Publicamos a primeira parte do ensinamento sobre carma oferecido por Dzongsar Khyentse Rinpoche em Los Angeles, em julho de 2021
“Carma é um tópico que tem sido amplamente discutido e amplamente mal compreendido. Em um nível, a lei de causa e efeito parece muito lógica, mas à medida que examinamos as complexidades das causas e condições, o conceito de carma torna-se realmente profundo e vasto. O carma é frequentemente caracterizado como bom ou ruim: conceitos vagos e subjetivos. Na verdade, o carma opera em um nível relativo e não absoluto e, em última análise, é uma ilusão extremamente poderosa. Nosso objetivo não é coletar o bom carma e evitar o mau carma, mas libertar a nós mesmos e aos outros da ilusão do carma”.
A tradução e revisão é uma parceria entre a Bodisatva e a Siddhartha’s Intent Brasil. A segunda parte deste ensinamento pode ser conferida clicando aqui.
O carma é um tema que tem sido repetido bilhões de vezes, e que vem sendo continuamente mal-entendido bilhões de vezes. Eu diria que, sem dúvida, o tema do carma é provavelmente o mais difícil de se ensinar e compreender.
À primeira vista, quando falamos sobre carma no contexto de causa e efeito, até certo ponto isso é algo aceitável [i.e. algo que nós conseguimos aceitar]. Isto é, é algo digerível, por assim dizer. É até bastante científico. A filosofia do carma, provavelmente, é algo de que muitos budistas meio que se orgulham. Somos seguidores do carma.
Não existe a expressão “Uma nação que teme a Deus”? Não acho que seja realmente possível haver esse tipo de expressão: “uma nação que teme ao carma”. Não acho que isso possa existir. Mas as pessoas agem assim. Às vezes, quando falamos sobre o carma, podemos sentir que os budistas falam como se tivessem medo do carma. Então, temos que ter cuidado aqui.
Quando abordamos o nível grosseiro do carma — por exemplo, se você plantar arroz, vai nascer arroz; se plantar cravos, cravos nascerão — penso que, de modo geral, as pessoas conseguem mais ou menos aceitar esse nível do carma. Mas uma vez que embarcamos nos aspectos mais sutis e refinados, o carma se torna bastante profundo e vasto.
Os budistas diriam algo assim: “Deus não nos criou. Somos criados pelo carma.” Então, às vezes, essa expressão indica que a nossa sina ou destino está nas nossas mãos, por assim dizer. Carma. Somos um produto final do carma. Não somos controlados por Deus.
Mas não é tão simples assim:
Portanto, isso deveria deixar claro que o carma não é destino. Carma não é sina. No entanto, carma não tem nada a ver com livre arbítrio. Não tem nada a ver com destino nem com livre arbítrio. Pois, quando falamos sobre destino ou livre arbítrio no mundo convencional, parece que as pessoas estão falando de uma conclusão a que se chega após uma análise. Peço desculpas por apresentar de um modo tão acadêmico, mas essa é a única maneira por enquanto. Porque o carma é, na verdade, relativo. Ele não é absoluto.
Há muitas pessoas que pensam: “Oh, você é budista. Você deve ser uma dessas pessoas que buscam acumular bom carma e se livrar do carma ruim”. Errado. Essa é uma forma errada de colocar a questão. Os budistas querem ir além do carma, seja bom ou ruim. Porque, da perspectiva budista, o carma é uma ilusão. Mas ainda assim é muito poderoso. O termo “ilusão” não deveria levá-los a desvalorizar o carma. Não, ele é muito poderoso. A ilusão é, na verdade, muito poderosa.
Se estou sonhando com um copo de água [DJKR pega um copo de água], no meu sonho, esse copo onírico é capaz de conter água onírica [DJKR bebe um pouco de água do copo]. E no meu sonho, quando eu bebo, há até mesmo uma experiência de tempo. Água. Início do gole. Muito, muito lentamente ela desce pela garganta e chega no estômago. Até mesmo o tempo existe no sonho.
E então? De repente você percebe que estava tomando água sanitária. Isso se chama “pesadelo”. Sim, e nesse sonho você pode ligar para a emergência. E a ambulância pode chegar e você pode ir para o hospital. Você pode fazer tudo isso. Chegada no hospital. Quase morte. Alguém te salva. Tudo isso você consegue fazer.
Na realidade, em nenhum momento isso aconteceu. Talvez você tenha apenas cochilado por dois minutos depois de um almoço pesado. E você não se moveu do seu sofá nem um centímetro. Mas a lógica, o jogo [do carma] — ainda que não esteja realmente acontecendo, ele tem todo o impacto. Carma ruim, carma bom. Por favor, pensem dentro desse contexto.
