As edições e traduções de Rosa Frazão dos textos de Alexander Berzin têm virado textos maravilhosos, com temas fundamentais para o caminho
A disciplina ética é parte fundamental do caminho budista. Mas a ética está presente em todas as tradições espirituais e sistemas sociais.
Portanto, é importante entendermos a diferença entre a abordagem ocidental e a abordagem budista da ética. A maioria de nós cresceu em uma cultura ocidental, na qual a ética é basicamente uma questão de leis. Existem as leis divinas, dadas por Deus, e as leis civis, feitas por um poder legislativo. Na cultura ocidental, toda a ideia de ética está baseada na obediência – em obedecer a leis divinas, leis civis ou ambas. Se obedecermos, seremos considerados boas pessoas ou cidadãos; e se desobedecermos, seremos considerados pessoas ruins ou maus cidadãos. Na esfera religiosa, a pessoa que desobedece estas leis é rotulada como pecadora e, na esfera civil, como criminosa.
Aqui, isto significa principalmente discernir entre o que é benéfico e o que é prejudicial. É bem diferente de discernir entre o que é legal e o que é ilegal. O contexto budista é de querermos nos livrar do sofrimento. E a maneira de fazermos isso é eliminando suas causas. Isso significa que precisamos ponderar corretamente as causas do sofrimento. Todo mundo quer ser feliz e não sofrer, mas na maioria das vezes não entendemos realmente o que nos ajudará a gerar a ausência de sofrimento e o que nos trará felicidade.
Portanto, a consciência discriminativa precisa estar acompanhada da disciplina ética. Precisamos avaliar corretamente que “se eu agir desta maneira, isso causará problemas – talvez problemas para os outros, mas principalmente para mim. E se eu agir de maneira construtiva, isso será bom para mim e talvez para os outros também”. A escolha de evitar ou não os comportamentos destrutivos é nossa, e depende do quanto nós levamos a sério e do quanto nos importamos com o sofrimento que poderemos vivenciar no futuro.
É muito importante não projetarmos no budismo as nossas ideias ocidentais de ética. Algumas pessoas acham que precisam praticar meditação para serem “bons” budistas. Alguns ocidentais acham até que devem obedecer seu professor, o que é um conceito bastante estranho do ponto de vista budista. Na verdade, nós devemos, sim, seguir o conselho do professor, mas também devemos usar nossa consciência discriminativa. Às vezes, nosso professor pode dizer coisas absolutamente ultrajantes apenas para nos encorajar a usar nossa inteligência.
Conta-se que, em uma vida anterior do Buda, quando ele era apenas um entre os muitos alunos de um determinado professor, este pediu a todos os alunos que fossem à aldeia local e roubassem alguma coisa para ele. Todos saíram para roubar, menos o Buda, que simplesmente ficou em seu quarto. Então, o professor foi até o seu quarto e perguntou-lhe: “Por que você não foi roubar? Você não quer me agradar e me fazer feliz?” E o Buda respondeu: “Como o roubo pode fazer alguém feliz?” A lição desse conto é que obedecer cegamente ao professor, como se ele fosse um general, não é o caminho budista. O que o professor faz é dar conselhos e orientações. O professor nos ensina a usar nossa própria consciência discriminativa para nos tornarmos budas. Nosso objetivo não é nos tornarmos servos de um buda; nosso objetivo é nos tornarmos budas.
Outra diferença entre a ética ocidental e a budista é a crença, no ocidente, de que as leis são sagradas – é como se tivessem vida própria. As pessoas acham que uma lei divina, que é dada por Deus, não pode ser alterada. E as leis civis, enquanto estão em vigor, também são consideradas um tanto sagradas, apesar de poderem ser alteradas através do processo legislativo. O que precisamos reconhecer aqui é que as leis, assim como todos os demais fenômenos, não são autoestabelecidas e autossustentadas”.
O Buda deu várias orientações sobre ações que naturalmente causam sofrimento ou prejudicam o nosso progresso espiritual. Mas, embora ele tenha dado essas orientações, o preceito budista, ou a orientação ética budista, não é uma lei, não é um mandamento esculpido em pedra, não é uma orientação sagrada e completamente independente da situação, do contexto ou de quaisquer fatores atenuantes. As orientações éticas budistas são fenômenos “que surgem de forma dependente”. Elas surgiram na dependência de causas e condições, e no contexto de determinadas situações e circunstâncias.
