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Ensinamentos sobre carma | Parte 2

Com uma habilidade magistral de articular metáforas e exemplos para explicar temas complexos, Dzongsar Rinpoche apresenta a visão budista deste tema tão frequentemente mal entendido


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Revisão: Siddhartha's Intent Brasil
Tradução: Caroline Souza

“Como eu disse antes, os budistas não têm uma tese segundo a qual ‘esta é a causa, a única causa’. Eles não têm isso. E é por essa razão que os budistas não falam de gênese. Eles realmente não gostam de falar de coisas como ‘o começo’. Eles coçam a cabeça instantaneamente quando você usa palavras como ‘início’ e ‘fim’. Simplesmente não sabem o que fazer com você.”

Em julho de 2021, Dzongsar Khyentse Rinpoche ofereceu, desde Los Angeles, um ensinamento on-line sobre carma, um dos temas do budismo mais amplamente discutidos e amplamente mal-entendidos, em suas próprias palavras.

Em parceria com a Siddhartha’s Intent Brasil, a Bodisatva traduziu e editou este ensinamento, cuja parte 1 pode ser conferida aqui. Leia, abaixo, a parte 2, que é a continuidade das perguntas & respostas.


Ok, agora vou tentar ser mais específico. Mas como eu disse antes, o [tema do] carma é muito vasto e não é fácil.

[P]: Como deveríamos entender carma bom e carma ruim?

[DJKR]: Falando em termos gerais, generalizando muito, pode-se dizer que coisas como matar, roubar e mentir são carma ruim. Da mesma forma, quando falamos de consequências cármicas, de um modo geral pode-se dizer que coisas como doença, tristeza e uma vida disfuncional — falando vagamente  — são “meu carma ruim”. Muito amplamente.

Nós, seres humanos, tendemos a pensar “Oh, ele tem muita sorte por ter muito dinheiro”, coisas nesse sentido. Mas isso é muito subjetivo. Desde qual perspectiva estamos decidindo que alguém tem sorte só porque tem muito dinheiro? Algumas pessoas dizem: “Oh, ele deve ter muito mérito, pois viveu muitos anos”. Nós, seres humanos, achamos que coisas como viver muito tempo e ter riquezas são boas. Mas trata-se de uma enorme generalização.

E, com base nesse tipo de generalização, há também muitas generalizações específicas. Por exemplo, alguns budistas pensam que, se você adoece, deve ser porque a sua prática do Darma está reunindo todo o seu carma negativo e fazendo-o acontecer agora para que você não passe por suas consequências mais tarde. Existe esse tipo de generalização. Nós não sabemos isso de fato.

Alguns de vocês devem se lembrar desse exemplo, que já mencionei numa ocasião anterior. Como estou na Califórnia, acho que é seguro comentar. É quase possível dizer que a maconha, o fenômeno dessa erva, levou muitas pessoas para lugares como o Nepal, e posteriormente elas acabaram conhecendo grandes mestres. Portanto, para alguns, a aparência da maconha deve ser uma consequência do seu bom carma. Mas, por favor, não compartilhem isso com outras pessoas [risos].

O comércio de seda entre a China e a Índia provavelmente foi o que fez com que o Budadarma fosse levado para a China. Agora, estou falando enquanto um budista. Desde a perspectiva budista, o carma ser bom ou ruim quase sempre — ou sempre, na verdade — tem a ver com o quanto certas causas e condições estão nos aproximando do Darma ou não.

Há figuras, como o Jigme Lingpa, que olhavam para as pessoas na Terra que tinham tudo, todas as posses materiais com as quais um ser humano pode sonhar, mas que ao longo de suas vidas não ouviram o som do Darma sequer por um momento. Do ponto de vista de Jigme Lingpa, essas pessoas não possuíam um carma positivo.

Portanto, é muito difícil decidir se uma consequência particular é o resultado de mau carma.

[P]: Por favor, você pode explicar a lógica de causa, condição e efeito?

[DJKR]: Antes, falei sobre como causa e efeito produzem uma sensação de lógica. O copo, no sonho, de fato contém a água, mas isso não torna esse copo onírico real no estado acordado. [Ed.: o copo onírico é funcional durante o sonho, o que pode nos fazer achar que ele é real]. Agora estamos falando de um modo muito filosófico. Peço um pouco de paciência àqueles que não estão acostumados.

