Tradução de fragmento do Nobre Sūtra Mahāyāna
Enquanto o Buda encontra-se no Bosque Jeta, ele pede que Mañjuśrī ensine sobre a natureza da realidade. O relato de Mañjuśrī perturba alguns dos monges presentes na assembleia, que posteriormente se retiram. No entanto, por meio de uma emanação, Mañjuśrī habilmente ensina os monges contrariados, que retornam ao Bosque Jeta para expressar sua gratidão. Os monges explicam que seu obstáculo foi um senso presunçoso de realização, do qual eles agora estavam livres. Este precioso fragmento do sutra foi traduzido do projeto “84.000 Traduzindo as Palavras do Buda” pelo tutor e praticante do CEBB Guilherme Erhardt. Que seja de benefício.
O Ensinamento sobre a Natureza Indivisível do Reino dos Fenômenos
[1.1] [F.140.b] [B1] Homenagem a todos os budas e bodisatvas!
Assim eu ouvi certa vez. O Abençoado estava no bosque Jeta, no parque de Anāthapiṇḍada em Śrāvastī. Ele estava residindo ali com uma grande saṅgha de oito mil monges, e doze mil bodisatvas de vários reinos búdicos, e trinta e dois mil deuses, que haviam alcançado genuinamente o despertar insuperável e perfeito. O jovem Mañjuśrī e o deus Ratnavara também se juntaram ao encontro e estavam ali presentes.
[1.2] Ratnavara naquele momento pensou consigo: “Se o Abençoado incentivar o jovem Mañjuśrī a ensinar o Darma, ele certamente ensinará de modo que todas as moradas dos māras sejam subjugadas e Māra, o maligno, se desespere. Ele ensinará de modo que todos os opositores sejam vencidos, e para que aqueles que possuem orgulho excessivo se libertem de seu orgulho e revelem seus conhecimentos (1). Ele ensinará de modo que aqueles engajados em práticas ióguicas alcancem sua fruição, e de modo que aqueles que já alcançaram a fruição se destaquem ainda mais. Desta forma, a linhagem do Buda, do Darma e da Saṅgha continuará intacta, de forma que inúmeros seres gerem a mente do despertar. O despertar que Aquele Que Assim se Foi obteve ao longo de incalculáveis éons permanecerá e se expandirá por muito tempo. Quer Aquele Que Assim se Foi permaneça ou passe inteiramente para o nirvāṇa, os ensinamentos do Darma [F.141.a] farão com que, aqueles que o ouvirem, rapidamente passem além do sofrimento por meio de qualquer veículo que inspire-os. Como seria maravilhoso se o jovem Mañjuśrī concedesse tal ensinamento!”.
[1.3] O Abençoado soube em sua mente o que o deus Ratnavara estava pensando, e assim ele disse ao jovem Mañjuśrī: “Mañjuśrī, a assembleia aqui reunida deseja ouvir o Darma de você. Portanto, por favor, prossiga e diga algumas palavras àqueles aqui reunidos.”
[1.4] Em resposta, o jovem Mañjuśrī perguntou: “Abençoado, por onde devo começar meu ensinamento?” “Mañjuśrī”, respondeu o Abençoado, “você deve começar ensinando a natureza do reino dos fenômenos.”
[1.5] “Mas Abençoado”, respondeu o jovem Mañjuśrī, “todos os fenômenos são a natureza do reino dos fenômenos. Portanto, Abençoado, a natureza do reino dos fenômenos não pode ser um tema de discussão ou de estudo. Então, Abençoado, como eu poderia começar meu ensinamento com a natureza do reino dos fenômenos?”
O Abençoado disse: “Mañjuśrī, se aqueles que estão tomados por orgulho excessivo ouvirem esse ensinamento, isso os intimidará.”
[1.6] “Aqueles que ficam intimidados”, disse Mañjuśrī, “eles mesmos têm a natureza do reino dos fenômenos, e a natureza do reino dos fenômenos não se intimida.”
[1.7] Nesse momento, o venerável Śāradvatīputra dirigiu-se ao jovem Mañjuśrī. Ele disse: “Mañjuśrī, você diz que todos os fenômenos são a natureza do reino dos fenômenos. Mas dentro da natureza do reino dos fenômenos não há aflição, nem há purificação. Como é, então, que os seres sencientes ficam aflitos, ou se purificam?”
