Ilustração de Pinheiro Vermelho

Despertar do mundo interno: um antídoto para o sofrimento contemporâneo – PARTE 1

A vida termina surgindo como um jogo, onde somos personagens dentro de panoramas específicos. Aí nós precisaríamos pensar: o que eu sou dentro disso?


Por
Revisão: Henrique Lemes
Edição: Elise Bozzetto
Transcrição: Elise Bozzetto

Este texto traz trechos da palestra online “Despertar do mundo interno: um antídoto para o sofrimento contemporâneo”, promovida pelos Centros de Estudos Budistas Bodisatva Sukhavati, Curitiba e Londrina e pelos Grupos de Estudos de Ponta Grossa, Maringá e Cascavel em 24 de setembro de 2022. As ilustrações foram feitas carinhosamente por Pinheiro Vermelho.


 

O caminho do ouvinte e o despertar do mundo interno

 

Despertar do mundo interno: esse é um ponto super interessante. Despertar do mundo interno em um certo sentido é a superação do caminho do ouvinte. Quando estamos no caminho do ouvinte a gente só ouve as coisas externas. Mesmo quando ouvimos os ensinamentos, eles parecem algo de fora. Então, esse despertar do mundo interno está conectado a podermos ter acesso: olhar e ver. Esse é o ponto mais importante. O ponto mais importante seria além da sabedoria discursiva. 

 

Nós já ouvimos muitas diferentes tradições religiosas, ouvimos ensinamentos budistas de muitos tipos e aquilo funciona um pouco e, um pouco, não funciona. E a gente não sabe bem qual é a dificuldade. No Surangama Sutra, o Buda também, como em outros Sutras, aponta essa questão do caminho do ouvinte. Então, nós temos um tipo de sabedoria externa que se coloca sobre aquilo que são os nossos impulsos e aquilo não fica muito bem. A gente não consegue efetivamente desenvolver uma liberdade natural e se mover. Para nós, é muito melhor quando, por exemplo, temos um nível de sabedoria que opera dentro, de um modo natural. Não precisamos efetivamente lembrar alguma coisa, mas quando nós olhamos, nos damos conta e nos movemos na direção apropriada. É o que todos os pais aspiram que os filhos façam: “meu filho, não preciso repetir todo o dia, você tem que levantar, colocar as roupas no lugar, fazer dever da escola, não preciso lembrar disso. Todo santo dia tenho que lembrar de novo. Por quê?”. Então é isso: os filhos estão no caminho do ouvinte. E nós também. Seguimos pelo caminho do ouvinte: aquilo não brota de dentro de nós. Eventualmente a pessoa vai entender a mãe ou o pai 30 ou 40 anos depois, quando eles mesmos estão no meio daquilo, daquela dificuldade. 

Como a gente sai disso?

 

Aí vem essa pergunta: “Como a gente poderia fazer? Como funciona?”. A gente deveria fazer isso: se perguntar. Como podemos ultrapassar a sabedoria discursiva e efetivamente ouvir de dentro? Aqui já é um exercício: vamos tentar ouvir de dentro como é que seria esse ouvir de dentro. Porque ouvir de fora é muito diferente de ouvir de dentro, ou de simplesmente ver. Tem esse aspecto. Por exemplo: nós ouvimos alguma coisa discursiva. Daí, nós temos o aspecto cognitivo: quando a gente ouve e entende, é capaz de fazer o raciocínio. Mas é espantoso: a gente pode ouvir, concordar e decidir então fazer. E a gente pode descobrir que mesmo que a gente tome essa decisão, a gente não consegue. Aí vem o pensamento cognitivo, a visão cognitiva, então nós raciocinamos: a gente sabe direitinho que aquilo não é bom, que aquilo é bom; e que deveríamos fazer aquilo que é melhor e não fazer o que é pior. Mas, na hora mesmo, ainda que a gente entenda e compreenda as consequências, a gente tem os impulsos que a gente nem sabe muito bem de onde vem.

 

Como a pessoa faz opções? Como é esse processo? Existe essa voz de sabedoria interna ou não existe? Essa voz existe, ela está lá. Então a gente tem uma sabedoria interna e a gente precisaria juntar essa sabedoria interna com nosso próprio movimento. Nós temos esse ponto. A gente deveria ouvir essa voz. Como que a gente vê isso? Essa voz não é nem verbal de fato, nem cognitiva. A gente olha e sabe que certas coisas não são interessantes e que outras são. A gente também sente. Então, a gente poderia realmente pensar assim: “como a nossa experiência de viver seria melhor? Como a gente poderia viver de uma forma mais adequada?”. A gente deveria pensar internamente, se perguntar: “como que seria melhor?”.

