O evento aprofundou os temas da Carta Fé na Democracia, iniciativa coletiva protagonizada pelo CEBB ao lado de mais de 100 instituições
Com a participação de 679 inscritos e 29 painelistas de diferentes campos do conhecimento e tradições, o 108 Horas de Paz de 2022/23, realizado pelo CEBB e pelo Instituto Caminho do Meio aprofundou temas voltados a espiritualidade e cultura de paz que permeiam a Carta Fé na Democracia. Neste texto oferecemos um apanhado geral do evento, que pode ser acessado pelo site www.108horasdepaz.com.br (a inscrição feita mesmo depois do evento dá acesso a todas as gravações).
Segundo o anfitrião do evento, Lama Padma Samten, os tempos de degenerescência (termo budista que pode ser aprofundado neste texto), nos quais buscamos reconstruções e transformações, são favoráveis ao redirecionamento da visão apesar do sofrimento e aflições que emergem. Samten indicou a urgência na superação dos obstáculos colocados por paradigmas reducionistas que impõem modos únicos de ser e de pensar na economia, na linguagem e no progresso.
Como cultivar a visão aberta em tempos de reconstrução?
No primeiro dia do evento, o olhar de interdependência e de respeito a todos os seres, com uma visão ampla, foi frequentemente abordado pelos painelistas.
Olga Curado, jornalista, escritora e faixa preta em aikido, explorou a fala inicial do Lama: “o desafio deste tempo é essa habilidade de sermos um com o outro,” disse. “Gentileza e delicadeza definem comportamentos: a primeira designa comportamentos de etiqueta social e, a segunda, é o comportamento ético, daí a minha proposta de reflexão sobre uma prática mais voltada ao amor inclusivo e menos ao social”, sugeriu. “Somos gentis e pouco delicados. É preciso avançar um pouco mais na relação com o outro e que a gente se exponha também. Queremos trocar pouco e manter a barreira de certezas, dificultando o diálogo. Falamos em grandes transformações, mas e os pequenos gestos?”, questiona.
Ana Latorre, juíza, estudante de psicologia e defensora dos Direitos da Natureza e dos Povos Indígenas, abordou os problemas vividos no sistema democrático, como a situação de abandono e falta de políticas que contemplem a maior parte da população brasileira, em especial os povos indígenas e tradicionais, povos negros e quilombolas, das periferias urbanas e nas distintas dimensões sociais, como as mulheres e as pessoas LGBTQI+. Contudo, Ana deu ênfase à importância da democracia para fazer circular essas informações, conscientizar e mobilizar em direção às mudanças necessárias. “Nossa instituição trabalha para assegurar que a democracia seja respeitada diante das tentativas de sua instrumentalização em favor de desvios da sua finalidade”. A juíza sugeriu a adesão aos direitos da natureza a partir da compreensão de que todos os seres devem ser vistos com o mesmo respeito.
O professor Luiz Gonzaga apresentou a sua visão ampla e criativa como motivação para o enfrentamento dos desafios nos próximos meses e anos. Segundo ele, são os povos explorados, desde a invasão do território hoje conhecido como Brasil e sua colonização, a contribuir imensamente através dos saberes que acumularam. “Conhecem a possibilidade humana de estabelecer outra relação entre a vida humana e as demais da natureza, de construir um outro modo de viver. Um modo diferente do moderno: além da ruptura entre homem e natureza que a civilização se baseou, de uso apenas como recurso para fins individuais. Que a democracia nos propicie esse encontro conosco, com a nossa cultura e as forças que herdamos dessas resistências vitoriosas, com alegria e abertas à participação de todos”, disse.
Culturas regenerativas: utopias ou possibilidades?
No segundo dia de mesa de conversas, os convidados compartilharam experiências distintas em uma demonstração de meios hábeis para as sociedades superarem os obstáculos impostos pelo paradigma econômico vigente. Lama Padma Samten problematizou a relação entre as emoções e o acúmulo de bens materiais e a objetificação da vida de outras espécies. “Apesar das frustrações, olhamos as coisas, os outros seres, e sentimos um determinado movimento na nossa energia. No budismo isso é Avidya, um tipo de cegueira diante de todas as possibilidades de compreensão que nos limita a seguir crentes no jeito que conseguimos enxergar tudo. O padrão no antropocentrismo é a incapacidade de olhar a realidade além do ponto de vista individual, como se não fosse possível olhar sob o ponto de vista dos outros seres”, explicou.
