem nenhuma relação. Ou seja, nada, basicamente.
Eu não deixei nada de fora. Eu podia ter passado por esses momentos e decidido: “Vou deixar de fora a relação que eu tenho com meus parceiros. Eu não quero questionar isso. Que conveniente!”.
Ao questionar, você reconhece os lugares que não está questionando, a menos que o privilégio permita que você evite o questionamento. Esse é o valor desse tipo de conversa, lembrar a todos nós que não temos o direito de fazer isso, mesmo como professores. Não existe um professor que possa lhe dizer: “Não olhe para isso”. Acho que é muito importante que as pessoas sintam que houve uma conclusão nas conversas em suas comunidades — que você realmente tem que ser responsável pela sua própria liberação e sua própria prática, e não delegar a sua liberação a ponto de lhe pedirem para não questionar a sua realidade.
*Entrevista retirada da obra Radical Dharma: Talking Race, Love, and Liberation. Berkeley: North Atlantic Books, 2016.
[1]“Antes da colonização europeia, sociedades indígenas norte-americanas como os Navajo, os Cheyenne, os Cherokee, os Lakota, os Ojibwa e os Zuni utilizavam expressões que podemos traduzir como ‘gente de dois espíritos’ para nomear pessoas que apresentavam características tanto ‘masculinas’ quanto ‘femininas’. Segundo o principal jornal indígena dos Estados Unidos, essas pessoas não sofriam discriminação em suas sociedades. Pelo contrário, as famílias que possuíam um membro assim eram consideradas de muita sorte. Acreditava-se que uma pessoa que vinha ao mundo ‘com os olhos de ambos os espíritos — o feminino e o masculino’ era uma dádiva.” Fonte.
[2] Referência a Martin Luther King Jr.
[3] A expressão “comunidade amada” (Beloved Community) foi criada pelo filósofo estadunidense Josiah Royce no século XX, mas foi Martin Luther King Jr. que a popularizou e desenvolveu. Em termos gerais, sua visão de “comunidade amada” era a de uma sociedade igualitária, em que não houvesse pobreza, fome, discriminação por qualquer motivo, em que todos tivessem moradia, e em que os conflitos fossem resolvidos de forma não violenta. Fonte: http://www.thekingcenter.org/king-philosophy.
Lama Rod Owens foi ordenado pelo Ven. Lama Norlha Rinpoche após completar um retiro de silêncio de três anos. Também é professor de mindfulness na Inward Bound Mindfulness Education (iBme), além de ativista social. Jasmine Syedullah é uma abolicionista e acadêmica, com PhD em estudos feministas e história da consciência pela Universidade da Califórnia em Santa Cruz (UCLA). Pratica meditação desde 2000. Rev. angel Kyodo williams é sacerdote Zen, ativista social e uma das maiores vozes budistas afro-americanas nos Estados Unidos. É autora de Being Black: Zen and the Art of Living with Fearfulness and Grace.
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1 Comentário
Obrigado pela facilitação desse texto para nós.
A cada dia mais me encontro envolvido com as questões das estruturas sociais e suas desigualdades no geral e por vezes me percebo tomado de sensações que dificultam a Liberação. Ouvir e ler mestres falando sobre o assunto se faz necessário no diálogo do Darma com essa questões.
Gratidão!