Com uma vida fascinante, benéfica e repleta de encontros primorosos, Ani La deixou contribuições inestimáveis para o estabelecimento do Dharma no Brasil
Nascida na Inglaterra em 1948, a Venerável Ani Zamba Chözom foi uma das primeiras ocidentais a ser ordenada como monja budista. A convite de Chagdud Tulku Rinpoche, chegou ao Brasil após realizar um período de retiro em Hong Kong, mudando-se definitivamente para o país na véspera do Ano Novo de 1999. Com uma vida fascinante, benéfica e repleta de encontros primorosos, Ani La partiu em dezembro de 2023. A revista Bodisatva tem a honra de publicar este texto escrito em conjunto com sua aluna Silvia Teixeira, como uma homenagem ao legado desta grande mestra e sua passagem pelo nosso país.
“Tudo é perfeito do jeito que é”. Essa máxima de Ani Zamba Chözom ainda ecoa, mesmo depois de seu parinirvana, que completa um ano nesta segunda-feira (23).
Em uma entrevista concedida à antropóloga Silvia Teixeira de Lima para o documentário etnográfico intitulado Ani Zamba Chözom e o caminho budista (2020), acompanhamos as palavras da Venerável Bhikkhuni narrando sua chegada ao Brasil: depois de sair de um retiro realizado em Hong Kong, ela ligou para Chagdud Tulku Rinpoche — que já havia se estabelecido no Brasil àquela época — e lhe disse que estava pensativa, pois ele estava francamente envelhecendo e ela estava se tornando cada vez mais doente, sendo uma aspiração para ela que ambos passassem um tempo juntos antes que um deles falecesse.
Foi nesse contexto que a monja se mudou para Maceió, onde viveu por três anos, estabelecendo-se como representante de Chagdud Tulku Rinpoche nesta e em outras regiões do Brasil, nas quais acompanhou vários grupos espalhados pelo território nacional.
De acordo com Silvia (2019), em sua dissertação de mestrado intitulada O Caminho do Bodhisattva em Alagoas: um estudo etnográfico, o Centro de Práticas Chagdud Kunzang Ling, localizado em Maceió, filiado ao Chagdud Gonpa Khadro Ling de Três Coroas-RS, foi oficializado em 2003 e designou como professora residente a monja inglesa para orientar os alunos(as) e guiá-los(as) no caminho Vajrayana. Ani La coordenou o Chagdud Kunzang Ling em Alagoas até o ano de 2005.
Em uma entrevista concedida a Frances McDonald, em 2015, para a revista Buddhistdoor Global (BDG), ela afirmou que, após sua vivência por três anos na cidade de Maceió, passou a direcionar sua energia para atuar na Bahia, onde estabeleceu um centro de práticas no vale do Monte Azul, a 30 km da cidade de Mucugê. Nessa região, encontrou uma caverna e passou o ano de 2012 em retiro solitário. Após atuar por quase dez anos na região de Mucugê, Ani Zamba Chözom direcionou, então, sua energia para realizar ações no estado de Minas Gerais, numa cidade chamada Alagoa, onde estabeleceu um centro de práticas denominado Ati-Ling, nome sugerido por S.S. Dudjom Yangsi Rinpoche.
Nessa entrevista, Frances McDonald lhe pergunta sobre o florescimento do Dharma no Brasil e a relação com estudantes brasileiros. Ao ser indagada dessa forma, Ani La respondeu:
É difícil falar em geral, mas principalmente acho os brasileiros muito abertos, muito receptivos, bastante brincalhões e muito interessados no Budismo, embora leve tempo para introduzir o valor dessas ideias o suficiente para inspirar as pessoas a quererem integrá-las na maneira como eles veem a vida […]. Tenho alguns alunos em cada grupo que estão realmente praticando e integrando o que aprenderam com a prática em sua área de trabalho”.
Nessa entrevista a Frances McDonald, ela conta também a respeito da circunstância em que Chagdud Rinpoche se tornou seu professor, afirmando que foi no momento em que ambos haviam viajado para o Nepal a fim de receber ensinamentos Dzogchen concedidos por Dilgo Khyentse Rinpoche, professor que também causou forte impacto em seu caminho, e sobre o qual Ani Zamba Chözom afirma:
Dilgo Khyentse – majestoso! Ouro – a aura, inacreditável, o abraço da sabedoria, a imensidão de sua presença física. E então, a realização dele simplesmente levava você, envolvia você em uma dimensão diferente e permitia que você visse de uma maneira diferente”.
A monja tinha ouvido falar dos ensinamentos Dzogchen que seriam transmitidos por Dilgo Khyentse Rinpoche no Nepal e, quando chegou lá, foi até ele e lhe disse:
Por favor, você pode me dar a transmissão deste ensinamento específico?”
E ele o fez. Mas por causa da quantidade de pessoas presentes para receber tais ensinamentos, Dilgo Khyentse Rinpoche não pôde entrar nos comentários e em todos os detalhes das práticas e, então, lhe recomendou:
Agora, vá até Chagdud Rinpoche e ele lhe dará todos os detalhes”.