Muitas vezes, causa e efeito são usados como uma ferramenta para validar algo. No caso do seu passaporte, que é como uma prova da sua existência, uma parte muito importante dele é a data de nascimento. Passaportes costumavam ter até mesmo os nomes da sua mãe e do seu pai, mas não mais. Entendem?

Vou colocar de outra maneira: se você plantar semente de tomate, apenas nascerá um tomateiro. Se plantar semente de laranja, somente pode nascer uma laranjeira. Essa lógica, portanto, nos faz esquecer que se trata de uma ilusão. [Ed.: i.e. nem a semente de tomate, nem o tomateiro, nem a semente de laranja e nem a laranjeira são verdadeiramente existentes]. Pois hoje plantamos laranja e, amanhã, só nascem laranjas, não nascem bananas. Se nascerem bananas, aí sim, ficaremos confusos.

Portanto, há essa legitimação e validação em decorrência da lógica da causa, condição e efeito. Na verdade, os budistas costumam adicionar, ainda, uma outra coisa: causa, condição, ausência de obstáculo e, consequentemente, resultado garantido.

  • Causa: Plantar uma semente de tomate.
  • Condições: Por exemplo, fertilizantes, água, espaço… há muitas. Vamos falar sobre condições logo mais, pois isso é importante.
  • Ausência de obstáculos: Ou seja, nenhum inseto ou pássaro comerem as sementes.
  • Resultado: Assim, mesmo que você reze para que não venham tomates, não vai funcionar. Tomates nascerão de qualquer forma.

Enquanto estamos neste ponto, vamos falar sobre a definição de causa. Vamos examinar causa e condição. Isso é bastante complicado, e acho que por isso já causou inúmeros mal entendidos.

Como eu disse antes, lembrem-se: os budistas não têm uma tese segundo a qual “esta é a causa, a única causa”. Eles não têm isso. E é por essa razão que os budistas não falam de gênese. Eles realmente não gostam de falar de coisas como “o começo”. Eles coçam a cabeça instantaneamente quando você usa palavras como “início” e “fim”. Simplesmente não sabem o que fazer com você. Assim, os budistas não aceitam tal coisa como uma “causa original”.

Agora, há miríades de condições. É incrível, elas são muito vastas! E é aí que as coisas ficam muito difíceis, pois você não consegue abarcar todas as condições que influenciam o funcionamento de causa e efeito. Num nível muito grosseiro, como eu já disse, você pode falar da semente de tomate como sendo a verdadeira causa, e do fertilizante e da água como sendo as condições, mas isso é apenas no nível grosseiro.

Foto: Likuan Wang (Unsplash)

Num nível mais sutil, por exemplo, se você está plantando tomates na Índia e tem como condição, digamos, esterco de vaca como adubo; e digamos que naquela manhã a vaca tenha comido um pedaço de plástico… vocês conseguem entender? Essa condição tem um impacto sobre esse tomate que você irá comer. Mas mesmo isso ainda se encontra num nível muito grosseiro. Há tantas outras condições. Nós não conhecemos a tatatatataravó dessa vaca. Não sabemos de onde ela veio. Jersey, quem sabe? Existem muitas vacas Jersey na Índia.

E a motivação dos fazendeiros ao criar vacas Jersey está relacionada ao fato de que elas dão mais leite. Vocês veem? A motivação. Tenho certeza de que há butaneses ouvindo esse ensinamento. No leste do Butão, há pessoas que preferem beber o leite de uma raça butanesa especial de vacas. Esqueci o nome dessa raça. De qualquer forma, trata-se de uma vaca muito especial que produz pouquíssimo leite, mas supostamente esse leite é realmente precioso e nutritivo, é um leite de categoria ouro.

[P]: Qual é a relação entre motivação e carma? [pergunta editada]

[DJKR]: Agora estou falando de postura humana, de motivação humana. Há pessoas que, como eu, às vezes podem ser meio fanáticas em termos de religião. Então, há algumas que, como eu, vão à Índia e tentam beber leite de vacas indianas, pois têm o pensamento de que, talvez, a octavó dessa vaca indiana posse ter visto de relance o Buda sentado em meditação sob a árvore Bodhi. Uau, que conexão! Vocês entendem? É assim que a motivação opera aqui. Isso seria muito bom, não?