 

No mínimo, deveria sentar um pouco, respirar fundo de vez em quando. E deixar a energia correr pelo corpo. Isso é super bom, mas “neste momento não está sendo possível, a gente imediatamente já tem outras coisas”. E todo mundo sabe que deveria relaxar um pouco, esticar um pouco pro lado, para o outro, se vincular com menos compromissos. Praticar mais, sentar para meditar, essa é a própria maravilha. Mas aí…

 

Vamos perceber que nós vamos obedecendo aquilo que brota diante dos olhos: aquilo nos arrasta. O que surge como outros objetos, sentidos, têm naturalmente uma energia que vai nos arrastando. E nós temos aspectos internos: tão pronto surgem as imagens internas, aquilo também nos arrasta. E não há propriamente uma sabedoria nisso. Essa sabedoria é uma sabedoria em outro nível, uma sabedoria cármica. É como se a gente ouvisse de dentro o impulso cármico, como ele vem, e vamos seguindo aquele impulso. Aquilo que vamos chamar de sofrimento, no budismo usamos a palavra dukkha. Essa palavra diz respeito a operar a mente de modo descuidado. Ou seja, nós simplesmente vamos seguindo os impulsos como eles vêm e isso por vezes nos coloca em algum tipo de armadilha. E simplesmente seguir os impulsos, como eles estão vindo, naturalmente já é um nível de sofrimento, pois é como se abdicássemos de uma lucidez. Vamos seguindo de um modo muito limitado. Na visão budista, esse sofrimento, dukkha, não é um estado natural. Ele é alguma coisa construída e a gente não se dá conta como essa construção se dá. 

 

Dukkha surge de um processo multifacetado. Os nossos carmas operam dentro de uma complexidade. E a gente pode rapidamente perceber que a gente pode sofrer por olhos, ouvidos, nariz, língua, tato. Pode sofrer pelas experiências de corpo variadas, pelas experiências de mente variadas. E quando nós olhamos esse processo, a gente descobre que há uma conexão circular entre vários elementos que produzem nossas experiências e nossos sofrimentos. A gente deveria pensar com cuidado, deveria refletir internamente. Isso é uma forma adequada de meditação, de vipassana, onde nós sentamos com cuidado, tendo acalmado a mente e a gente se pergunta: “e o sofrimento, ele surge como?”. Então, nós estamos despertando esse mundo interno: a gente olha para dentro, começa a perguntar como surge o sofrimento. Estamos acessando esse mundo interno. A gente pode também perguntar: “o que sofre? Quem sofre e o que sofre?”.

Os diferentes tipos de sofrimento

 

A gente pode estar, por exemplo, com uma intranquilidade: tem times na série B, outros times estão na série A e querem ser campeões nacionais. Eles têm um nível de sofrimento. Agora, dentro de pouco mais de uma semana, vamos ter eleições: têm um nível de sofrimento. A gente senta e contempla: o sofrimento vem e dói onde? O time foi rebaixado, o sofrimento dói onde? O candidato foi derrotado, o sofrimento dói onde? Porque é uma coisa cognitiva, mas tem um sofrimento. Este sofrimento vem como? O que sofre quando há sofrimento? Como nós sentimos esse sofrimento? Essas perguntas na verdade são um convite para a gente despertar o mundo interno, despertar esse olhar interno. Nós precisamos desse olhar que vê internamente e que vai então oferecendo as respostas. 

 

Quando olhamos isso, a gente pode ver que o sofrimento tem muitas conexões em círculo. Por exemplo: nós podemos ter sofrimentos de corpo. A pessoa está cansada, machucada: ela tem um sofrimento de corpo. Tem insetos, ou está muito frio, ou muito quente, ou a pessoa tem fome, tem sede: ela tem um nível de sofrimento de corpo. Agora, vamos supor que o corpo esteja confortável. A pessoa pode ter um sofrimento de energia, por exemplo. Ela pode estar cansada, com energia baixa, então ela tem uma aflição. Ou ela está em um lugar e tem que fazer alguma coisa que ela não está com vontade de fazer. Chegou sábado de manhã, a pessoa diz: “que maravilha, hoje enfim tenho tempo de arrumar a casa e limpar tudo”. E a pessoa está sentada, em sofrimento porque ela não está com a menor vontade de fazer aquilo. Então, tem um sofrimento de energia. 

 

Mas vamos supor que a pessoa tenha o corpo e a energia arrumados. A casa está arrumada, está tudo arrumado, o corpo está calmo, energia está ok. Mas daí tem uma aflição de mente, do tipo: “segunda-feira eu tenho que apresentar tal trabalho. Eu não fiz e não estou com vontade de fazer e não acho importante isso, mas eu tenho que apresentar”. Então a pessoa tem um problema de mente. Tem uma complexidade aqui. Ou ela pensa: “meu candidato vai ser derrotado e eu vou ser demitido” ou então “mês após mês estou afundando economicamente, cada vez sobra mais mês no fim do dinheiro”. Então, tem um sofrimento de mente, mas o corpo por enquanto está bem, a energia está bem, mas tem sofrimento de mente, ou seja, aquilo não está resolvido.