Podemos perceber isso na evolução dos votos monásticos. Nos primeiros dias da comunidade budista, não havia votos, mas surgiram várias situações que causaram problemas – entre os membros da comunidade monástica e entre os monásticos e a comunidade leiga que os apoiava. Então o Buda disse: “Para evitar este problema, não faça esta ação”, e daí vieram os votos. Quando você estuda o Vinaya (os votos e regras de disciplina), vê que o texto geralmente conta como cada voto surgiu – qual foi a situação que levou o Buda a determinar esse voto. E para todos os votos há sempre o princípio de que, quando outros fatores se sobrepuserem à orientação que foi dada, o voto pode precisar ser violado.
Por exemplo, o Vinaya diz que um monge não deve tocar numa mulher, a fim de evitar o desejo. Mas se uma mulher estiver se afogando, o monge não deve ficar parado observando – ele deve ajudá-la! É muito claro que às vezes a necessidade se sobrepõe à proibição, e isto é especificamente permitido no Vinaya. No budismo, a ética e as orientações são relativas – isto é, são relativas à situação.
Conta-se que, em uma encarnação anterior do Buda Sakyamuni, ele foi o navegador de um barco que transportava 500 mercadores. Nesse barco, havia um remador que intencionava matar todos os mercadores a fim de roubá-los, e o Buda percebeu isso com sua clarividência. E ele sabia que não havia como impedir esse genocídio, a não ser matando o remador. Assim, de bom grado e com consciência, ele assumiu todas as consequências cármicas de matar o remador a fim de salvar 500 vidas e evitar que este incorresse nas terríveis consequências de tal comportamento.
O problema de tomarmos fanaticamente as leis é que nos agarramos a um falso “eu”, temos uma visão dualista de nós mesmos. Como se houvesse um “eu” sólido que fosse desobediente e devesse ser disciplinado e outro “eu” sólido que fosse o disciplinador. Podemos pensar: “preciso parar de fazer isso”, como se houvesse um “eu” de um lado que fosse impedir “eu mesmo”, do outro lado, de fazer alguma idiotice. Quando temos essa mentalidade, temos uma forte crença em dois “eus” sólidos – o criminoso em potencial e o policial. E o estado de alerta em que ficamos para observar esse “eu” é como se tivéssemos um agente da KGB dentro da nossa mente, espionando nosso próprio comportamento.
Precisamos relaxar. É importante relaxar enquanto mantemos uma disciplina ética adequada. Mas como fazer isso? Primeiro precisamos entender que não estamos falando de leis, e sim de orientações. Uma das orientações diz que, se quisermos evitar ou minimizar um determinado sofrimento, é recomendável evitarmos um determinado tipo de ação, se possível. Esta não é uma lei que somos compelidos a seguir mesmo sem ter ideia de qual é o seu propósito, mesmo achando que é uma lei idiota. Não é assim. A ética budista não é uma lei idiota. O Buda apontou certas questões por compaixão, para nos ajudar a evitar problemas. As orientações surgiram por conta da compaixão do Buda e na dependência de sua compreensão daquilo que causa os problemas e daquilo que os evita. Cada situação que encontramos é diferente; precisamos usar nossa consciência discriminativa para decidir, em cada situação, qual é a melhor maneira de agir ou de que ação precisamos nos abster. Esse entendimento (saber o que fazer e o que não fazer) precisa vir naturalmente, espontaneamente, não nos termos do policial dualista disciplinando o criminoso em potencial.
Este texto foi traduzido e editado por Rosa Frazão, e compartilhado com a permissão de https://studybuddhism.com. Acesse o texto completo aqui.
PARA SABER MAIS:
O site studybuddhism.com é um projeto audacioso que reúne ensinamentos fundamentais do budismo tibetano. O site é uma espécie de compilação dos arquivos de Alexander Berzin, reunindo um material de mais de 50 anos dedicados ao estudo do Darma. O site tem interface com diversos idiomas, inclusive o português.
Dr. Alexander Berzin é um tradutor, professor, erudito e praticante com mais de 50 anos de experiência no budismo. Depois de receber seu Ph.D. em Harvard, Dr. Berzin passou mais de 29 anos na Índia treinando sobre a orientação de alguns dos maiores mestres tibetanos de todos os tempos. Lá ele serviu como intérprete ocasional para H.H. the 14th Dalai Lama e seus tutores. Ele é um fundador e autor dos projetos Berzin Archives e studybuddhism.com.
Rosa Frazão é editora para o português do site studybuddhism.com e instrutora do programa Cultivating Emotional Balance (CEB).
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Gratidão! ^.^