É por essa razão que alguns budistas devotos muito religiosos vão a locais como o Nepal, por exemplo. Pois, em algum lugar nos arredores de Katmandu, muito tempo atrás, muitas centenas e milhares de anos e vidas atrás, o Buda Shakyamuni era apenas um bodisatva que havia recém começado a praticar o Darma, por assim dizer. Era um jovem bonito de cabelos longos e tudo mais.

E um dia, perambulando pelas ruas, ele topou com o Buda Dipankara vindo na sua direção. No momento em que viu o Buda Dipankara, ele se arrepiou. Ele sentiu algo maravilhoso em por esse Buda.

À medida que o Buda Dipankara avançava pela estrada, [o bodisatva] viu que havia uma poça d’água à sua frente. E ele não sabia o que fazer. Então, rapidamente cortou seu cabelo e o usou para cobrir a poça, possibilitando a passagem do Buda Dipankara. Ao passar por ele, o Buda Dipankara disse: “Daqui a muitos éons, você se tornará Siddhartha, Shakyamuni, Gautama”. Ele fez essa profecia.

Desse modo, muitos anos depois, há pessoas, como nós, [que talvez tenham devoção pelo Budadarma]. Não é o todo tempo. Minha devoção aparece lá de vez em quando, quando estou de bom humor. Quando vou a Katmandu, às vezes penso: “talvez essa seja a poça d’água que o Buda Shakyamuni cobriu com o seu cabelo”. Assim, você sente que cada centímetro de Katmandu é extremamente precioso, mesmo que ela seja empoeirada, suja, com cocô e urina por toda parte. Você sente que qualquer lugar pode ser o lugar onde o Buda Dipankara fez a profecia sobre o Buda Shakyamuni. É isso o que chamamos de motivação.

[P]: Pode um ovo cozido ser des-cozido? [pergunta editada]

[DJKR]: Vou responder rapidamente. Porque eu disse mais cedo que, ao cozinhar um ovo, em certo sentido, você pode escolher se quer fazê-lo mole ou mais duro. Mas se você já o cozinhou 99,99%, ou se ele já está completamente cozido, o que você faz? Se quer descozinhar um ovo totalmente cozido, como proceder? Nós ainda temos essa chance?

Sim, nós temos essa chance. E esse caminho se chama Tantrayana. Pois o caminho tântrico não é de fato codependente da filosofia de causa e efeito.

Já usei esse exemplo outras vezes, então alguns de vocês estão bastante acostumados. Para um praticante tântrico, é como dar a um especialista em ouro um quilo de minério — não polido, sujo, pedregoso, nem um pouco brilhante. Mas se você oferece um quilo de minério de ouro a um ourives, um especialista em ouro, ele vai ficar tão feliz quanto ficaria se tivesse ganhado um quilo de ouro [puro]. Ele não vai dizer: “não, ele não está brilhando”. Para o ourives ou especialista, isso é simplesmente ouro. Ele absolutamente não vê as impurezas.

Outro exemplo é o de um cozinheiro muito experiente. Ao preparar um omelete, ainda que [um omelete seja composto de ingredientes como] cebola, cogumelos, tomate e azeite misturados, esse cozinheiro não os vê separadamente. Ele já tem [de antemão] a visão do omelete de cogumelos. É assim que o pessoal do tantra vê a si mesmo e aos outros — já como sendo o Buda. Mas, enfim, não vamos nos aprofundar nesse ponto.

Então, é por isso que algo que já está 100% cozido pode ser descozido. Na verdade, não termina aí. O povo do tantra não vai nem se dar ao trabalho de descozinhar. Cozinhar, descozinhar — tudo isso é exaustivo. Deixe como está.

Como eu disse, o carma é algo muito vasto. Estou pulando para cá e para lá, porque precisamos pelo menos tentar ter uma conversa que faça algum sentido.

Foto: Pawel Czerwinski (Unsplash)

[P]: Qual é a relação entre carma e renascimento? [pergunta editada]

[DJKR]: Carma tem relação com tempo. Talvez “relação” não seja a palavra correta. Carma é quase um sinônimo de tempo. E, portanto, qualquer pessoa que fale sobre carma precisa falar sobre reencarnação. Mas quero adverti-los aqui de que o termo em [português] “reencarnação” talvez não faça jus à tradução do termo original yangsi, ou a esse tipo de continuidade.