 

Mas, vamos supor que a pessoa esteja bem de mente. Mas aí, a pessoa pode não estar bem de identidade. Por exemplo, ela pode pensar: “eu gostaria de ser isso e aquilo”, mas ela não é aquilo, ela é uma outra coisa. Então ela tem uma aflição com respeito a identidade como ela surge. Mas, a pessoa pode estar bem quanto à identidade, está satisfeita com a sua identidade, mas ela vê que as relações não estão muito boas. Ninguém olha sorrindo, ninguém é gentil e nós não estamos nos sentido muito bem. Por quê? Porque as relações não estão direito. Enfim, as relações podem estar ok, a pessoa olha e pensa que nós estamos enfim bem. Mas, a pessoa diz “estou nesse mundo, estou aqui com o corpo, energia, mente, ok, identidade ok, estou bem nas relações, mas eu não gosto muito desse lugar, eu estou afim de ir embora daqui, aqui não é um lugar muito bom”. Então a pessoa pensa “está tudo ok para mim, mas esse trabalho que eu faço eu não gosto, esse mundo como sou obrigada a me mover desse jeito não gosto”

 

Aí eventualmente a pessoa enfim vai para um lugar que ela gosta. Então ela está lá: se instalou em Porto de Galinhas. Tudo bem. A água mal se mexe, água quente. 5h30min da manhã já dá para ir para a praia. Quente, aquele sol que bate no oceano e reflete. O pessoal aqui no RS não sabe o que é isso (risos). A pessoa está num lugar perfeito, mas enquanto isso, a pessoa pensa: “Nós estamos destruindo o planeta. A água está poluída, o ar está poluído, estamos comendo comida envenenada”. Então, se nós não cuidarmos das múltiplas dimensões de seres, essas múltiplas dimensões de seres se tornam fonte de sofrimento para nós também. 

 

Mas, vamos supor que aquilo tudo está arrumado: os seres são felizes, nós somos felizes, tipo Terra Pura do Buda da Medicina. Os tigres não correm atrás das gazelas, está tudo arrumado. Todo mundo satisfeito, feliz, saudável. Mas daí tem carmas ainda. Ou seja, tem impulsos em nós e esses impulsos podem produzir ações negativas. Em Terra Pura não deveríamos correr atrás de gado gordo, nem olhar com esse olho as ovelhinhas, mas estamos querendo um churrasco. E em Terra Pura isso não é possível. Aí aparece o carma. A pessoa não sabe de onde brota ainda um carma. Ao invés de ver a natureza búdica dos seres, ela procura ver onde está a natureza fofa dos seres e aquilo não vai dar certo.

 

Então, em qualquer um desses âmbitos, vamos supor que a pessoa esteja em Terra Pura, quando surge o carma, o acionamento dos outros níveis de desconforto surgem. Então quando olhamos carmicamente, seja o que for, brota em nós o impulso e a energia e brota uma transformação do próprio corpo. Brota um desequilíbrio. Quando a gente se manifesta, a gente se manifesta nestes múltiplos níveis e um vai impulsionando o outro. Assim, a gente poderia dizer que a energia do nosso corpo depende do céu ou depende das plantas, de tudo que acontece em volta no mundo tangível que nós podemos sentir com olhos, ouvidos, nariz olho e tato. E também do mundo sutil que é aquilo que nós vemos internamente, o jeito pelo qual experimentamos as múltiplas sensações e visões.

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5 Comentários

  1. Emília Vanelí de Oliveira disse:

    Amei.
    Posso receber não meu e-mail?
    Recebi de uma amiga.

  2. Por que meu amigo me enviou esse belo texto do Lsma Santem sobre a sofrimento e o despertar do mundo interno, sendo que eu aguardava o texto como fazer um alter e onde fazê-lo? Pode ser no quarto de dormir?

    • Elise Bozzetto disse:

      Bom dia, não entendi seu questionamento.
      O CEBB já ofereceu algumas vezes cursos de altar (em sangas locais).
      Sugiro você procurar a sanga da sua cidade e conversar com o(a) tutor(a) ou facilitador(a) local.
      Abraços!

  3. Vanuza Cavalcanti disse:

    Agradeço muito por ter a possibilidade de acessar esse texto e às ilustrações q auxiliam e remetem à reflexão.

  4. Otávio Rangel disse:

    Lindas ilustrações!

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