Foi a partir deste momento que Chagdud Rinpoche tornou-se um de seus principais professores. Ani Chözom foi sua acompanhante durante as iniciações concedidas neste ciclo de ensinamentos e, desde então, ambos se tornaram muito próximos. Apesar de já se conhecerem e desfrutarem de uma amizade previamente, houve uma intensificação da conexão a partir deste momento.
Ainda na entrevista concedida a Frances McDonald, ela narra também a interessante experiência de trabalhar com Madre Teresa em Calcutá, no Lar para Desamparados, na Índia:
Foi através de uma exposição constante à morte e ao morrer que comecei a aprender sobre a vida — a importância de utilizar a própria vida. Muitas coisas aconteceram durante o meu tempo com Madre Teresa e criaram condições que me permitiram olhar para as situações da vida de diferentes maneiras e me inspiraram a investigar, com um desejo de ir mais fundo no meu próprio coração”.
Vale ressaltar que, na juventude, a monja inglesa passou por uma espécie de “morte em vida”, segundo suas próprias palavras. Ela ficou gravemente internada em um hospital e paralisada por muito tempo. Naquele período, não conseguia mover nenhuma parte do seu corpo e teve muito tempo para pensar no valor de pequenos gestos:
As pessoas não entendem o que têm; elas não entendem como é maravilhoso poder colocar o garfo do prato na boca. E pensei: ‘Talvez eu pudesse ajudar as pessoas, porque aprecio muitas coisas que as pessoas não apreciam agora’”.
Na década de 1970, Ani Zamba Chözom conheceu o Lama Yeshe. Quando disse a ele que gostaria de se tornar monja, o Lama Yeshe a interpelou profundamente:
Por que você quer se tornar monja? É porque você gosta das roupas, gosta da aparência? Por que você acha que usar mantos vai ajudá-la a ser um ser humano melhor?”
Após ser afetada por tais indagações, Ani La voltou para a Inglaterra e realmente investigou por que considerava que deveria se tornar uma monja, contemplando com profundidade e atenção as questões colocadas por Lama Yeshe.
Conforme conta a Frances McDonald para a revista Buddhistdoor Global (BDG), depois de alguns meses no Reino Unido, ela voltou ao Nepal e disse ao Lama Yeshe:
Agora sei por que quero me tornar monja. Sinto, sem qualquer dúvida — para mim, pessoalmente — que preciso desse tipo de compromisso, desse lembrete do que estou fazendo, do que estou comprometida a fazer nesta vida e por quê”.
Após considerar as reflexões de Ani Zamba Chözom, Lama Yeshe a levou a Geshe Rabten, na Índia, um dos principais conselheiros de Sua Santidade o Dalai Lama, além de grande estudioso e praticante. Este, por sua vez, convidou cinco iogues que viviam acima de McLeodGanj, no estado de Himachal Pradesh, na Índia, para fazerem parte da cerimônia de ordenação.
Ressalta-se ainda que a Venerável Ani Zamba Chözom era detentora de várias linhagens monásticas tanto no Budismo tibetano, quanto nas tradições chinesa e coreana.
Depoimento da praticante Silvia Teixeira
Ani Zamba Chözom, chamada de ‘Ani La’ por todos nós, era uma mestra austera, uma Dakini irada, de uma personalidade forte e contundente. Ensinava com propriedade cada perspectiva do Budismo, sempre nos levando em seguida a praticar, praticar e praticar. Ani La dizia firmemente: ‘sua prática é sua vida e sua vida é sua prática’. Se não houvesse a prática constante, o ensinamento não teria valido a pena.
Ela sabia os nomes de todos os seus alunos e alunas e, quando falava com eles, olhava nos olhos e dirigia a palavra diretamente à sua necessidade. Era como se visse a nossa alma e entendesse a nossa necessidade. Cada ensinamento era intenso e profundo e refletia as características dos mestres que haviam passado por sua vida e era como se cada um deles estivesse ali junto a ela.
Extremamente questionadora, era uma monja forte e que, mesmo enfrentando muitas dores físicas, mesmo passando por tratamentos longos e difíceis, usava essas experiências como exercícios para a prática do Dharma. Ela nos mostrava que nada poderia nos impedir de praticar e cada vivência dessas era a oportunidade de que precisávamos para aperfeiçoar e adquirir mérito.
Cada momento era auspicioso e não poderíamos desprezar isso e olhar além, pois ali havia um poderoso ensinamento. E durante todo o seu tempo de internamento, ela também ensinava. Do quarto do hospital, ela estava lá falando para cada um de nós e nos mostrando o quanto a vida é preciosa e como cada segundo é importante e não deve ser desperdiçado e nada deve ser lamentado. Ela sentia dores intensas e dizia que isso alimentava sua prática; era o que a fazia aguentar a dor.