Já mencionei o exemplo de como, no sonho, se você está bebendo um copo de água, veneno ou leite — a depender dos tipos de causas e condições — além de o copo ter a capacidade de conter o leite, também há, aparentemente, o tempo. Tempo longo ou curto é muito relativo. Se você é alguém que ama sorvete e, no sonho, está tomando o seu sorvete favorito, o tempo pode passar rápido. E se você odeia sorvete e, no sonho, alguém o força a tomar, talvez o tempo demore muito a passar.

Esta aparente continuação é o aspecto quintessencial da ideia de reencarnação. Isso é algo importante de se saber.

Eu sei que no momento em que a palavra “reencarnação” é usada, muitas pessoas pensam desse modo: “Ok, sou um ser humano agora. Talvez na próxima vida eu me torne um cavalo e trote”, ou coisas do tipo. Isso está bem. Trata-se de um nível muito grosseiro de compreensão da reencarnação. Mas, na verdade, é muito mais do que isso. Pela manhã, alguns de nós estavam muito felizes. Pela tarde, talvez não estejamos felizes. E quem sabe à noite nos sintamos alegres. Cores, manifestação, roupas, postura — tudo isso está mudando. Ao mesmo tempo, há uma continuação.

[P]: Por favor, você pode explicar conexão cármica e débito cármico? [pergunta editada]

[DJKR]: Acho que as pessoas também estão interessadas em saber sobre conexão e débito cármico que são muito relacionados. Como estava falando sobre causas e condições invisíveis… lembram de quando falei sobre a vaca e assim por diante? Isto se aplica aqui.

Pode ser que vocês achem que estou sendo muito romântico aqui, mas talvez neste exato momento, em algum lugar na Bolívia, haja uma pessoa carmicamente conectada a mim. E porque eu estou agitando bastante a minha mão [DJKR movimenta sua mão de um lado para o outro], ela está sentindo isso. Isso é possível.

Assim que entramos nesse assunto, as pessoas dizem: “Agora ele está falando sobre mito. Agora está falando de religião”, mas tudo bem. Que seja. Não importa. Vocês podem pensar assim. Mas lembram da lógica da octavó da vaca? Se aplicarem essa lógica, acho que vão entender isto um pouco mais.

Porque está acontecendo neste exato momento. Entre eu e alguns de vocês. Alguns de nós nem nos conhecemos. Mas aqui estão vocês, sacrificando boas duas ou três horas de um domingo, quando poderiam estar fazendo tantas outras coisas, como nadar, assar um churrasco, etc. Mas em vez disso estão aqui me ouvindo. Então [isso é] débito cármico. Talvez vocês estejam me pagando, ou eu esteja pagando vocês. Nós não sabemos.

Eu sou budista. Estou rodeado de textos budistas. Ainda assim, às vezes escolho ler livros como Kafka à beira-mar, do Murakami. Estou lendo dez páginas, vinte páginas. Alguém está [lá apenas] fazendo um sanduíche, mas eu ainda estou lendo. [Isto é] débito cármico. Estou pagando ao Murakami, ou ele está me pagando, tanto faz.

[P]: Por que deveríamos entender o carma? Por que devemos nos importar com isso?

[DJKR]: Esse ponto é importante. Entender o carma é importante porque todos nós queremos a liberdade. Se você deseja a liberdade, precisa entender como o jogo de causa, condição e efeito opera. [Precisa entender] as regras do jogo, como ele está sendo jogado. É claro que, em última instância, nós, enquanto budistas, não queremos nos envolver com o jogo. É óbvio que este é o objetivo final. Mas visto que agora nós já começamos a jogar o jogo, enquanto buscamos não mais jogá-lo, precisamos finalizá-lo, por assim dizer.

O que isso significa? Isso quer dizer que todos os sistemas que nós acreditamos que irão funcionar, como o socialismo, a democracia, as eleições, isso e aquilo — de fato, nós não sabemos. Pensamos que eles estão dando certo, mas é um pouco como o leite ou a água sanitária no sonho.