Quando nós falamos em predestinação ou livre arbítrio, não estamos falando do sonho. O copo no sonho, a água no sonho, a água sanitária no sonho, a emergência. [Se você está falando sobre predestinação], está falando da realidade verdadeira, que é algo que não pode ser mudado, certo? Destino. Algo que você não pode evitar.
Penso que já falamos o suficiente sobre a compreensão geral do assim chamado “carma” no budismo, e talvez o modo como eu expliquei tenha um sabor um pouco Mahayana.
Há muitas perguntas aqui. Provavelmente não vou conseguir responder todas elas, mas acredito que muitas das coisas que estou trazendo, espero, já estão tratando das questões que vocês elaboraram. Então agora, sendo mais específico:
[P]: Enquanto um budista, como você aplica o entendimento do carma?
[DJKR]: Já disse que, em última instância, o objetivo de um budista não tem nada a ver com acumular muitos e muitos carmas bons e se livrar de muitos e muitos carmas ruins. Nosso propósito é se libertar do pesadelo, se libertar da ilusão do carma. Esse é o objetivo último.
Mas, enquanto isso, aqueles que não tem [têm] nenhuma pista sobre o aspecto ilusório do carma precisam de um caminho. Eles podem até ter uma pequena pista, mas seu hábito de achar que a ilusão é real é tão forte, que a sua compreensão intelectual não é suficiente [para que eles superem esperança e medo].
Então, aqueles de nós que desejam se desemaranhar ou se libertar desse emaranhado e prisão do carma fazem o quê? Aplicamos três tipos do que chamamos de “disciplina”. No budismo, podemos falar de três disciplinas:
Dessas três — ética, foco ou concentração ou samadhi e prajña —, a terceira, prajña ou sabedoria, é a mais importante. Sem prajña ou sabedoria, [a] ética e [a] concentração não se qualificam realmente como o caminho budista, por assim dizer.
Pois, no budismo, qualquer que seja a disciplina que você esteja aplicando, ela deve ajudá-lo pelo menos a chegar mais perto da verdade. Por exemplo, uma das disciplinas da assim chamada prática budista é sentar. Trata-se de uma prática bem simples. Se essa disciplina de sentar com a coluna ereta não está aproximando-o da verdade de forma alguma, então ela não está funcionando.
[P]: Qual é a verdade que nós desejamos realizar enquanto budistas?
[DJKR]: Caso haja pessoas novas, digamos que [a verdade que nós desejamos entender inclui] a verdade da impermanência. O fato de que vamos morrer. A verdade de que estamos morrendo, em realidade. Essa verdade precisa ser realizada não apenas no nível intelectual, mas também no prático. E nós também aspiramos realizar a verdade de que as coisas não são realmente existentes da maneira como elas aparecem. Essa verdade precisa ser entendida ou consumada. Não apenas intelectualmente, mas em seu aspecto prático.
Se uma mudança de estação ou um pôr do sol o fazem perceber melhor a natureza mutável da nossa vida do que sentar-se em um templo, esse método de observar um pôr do sol é considerado uma disciplina de ética, e uma disciplina de samadhi ou concentração.
[P]: De que modo o carma se relaciona com a nossa motivação?
[DJKR]: Muitas vezes quando falamos sobre carma, as pessoas parecem apenas tratar do carma em relação ao corpo. E talvez algumas, aparentemente, falem do carma relacionado à fala. Mas quase ninguém fala ou pensa sobre o carma relacionado à mente, quando, na verdade, o carma criado pela mente é o mais importante e o mais poderoso. E essa, provavelmente, é uma grande diferença entre a noção budista e a noção assim chamada hinduísta de carma.
Assim, o carma da mente — em outras palavras, a motivação —, a motivação correta, sobretudo a motivação bodhicitta, o desejo de iluminar e despertar todos os seres sencientes…[,] com esse tipo de motivação, basicamente todas as ações nas quais nos engajamos se tornam aquilo que chamamos de bom carma. Mas esse não é nosso propósito, ou nosso principal objetivo. Geramos o assim chamado carma positivo — novamente, apenas para lembrar-lhes, o carma bom é algo que nos aproxima da verdade —, mas esse carma positivo também precisa se esgotar.
Agradecemos a Siddhartha’s Intent Brasil pela autorização para publicar este ensinamento.
Acesse aqui o vídeo da primeira parte:
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3 Comentários
Sempre tive esta confusão. Associava carma à erros pecaminosos do passado, e isso gerava culpa que nunca conseguia pagar. Agora ficou mais claro e lúcido pra mim
Gratidão, uma profunda imersão no tema🙏
Obrigada!
Quando virá a segunda parte?
Gostaria muito de continuar a ler esse ensinamento. 🙏