Essa visão reducionista e condicionada à crença na separação da espécie humana das demais conduz a um processo distópico, que ameaça a vida no planeta e, em especial, a humana, conforme a ciência do clima vem alertando globalmente. “A linguagem lógica nos ajuda a entender a causalidade, mas não produz as transformações necessárias. No budismo, silenciamos, observamos de onde vem os condicionamentos e assim vamos liberando-os. Percebemos como a liberdade natural da mente surge nas variadas expressões culturais dos seres que compõem a vida na Terra, reconhecemos a artificialidade em cada um desses estados e, assim, vemos surgir a lucidez presente em meio as coisas para construirmos realidades melhores”, avalia o Lama.
Do norte do Senegal, perto da fronteira com a Mauritânia e do deserto do Saara, falou Ousmane Pame sobre ações empregadas para enfrentar os efeitos das mudanças climáticas. Ele contou que, nas últimas quatro décadas, os ecossistemas foram devastados pelas mudanças climáticas e pela agricultura moderna, que destruiu florestas para plantar monoculturas de arroz e de trigo. “Começamos um movimento regenerativo em diálogo com 50 vilas e fizemos uma aliança entre as populações dos dois países contra a pobreza e a degradação”. Também relatou sobre a produção de mudas de árvores para reflorestamento e doação, o apoio para que as populações acessem água e informações necessárias à implantação de jardins próprios, além do intercâmbio de estudantes entre o Senegal e outros países.
“Com as nossas ações e corações juntos, podemos ter alguma chance de reverter as tendências atuais de destruição. Dançamos muito na nossa comunidade, felizes ou tristes. A dança cura e nos ajuda a solucionar nossos problemas,” contou.
Juliano Sá, gestor ambiental, mestre em desenvolvimento rural e envolvido em pesquisas referentes à alimentação adequada, ressaltou a importância da retomada das políticas públicas de soberania e da segurança alimentar e nutricional (2003 a 2013), que retiraram o Brasil do mapa da fome das Nações Unidas. “Após o desmonte que atingiu todas as áreas no país nos últimos quatro anos, temos 33 milhões de pessoas sofrendo com a fome e, como ensinou o sociólogo Josué de Castro, a fome expressa um problema social devido às opções econômicas e sociais dos governos”. Juliano também abordou sobre o oligopólio do controle da produção dos alimentos por não mais do que dez grupos econômicos que determinam o que vai à mesa em favor do plantio de commodities e com ênfase na comida ultraprocessada. “São necessárias políticas públicas intersetoriais que dialoguem desde a produção, a qualidade, a saúde e a educação, a comercialização, o acesso, enfim, que integrem as várias áreas. Promover a agroecologia, barrar o pacote do veneno no Congresso e contar com quem crê num mundo sem veneno, como os povos originários,” disse.
Flávia Vivácqua, consultora, facilitadora e terapeuta, abordou o conceito de design regenerativo, que consiste na capacidade humana de pensar, compreender e manifestar culturas regenerativas em diálogo com os povos originários, os saberes ancestrais, e também enfrentar os desafios neste contexto de crises convergentes: climática, econômica, energética e alimentar. “A regeneração não é utopia, é pura sobrevivência, é ligada a capacidade de existência, de manutenção da nossa espécie que é interdependente das demais,” explicou.
Segundo Flávia, as culturas e a biodiversidade evidenciam que não há um único modo de viver. Cabe ao ser humano voltar a se perceber igualmente na natureza através de um resgate da dimensão coletiva, social e ecossistêmica: “Tradições contemplativas dizem sobre aprender com os ciclos naturais, a observação da natureza, os outros seres. A regeneração se dá na coletividade. Regeneração, reintegração, restauração são os processos que nos levarão a sair dos padrões destrutivos e a entrar em padrões de serviço à vida”.