E, por último, por meio da compreensão do carma, vocês perceberão que nada é independente ou verdadeiramente existente de forma isolada. E isso os ajudará a ter uma perspectiva mais ampla de suas próprias vidas. Vocês querem ser bons gerentes, bons líderes, namorados, namoradas, pais, mães? Penso que entender o carma — como o jogo é jogado e suas regras — acho que isso pode ajudar.

Basicamente, essa é uma tentativa muito grosseira de explicar o carma desde diferentes ângulos. Obviamente, este é um assunto muito difícil e eu espero ter respondido algumas das suas perguntas. Acho que posso responder três perguntas ao vivo.

[P]: Você pode falar sobre carma coletivo? Existe esse termo? Isso de fato existe?

[DJKR]: Muito bom. Esse assunto também é muito vasto. Para começar, tenha em mente que “coletivo” é uma linguagem muito geral. Há cerca de vinte pessoas aqui, e estamos todos olhando para uma árvore. E a maioria dessas pessoas diante de mim são seres humanos, eu suponho, o que significa que nos é ensinado que algo assim, que tem folhas, galhos e uma raiz que cresce e adentra a terra, é uma árvore. Estou falando de “coletivo”. Trata-se de uma generalização muito grande, pois alguns de vocês aqui talvez sejam alérgicos a essa árvore. Então seria algo específico de vocês.

E muitas das pessoas que estão aqui agora não estão olhando para essa árvore. Sinto muito, mas vocês e eu não temos o carma coletivo de ter a experiência de ver essa árvore. Mas penso que temos o carma coletivo de ouvir sobre ela. Isso é apenas um exemplo.

Penso que um grande [carma] é o vírus [COVID-19] que está circulando neste momento. Talvez essa seja uma enorme experiência cármica coletiva que estamos tendo. Ela é boa ou ruim? Uau! É tão difícil dizer. Entre os seres humanos, acho que podemos dizer que se trata de algo ruim. Mas ouvi que muitos animais estão passando bem. Vocês veem? Novamente, bom e ruim são coisas muito subjetivas.

E quanto a nós, seguidores do Buda, é nosso carma coletivo o fato de o Buda Shakyamuni ter vindo à Terra e de os seus ensinamentos ainda estarem vivos. Ok, próxima pergunta.

Foto: Corey Agopian (Unsplash)

[P]: Qual é a relação entre bom carma e mérito? Há alguma diferença entre os dois?

[DJKR]: Mérito, novamente, é uma palavra complexa. Penso que esse termo [“merit”, em inglês] não traduz adequadamente o termo sânscrito punya. Esta é uma pergunta importante, então vou explicar um pouco. Eu acho que é uma questão fundamental sobre ética, não é?

Primeiramente, por favor, lembrem-se de que coisas como moralidade e ética são secundárias no budismo. Se a sabedoria, a compaixão e a moralidade saíssem juntas para dar uma volta de carro, a sabedoria seria a motorista, a compaixão sentaria ao seu lado no banco da frente, e a moralidade iria no banco de trás, ou até mesmo no bagageiro. Estou exagerando um pouco aqui para promover a sabedoria e a compaixão.

Em última instância, a quintessência [do Budadarma é] a não dualidade. A ética, [por outro lado,] é tão dualista. Há a coisa certa a se fazer, a coisa errada a se fazer. Então a sabedoria precisa ultrapassar essa dualidade.

Existem muitas razões para isso, mas [vou mencionar] uma. Como você define o que é [eticamente] correto? Como decide? Bem, você utiliza uma lógica bastante relativa. Você não faz para os outros aquilo de que não gosta. Acho que existe uma expressão sobre isso [em tibetano]: “use o seu próprio corpo e sua própria experiência como exemplos. E não faça para os outros aquilo de que não gosta.” Isso tudo é relativo.

[Por exemplo,] eu não gosto de levar socos. Portanto, eu também não dou socos em outras pessoas, pois estou presumindo que a outra pessoa, [que também é] um ser humano, igualmente não gosta de levar socos. Vamos imaginar que eu migrei para Marte, e, lá, a coisa mais íntima a se fazer é dar um soco em alguém. E digamos que eu tenha permanecido lá dez anos. Bem, no primeiro ano eu ainda tinha uma desculpa, pois não conheço a cultura e os hábitos. Mas já estou lá há dez anos e sei que eles amam ser socados. Se eu não lhes der um soco, não sei se isso gera carma bom ou ruim. Vocês deveriam refletir sobre isso.