Mañjuśrī respondeu: “Venerável Śāradvatīputra, os seres imaturos e comuns são acometidos pelas falhas da visão da coleção transitória. Naqueles onde persiste a crença em “eu” e “meu” surge a concepção de “essência pessoal” e do outro. [F.141.b] Naqueles que concebem a essência pessoal e os outros, surge uma mente virtuosa e não-virtuosa e os estados mentais que dela decorrem; então, essa mente e os fatores que dela decorrem condicionam a formação de ações virtuosas e não-virtuosas, e para eles, essas causas e essas condições produzem suas formas específicas de amadurecimento de acordo com suas naturezas particulares (2) Venerável Śāradvatīputra, enquanto tais seres nascem dentro dos domínios da existência, isso é o que chamamos de aflição.”
[1.8] “Entretanto, venerável Śāradvatīputra, a aflição é a própria natureza do reino dos fenômenos. Portanto, saber que a aflição é, de fato, a própria natureza do reino dos fenômenos é o que chamamos de purificação. Em última análise, não há aflição ou purificação e nada é aflito ou purificado.”
[1.9] Quando o jovem Mañjuśrī deu este ensinamento, cem monges orgulhosos liberaram suas mentes dos obscurecimentos, sem qualquer apropriação posterior.
[1.10] Então, o venerável Śāradvatīputra disse ao jovem Mañjuśrī: “Mañjuśrī, enquanto você dava este ensinamento, cem monges orgulhosos liberaram suas mentes dos obscurecimentos sem qualquer resquício de apropriação. Mañjuśrī, o reino dos fenômenos está emanando de você!”
[1.11] Mañjuśrī disse: “Venerável Śāradvatīputra, o que você acha? A natureza do reino dos fenômenos é algo que estava presa no passado e que mais tarde foi liberada?”
“Mañjuśrī, a natureza do reino dos fenômenos não estava presa no passado, nem é liberada mais tarde.”
[1.12] “Bem, venerável Śāradvatīputra, de que estado mental esses monges foram liberados?”
“Mañjuśrī, Aquele Que Assim se Foi treinou muitos ouvintes, e portanto suas mentes estão liberadas dos obscurecimentos sem qualquer resquício de apropriação.”
[1.13] “Venerável Śāradvatīputra, você é um dos ouvintes d´Aquele Que Assim se Foi?” [F.142.a]
“Eu sou, Mañjuśrī. Eu sou um dos ouvintes d´Aquele Que Assim se Foi.”
[1.14] “Venerável Śāradvatīputra, sua mente está livre da apropriação e liberada dos obscurecimentos?”
“É verdade, Mañjuśrī, ela está liberada.”
[1.15] “Venerável Śāradvatīputra, sua mente foi liberada no passado, será liberada no futuro, ou está sendo liberada no presente? Venerável Śāradvatīputra, a característica da mente do passado é que ela já cessou, a característica da mente do futuro é que ela ainda não surgiu, e a característica da mente do presente é que ela não permanece. Assim sendo, venerável Śāradvatīputra, em qual desses momentos está a liberação da sua mente?”
O venerável Śāradvatīputra respondeu: “Mañjuśrī, esta mente não foi liberada no passado, não está sendo liberada no presente, tampouco será no futuro.”
[1.16] Mañjuśrī respondeu: “Bem, então, venerável Śāradvatīputra, o que é essa sua mente liberada?”
Śāradvatīputra respondeu: “Mañjuśrī, é somente em termos relativos que se diz que uma mente é liberada. Em última análise, não há nenhuma mente presa ou liberada a ser observada.”
[1.17] Mañjuśrī lhe perguntou: “Você diria que a natureza dos reinos dos fenômenos é relativa ou absoluta?”
Śāradvatīputra respondeu: “Mañjuśrī, na natureza do reino dos fenômenos nem o relativo nem o absoluto podem ser observados.”
[1.18] Mañjuśrī lhe perguntou: “Então, Venerável Śāradvatīputra, como você pode declarar que a mente está liberada em termos relativos?”
Śāradvatīputra perguntou: “Então, Mañjuśrī, não há nenhuma mente que seja liberada de forma alguma?”