José Cirilo Morinico, Cacique Geral dos Mbyá-Guarani do Rio Grande do Sul, retratou as vivências na aldeia onde reside, localizada em Porto Alegre (RS), e lembrou que práticas diárias dos sul-rio-grandenses, como o churrasco, o chimarrão e a conversa em torno da fogueira, tiveram início no contato dos não-indígenas com os guaranis.
“Quando falamos em educação e saúde, por exemplo, não separamos os temas como a sociedade ocidental faz. A gente fala em coletividade, se alimenta com espiritualidade. Nossa felicidade é se sentir bem, ter espaço, ter a mata, ter plantio de mandioca e batata doce, ter água. Onde moramos tem nascente, pedras, pássaros, a natureza também cura. Felicidade é caçar e trazer o tatu para comermos juntos,” contou.
A importância do controle na exploração dos recursos também foi destacada pelo cacique Cirilo: “A gente compra e tem que saber usar. O arco e a flecha que produzimos é para caçar e alimentar a aldeia. O timbó que batemos na água é para matar só o peixe que vamos comer, não mata tudo. Respeitamos a época de reprodução e deixamos um lugar livre para produzir de novo. A gente tem que saber lidar. Ter esperanças de que a coisa boa vai chegando, que tem o tempo”. O cacique também compartilhou a criação da Universidade Guarani a partir de 2023, novidade festejada com todos os participantes do evento. “Estamos de passagem no mundo, não somos donos, por isso temos que aproveitar nossa vida ajudando o outro”, ensinou.
O cuidado emocional: quais os caminhos para cuidar com lucidez das relações e dos seres?
No terceiro dia de evento, novamente a interdependência é destacada pelos painelistas e o tema da meditação é trazido como fundamental para a saúde da mente.
Lama Samten trouxe a visão social de Sidarta Gautama, o Buda, que amplia a nossa própria visão por considerar o bom senso, a ética e as consequências da causalidade. “Não são ensinamentos transcendentes, mas sim sobre ter bom coração e melhorar nossa própria vida e a dos outros seres, esses temas dialogam com todos onde estiverem, reconhecem a complexidade e a complementaridade”, definiu.
Monja Jigme Chodzin, praticante desde 2003, monja desde 2013 e estudante formal de filosofia Budista na Universidade de Kathmandu, Nepal, falou a respeito da lucidez e da compaixão ensinadas através do Darma. Para ela, a inseparabilidade entre todos os seres é a grande proteção para não sermos arrastados pelas emoções aflitivas: “o budismo é só um meio hábil para resgatar a memória de algo esquecido, é preciso trazer esse ensinamento no nível da experiência, porque não vai funcionar se ficar apenas no nível mental, daí o significado da meditação”.
Lama Gelek, alemão residente em Brasília, psicoterapeuta e estudante do budismo desde 1994, relacionou os ensinamentos à psicologia: “às vezes, a gente não é terreno fértil aos ensinamentos e travamos na prática por não nos sentirmos adequados ou outra razão. E, forçar o surgimento de energia para continuar não ajuda. Importa valorizar os sentimentos e seguir criando um campo curador, para tocar exatamente na qualidade que precisa ser destravada e ter a lucidez necessária. A força que precisamos é o amor que reconhece a necessidade a ser atendida,” disse.
Para Rachel Melo, praticante do Zen com mais de 100 retiros vividos entre Brasil e Japão e fundadora do Projeto Crescendo Zen), a prática da meditação é uma questão de saúde mental e pode ser encarada como uma ferramenta na atualidade. Por isso, criou o Projeto Crescendo Zen de “Meditação Lúdica Para Crianças”. Rachel tem três livros publicados que apresentam o método e a aplicação dos ensinamentos budistas no dia a dia de estudantes de escolas públicas e privadas.