[P]: Pode alguém tomar para si as consequências cármicas dos seres sencientes?

[DJKR]: Tentarei explicar esse ponto. Mas, por favor, não gostaria que vocês entendessem isso desde um viés teísta. O próprio Buda disse que não é capaz de eliminar o seu sofrimento. Ele pode somente ensiná-lo o caminho para que você se libere do sofrimento e das causas do sofrimento.

Mas os bodisatvas oram: “Que todo o sofrimento dos seres recaia sobre mim”. Para os bodisatvas iniciantes, essa é uma prática quintessencial. Ela serve [como um meio hábil] em muitos níveis diferentes. Num dos níveis, os bodisatvas estão tentando verdadeiramente esmagar o auto apreço. Então, eles fazem essa prática. Em outro nível, eles estão tentando se colocar no lugar dos outros. Então eles praticam nesse nível.

E, em última instância, os bodisatvas estão aprendendo a consumar a experiência da ausência do eu e do outro, a não dualidade. Assim, para se familiarizar com a atitude da não dualidade, eles aplicam o método de pensar de forma oposta ao pensamento usual. Por exemplo, normalmente, quando sofremos, a primeira coisa em que pensamos é em nós mesmos. Os bodisatvas, contudo, treinam para não pensar deste modo.

Portanto, a verdadeira resposta é que, devido ao poder da aspiração e da bodicita dos bodisatvas, eles são capazes de tomar para si o sofrimento dos seres sencientes. Além disso, eles não praticam unicamente com o propósito de tomar para si todo o sofrimento dos outros. Essa parte é complexa. Talvez vocês entendam isso de uma maneira errada, então estou um pouco preocupado: [a sua prática] pode aliviar o sofrimento dos outros, mas no momento em que esse sofrimento alcança o próprio bodisatva, ele já não é mais sofrimento. Shantideva disse isso de modo bem claro.

Acredito que, para a maioria dos nossos ouvidos, isso não vai cair bem. “Para um bodisatva, é uma alegria quando o sofrimento dos outros é redirecionado para ele próprio. Assim, já não é mais sofrimento”: vocês conseguem entender a lógica? Não pensem que um bodisatva é um masoquista ou algo assim.

Isso é algo possível de ser feito. Existe todo um treinamento. Mesmo que você seja a pessoa mais mesquinha de todas, pode aprender a ser generosa. Primeiro, você aprende a dar com a sua mão esquerda para a mão direita. É sério. Realmente existe uma prática na qual nossa mão esquerda oferece para a mão direita 100.000 vezes. Depois, talvez você possa oferecer um chiclete a outra pessoa. Essa parte eu inventei. Shantideva falou em [oferecer] um legume. Você vai treinando. Finalmente, um dia, quando alguém quiser o seu braço esquerdo, sem problemas! Você o dará a essa pessoa com a mesma facilidade com que se desfez do seu chiclete.

Não acho que as pessoas comuns consigam entender isso. Mas, na verdade, não é tão difícil de compreender, se analisar um pouco. Se você possui muitos bichinhos de pelúcia ou bonecas na sua casa, na sua sala, e eles estão ocupando espaço demais, você não tem problemas em dá-los, certo? Pois você já percebeu que isso é só um bicho de pelúcia, não é um urso de verdade.

É isso. Muito obrigado! Espero que isso sirva como um início de discussão sobre o carma. Carma é algo muito vasto. Há um sutra chamado “Sutra do broto de arroz”. Se tiverem interesse, podem dar uma olhada. Vocês podem começar como pessoas que temem o carma. Mas, com sorte, transcenderão do temor para a compreensão. E então, quiçá, vocês se livrarão de todos os tipos de carma, incluindo o carma ruim, claro, mas também o bom.

Ok, obrigado!


Agradecemos a Siddhartha’s Intent Brasil pela autorização para publicar este ensinamento.


Acesse aqui o vídeo da segunda parte:

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1 Comentário

  1. E como dizia a musiquinha: eu presto atenção no que eles dizem, mas eles não dizem nada

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