Mañjuśrī respondeu: “Venerável Śāradvatīputra, se houvesse uma mente a ser observada por dentro, por fora, ou no meio, então também poderia haver uma mente liberada. Entretanto, venerável Śāradvatīputra, não há mente a ser observada por dentro, por fora, ou no meio e, portanto, não há qualquer tipo de prisão ou liberação.” [F.142.b]
[1.19] Naquele momento, duzentos monges daquela assembleia ouviram este ensinamento de Mañjuśrī e se levantaram de seus assentos, preparando-se para partir. Eles disseram: “Se ninguém jamais foi liberado e ninguém será, de que adianta avançarmos e fazermos votos para nos tornar monges? Se a liberação não existe de forma alguma, de que serviria então treinar no caminho?” Desaprovando e desconcertados, eles então deixaram a assembleia.
[1.20] Considerando o que deveria ser feito para treinar esses monges, o jovem Mañjuśrī projetou uma emanação sob a forma de um monge na estrada diante deles.
[1.21] Ao encontrarem a emanação, os monges lhe perguntaram: “De onde você vem, venerável?”
“Veneráveis”, respondeu ele, “Não desejo participar do ensinamento do Darma que o jovem Mañjuśrī agora está dando. Não o entendo, não estou interessado nele e não acredito nele. Por isso, deixei a reunião.”
[1.22] Os duzentos monges concordaram: “Também não queremos estar presentes no ensinamento do Darma de Mañjuśrī. Não o entendemos, não estamos interessados nele e não acreditamos nele. Portanto, também deixamos a reunião.”
[1.23] Dirigindo-se aos duzentos monges, o monge emanado lhes perguntou: “Quais foram os pontos desagradáveis no ensinamento do Darma de Mañjuśrī que os fizeram sair da reunião?”
Os monges responderam: “Venerável, o jovem Mañjuśrī declarou que nunca ninguém alcança nada, e que não existe tal coisa como obter realização e a liberação. Naquele momento pensamos, se ninguém jamais alcança qualquer realização, compreensão ou liberação, então qual seria o propósito de avançarmos, e por que deveríamos ter feito votos para nos tornarmos monges? [F.143.a] Por que deveríamos observar o celibato? Se não houvesse nenhuma liberação, a que propósito serviria treinar no caminho? Foi com estes pensamentos em mente que deixamos a reunião.”
[1.24] O monge emanado perguntou ao grupo: “Veneráveis, vocês simplesmente saíram porque não apreciaram o que estava sendo dito? Ou vocês rejeitaram o ensinamento e expressaram seu descontentamento com palavras?”
Eles responderam: “Nós simplesmente saímos porque não gostamos. Não rejeitamos o ensinamento, nem ao partirmos dissemos nada desagradável.”
[1.25] “Muito bem”, disse o monge emanado. “Veneráveis, abster-se de disputas é o principal treinamento para os praticantes espirituais. Portanto, sem dizer nada ofensivo e sem argumentar contra este ensinamento, vamos tentar segui-lo por um tempo.
Veneráveis, vocês diriam que a mente é azul, ou é amarela? Ou é vermelha ou branca? Ou vocês diriam que é semelhante à cor de uma granza (3), ou de um cristal? É real, ou devemos chamá-la de irreal? É permanente, ou vocês diriam que é impermanente? Tem uma forma, ou vocês diriam que é sem forma?”
Os monges responderam: “Venerável, a mente não tem nenhuma forma e não pode ser mostrada. Ela não tem aparência ainda que seja desimpedida. Não tem localização e é imperceptível.”
[1.26] O monge emanado perguntou, então, ao grupo: “Veneráveis, a mente que não tem forma e não pode ser mostrada, que não tem aparência, que é desimpedida, que não tem localização e que é imperceptível—vocês acham que ela deve ser observada como algo que pode ser apontado como localizado dentro? Ou se localiza fora? Ou se localiza no meio?”
“Não, não é nada disso”, disseram os monges.
[1.27] Então a emanação continuou: “Se a mente não tem forma, não pode ser mostrada, não tem aparência, é desimpedida, [F.143.b] sem localização, e imperceptível, se não pode ser observada dentro, nem fora, nem no meio, vocês acham que ela é real e determinada?”