Vanessa Francisco, dançarina, educadora e pedagoga há 20 anos é coordenadora pedagógica da escola Caminho do Meio em Viamão, deu ênfase à importância do uso da sabedoria dos povos originários que convergem com práticas budistas, a exemplo da meditação, do diálogo em roda, do canto diário, da atenção plena e da contemplação da inseparatividade do mundo interno com o externo em uma dimensão integral. “A prática de presença é um legado da tradição budista, de estar aqui encontrando realmente a si e aos outros, no espaço onde se está”, reforça.
Como ampliar o respeito à diversidade religiosa?
O diálogo inter-religioso, que finalizou o ciclo de painéis do 108 Horas de Paz, está presente desde a primeira edição do evento e traz visões profundas de diferentes práticas que convergem para um mesmo fim.
Para Lama Padma Samten, as tradições religiosas surgem da mesma dimensão última, que é a natureza lúcida da mente, e se manifestam para o benefício dos seres que se perderam no caminho, apesar da presença incessante dessa dimensão. “Nós estamos aqui com diferentes aparências, com diferentes cores, mas somos representantes da mesma dimensão última, cujo esquecimento traz sofrimento aos seres”, disse.
O monge beneditino e assessor das comunidades eclesiais de base, Marcelo Barros de Souza, lembrou que, recentemente, grupos religiosos deram testemunho de um deus cruel, violento e a favor de armas, mas que na realidade todas as religiões e todos os caminhos espirituais insistem na transformação interior. Ele acredita que o diálogo pode reconciliar as pessoas, embora haja conflitos, desde uma visão de paz, não violência, e uma espiritualidade nutrida pela amorosidade: “penso que as religiões têm essa missão. Amar é algo que se aprende.”
A cacica da Retomada do Morro Santana, Porto Alegre (RS), Iracema Gã Té Nascimento, inicialmente, apresentou-se no dialeto próprio: “foi assim que minha mãe disse: a voz dos filhos vai ser diferente a se entender”, referindo-se ao ensinamento da Mãe Terra. Na sequência, afirmou que o ser humano possui os distintos dialetos por constituir partes do planeta. “A mãe Terra, aqui, é um paraíso, só que nós, filhos, não reconhecemos e tentamos destruir. Não poderia, não. Nossas árvores, nossas águas, as sementes e as raízes que comemos, ainda destruímos. Nossos encantados nos deram tudo pronto, a água bem limpinha, era só consumir. E, os filhos, era pra dar as mãos, cantar e rezar fortalecendo um ao outro.”
Ivana Warwick, mulher trans e pastora da Igreja da Comunidade Metropolitana de São Paulo, enfatizou o respeito às diferenças entre todas as pessoas e ao exercício dos seus direitos já conquistados na sociedade brasileira. “Precisamos ir além do diálogo e expor as estruturas e o perigo que representam as tentativas de destruir as diversidades. Precisamos exigir o direito que temos aos nossos corpos, gêneros, sexualidades, espiritualidades, sonhos, nas nossas casas, tocar nos assuntos que nos incomodam e seguir adiante.”
Babá Phil de Xangô Agandjú Ibeji, autoridade de matriz africana, afirmou que o diálogo precisa ser constante e que, além de tolerar, é necessário compreender. “Derrubamos preconceitos formando conceitos, e isso só é possível a partir da vivência. É preciso cada matriz religiosa conhecer a outra, ter abertura para experimentar a prática do outro. Somos todos irmãos.”
Eduardo José Santana de Araujo, professor, muçulmano, membro de fóruns sobre diversidade religiosa e igualdade racial, e coordenador do Centro Cultural Islâmico em Recife, defendeu que os participantes persistam irmanados para haver o diálogo e a compreensão mútuas. Ele acredita que as religiões e crenças são como um alicerce para tornar a sociedade mais lúcida. “Façamos com que os ensinamentos das nossas crenças e religiões estejam presentes nas vidas de todos.”
Nos intervalos das mesas aconteceram oficinas de malas gigantes, dança, eventos musicais e venda de produtos orgânicos produzidos pelo MST.
O evento foi gravado e está disponível no youtube. Para ter acesso na íntegra a todas as mesas de conversa, acesse https://108horasdepaz.com.br/
Crédito das imagens: José Paiva
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