E sempre depois de cada prática, ela checava como estávamos, o que tínhamos experienciado, o que havíamos sentido e o que aprendemos com aquilo. E nos levava novamente a mais práticas.
Esteve todo o tempo nos preparando para a morte dela e sabia com precisão como iria ser e descrevia nos orientando como fazer para lidar com a nossa morte, também. Deixou, inclusive, orientações para a equipe médica como proceder com o seu processo de morrência e como tratar o seu corpo.
Mesmo não falando nossa língua fluentemente, ela compreendia quando a tradução de suas palavras era errada ou não contemplava o significado correto. E imediatamente corrigia a tradução com ‘No, no! It’s not correct!’ e explicava novamente.
Ani La tinha o espírito livre. Ela ia aonde queria, questionava tudo e todos e não media esforços para ensinar e aprender. Era uma monja não sectária. Se não fizesse sentido para ela, não seguia em frente e era assim que nos ensinava. Era itinerante e formou uma Sangha que tem pessoas de vários pontos do país. Um grupo que ainda hoje está unido e buscando manter os ensinamentos e as práticas trazidas por ela e perpetuando seu legado.
Nós nos reunimos de forma on-line. Fazemos as práticas mais recomendadas por ela e estamos juntos buscando construir o templo de retiro que ela deixou inacabado, para que outras pessoas possam se beneficiar e praticar o Dharma.
Com certeza, Ani La foi uma mestra realizada. Somos profundamente gratos pela possibilidade de termos vivido em sua presença. Cada palavra dita por ela ainda ecoa em nossos ouvidos, nos lembrando que não podemos perder tempo em aprimorar a nossa prática do Dharma, pois não sabemos quanto tempo temos. Ela nos observava muito e trazia o ensinamento de acordo com o que percebia nas suas observações. Então, decidia qual ensinamento cabia no momento e o fazia com toda a profundidade possível.
Trabalhava conosco sobre as emoções, como as sentíamos, como as enxergamos, como lidamos com elas e como nós nos afetávamos com elas. E nos dizia: ‘observe e veja de que forma você é afetado(a) por elas e se pergunte o que você vai fazer com tudo isso’. A experiência de atenção plena, de estar na ação era o grande exercício de prática para domar a nossa mente.
Elas nos deixou um livro, A Dança das Emoções, como uma cartilha bem didática para usarmos como um livro de cabeceira e nos mantermos firmes no exercício do Dharma, trabalhando com o que nós temos diariamente, que são as nossas emoções, entendendo-as e compreendendo sua verdadeira função na nossa vida”.
Em certo momento da entrevista concedida por Ani Zamba Chözom à Buddhistdoor Global (BDG), o entrevistador Frances McDonald lhe perguntou se os professores budistas com os quais ela estabeleceu conexão restringiram certos ensinamentos por ela ser uma mulher:
Você não sentiu que eles ocultaram nada, por você ser mulher?”
E Ani La então lhe respondeu:
De jeito nenhum! Especialmente com professores como Chagdud Rinpoche, Lama Wangdor, Thinley Norbu Rinpoche e Dudjom Rinpoche, foi uma visão totalmente igualitária. [A respeito de] Chagdud Rinpoche, toda a sua linhagem esteve focada na energia feminina. E Thinley Norbu também — ele realmente deu muito às mulheres”.
Em 2013, Ani La lançou a obra “A Dança das Emoções” transpondo para o papel os ensinamentos que repassava em suas aulas. As palavras em formato físico ganharam novos contornos, porque transitam com a ideia de fluidez do texto, bailando à frente do leitor(a).
Nele, ela explica como cada um(a) de nós, através da atenção plena, pode se guiar em meio a essas “energias que se movem”, as emoções, até chegarmos à sabedoria.
Ao final da entrevista à BDG, Frances McDonald lhe perguntou se ela gostaria de acrescentar algo e Ani Zamba Chözom terminou a conversa com o seguinte ensinamento:
A sabedoria vem de ver as coisas como elas são – não de acordo com a nossa maneira condicionada de ver, mas de acordo com a maneira desperta de ver. Então, para onde vamos? Partimos do ponto inicial da confusão e então, gradualmente, à medida que enfraquecemos os hábitos e tendências que compõem a confusão, o que se revela é a nossa própria natureza desperta. Isso não acontece fugindo da confusão, mas trabalhando com ela, compreendendo nossos hábitos e tendências neuróticas, nossos altos e baixos emocionais, que são a base da nossa vida diária. Esse é o nosso caminho e essa também é a nossa libertação. Sabedoria e confusão não estão de forma alguma separadas. São apenas maneiras diferentes de ver a realidade”.
Todas as pessoas estão convidadas para a cerimônia que será oficiada pela monja Coen em memória da Venerável Ani Zamba Chözom nesta segunda-feira, 23/12/2024, às 18h30 (online), pelo Zoom. Clique AQUI para participar de modo remoto.
Que os méritos se expandam e toquem a todos e todas!
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