“Não, não é”, responderam os monges.
[1.28] “Vocês, veneráveis, pensam que uma mente que não é real e não é determinada pode, mesmo assim, ser liberada?”
“Não, não pode”, responderam eles.
[1.29] “Veneráveis”, continuou a emanação, “agora considerem o ensinamento do jovem Mañjuśrī. Ele disse que na natureza do reino dos fenômenos não há nem aflição nem purificação. Veneráveis, as mentes dos seres infantis e comuns acometidos por enganos dão origem à crença no ‘eu’ e no ‘meu’. Ao persistirem nessa crença no ‘eu’ e no ‘meu’, eles se envolvem continuamente com objetos e se fixam a eles. Como tal, uma mente que surge da observação vem à existência, mas quando essa observação termina, essa mente também termina, desintegra-se e não permanece mais.”
[1.30] “É a mente observadora que vai adiante, faz votos e se torna um monge. No entanto, a mente que pratica o caminho não tem existência intrínseca, não é real e não existe. E aquilo que é inexistente, irreal e não ocorre, não conhece nem o surgimento, nem a desintegração, nem a permanência. O que nem surge, nem se desintegra, nem permanece, não pode ser atado e não pode ser liberado. Ela não conhece nem realização nem compreensão.” Veneráveis, foi com isto em mente que o jovem Mañjuśrī disse: “Na natureza do reino dos fenômenos não há nem aflição nem purificação. Ninguém jamais alcança nada; não há realização e não há liberação.”
[1.31] Quando o monge emanado lhes deu este ensinamento, [F.144.a] as mentes dos monges, livres de apropriações, foram liberadas dos obscurecimentos. Com suas mentes liberadas, eles agora retornaram ao jovem Mañjuśrī. Cobrindo-se com suas vestes superiores, eles se dirigiram a ele da seguinte forma: “Mañjuśrī, você nos protegeu! Evitamos desistir do Darma e, a partir de agora, jamais renunciaremos à prática do profundo Darma do Vinaya.”
(1) Tib. shes pa brda sprod pa ‘gyur ba. Este termo complexo aparece frequentemente neste sūtra. Seguindo Mahāvyutpatti 6419, o equivalente em sânscrito é ājñāvyākaraṇa. Em sâns. ājñā significa “instrução”, “comando” ou “ordem”, e vyākaraṇa e o verbo vyākaroti significam ” justificar/explicar”, ” profetizar/propiciar”, ” análise/analisar”, ” esclarecimento/elucidação”, ou apenas “mostrar”, “revelar/revelação” ou “manifestar/manifestação” (ver Monier-Williams s.v. vyākaraṇa). No entanto, no Buddhist Hybrid Sanskrit Grammar and Dictionary (Edgerton 1953) s.v. ājñā, vemos que ājñā (tib. shes pa), em textos budistas, tem o sentido de “conhecimento correto”, e que é um uso próximo ao aññā equivalente em Pāli, que significa o tipo de conhecimento que acompanha um arhat. Aññaṅ vyākaroti é explicado no Pali Text Society’s Pali-English Dictionary como “manifestar o próprio estado de arhat (por um discurso ou por mera exclamação).” Ver Pali Text Society s.v. aññā: “conhecimento, reconhecimento, conhecimento correto, insight filosófico, conhecimento por excelência, ou seja, Estado de Arhat.” Com base nestas considerações, traduzimos vyākaraṇa como “revelar” e ājñā como “conhecimento”, chegando assim aqui a “revelação de seu conhecimento”.
(2) O Kangyur de Degé aqui apresenta: de dag la rgyu de dang rkyen de dang ngo bo nyid de’i rnam par smin pa nyid mngon par ’grub par ’gyur ro. Entretanto, o Kangyur do Palácio Stok apresenta: de dag la rgyu de dang rkyen de dag ngo bo nyid de’i rnam par smin pa nyid mngon par ’grub par ’gyur ro, que parece mais provável estar correto, apesar de podermos observar que o Kangyur Shey apresenta o mesmo que o de Degé. Os Kangyurs de Kangxi, Lithang, e Choné arriscam …rgyu de dang rkyen de dag dang ngo bo nyid…
(3) Planta rubiácea
Apoiadores