Entrevista com Monge Koho Mello:

uma experiência no retiro de Auschwitz-Birkenau.


Por
Revisão: Cristiane Schardosim
Edição: André Luís Daguerre
Transcrição: Ivandro Cardoso e André Luís Daguerre
Entrevista por: Elen César, André Daguerre, Edimar e Bruno Meneghatti

Entrevista feita ao Monge Koho Mello pela equipe da Bodisatva sobre as práticas e o dia a dia de um retiro realizado num campo de concentração em Auschwitz, Sul da Polônia. Nesta entrevista, Monge Koho responde às nossas perguntas a partir de uma genuína simplicidade e sinceridade de quem faz da sua vida uma natural entrega à prática da lucidez em meio à ação no mundo. 


Bodisatva – Bom dia, Monge Koho, bom dia, pessoal. Antes de mais nada, a Bodisatva não pode deixar de dizer da grande alegria de fazer  esta entrevista; muito obrigado por esta oportunidade. O Monge Koho poderia dizer algumas palavras sobre o campo de concentração, sobre Auschwitz, e como foi o seu início nesse retiro e depois oferecendo-o, também.

Monge Koho – Bom dia, André, bom dia a todos. Eu posso falar dentro da minha limitada competência histórica, sim, mas o que é importante, é saber que os campos surgiram como um movimento de formação de mentalidade. Eles foram um exemplo extremo do que se pode fazer quando uma visão de mundo é levada, enfim, a um nível absurdo. E aqui eu vou falar sempre na primeira pessoa, porque foi assim que aprendi com os meus professores.

Eu sinto que os campos são um alerta do quanto devemos estar atentos na nossa prática para manter a mente ampla em relação à realidade e compreender as motivações que nos levam a agir dessa ou daquela forma.

Existe farta documentação dos campos, mas o que é importante, e isso eu tive, se é que se pode dizer, a alegria ou o privilégio de conhecer, a história mais diretamente no Dokumentationszentrum, em Nuremberg. Nós fizemos um retiro de rua em Nuremberg, e a pessoa que nos apoiou, um psiquiatra que é praticante e aluno do Wangyal Rinpoche, foi um grande apoio. Ele conseguiu que nós visitássemos o centro durante o nosso retiro de rua, mesmo não estando vestidos adequadamente para isso. 

Ali [nos campos] nós começamos pelo térreo, vamos até o último andar e vemos o que aconteceu na Europa, não apenas na Alemanha, num curto espaço de tempo. [Nós vemos] o que a formação de uma ideia foi capaz de produzir em pessoas que eu diria que na sua grande maioria não tinham exatamente uma má intenção, mas foram levadas a crer numa bolha de realidade como o Lama Padma Samten tão sabiamente ensina. E eles seguiram nessa crença.

Historicamente eu acho que isso é algo que merece muito estudo nosso como praticantes, como um alerta do que pode acontecer. E na verdade o meu pai foi militar, eu sempre tive um fascínio a respeito de como isso pode ter acontecido. Não só os campos, mas a guerra, esse fenômeno trágico da guerra.

Então, quando nós, eu e Marge Daien, viemos para a Suíça, eu já conhecia a Eve Marko. Em 2000, se não me engano, no Fórum Social Mundial, eu a conheci. Na época ela era esposa do Bernie Glassman que não pode ir para esse Fórum porque estava doente.

Eu conheci os Zen Peacemakers através desse grande amigo, José Ovídio, que é um psiquiatra e foi meu professor. Nós começamos juntos no Zen, em 1996. Bem interessante isso.

Eu comecei a encontrar um espaço de realização, porque talvez, pela minha origem social, eu sempre senti a necessidade de ver o Darma na prática, de ver o Darma no cotidiano, na realidade social. E [de encontrar um espaço de realização] no Zen Peacemaker, talvez, pela figura do Bernie que foi um monge da Soto Zen reconhecido. Ele foi o primeiro sucessor de Maezumi Roshi.

Ele cuidou e foi o abade dos Zen’s Centers de Los Angeles por dois anos. Só depois, então, que ele abandonou a condição de monge.

Então, quando vim para a Suíça eu já tinha um contato com o Zen Peacemakers de longe. E logo que chegamos aqui, eu e Marge Daien fomos indicados pelo Ovídio. Nós conhecemos esse casal – ela é hoje a minha professora direta, foi quem me deu a transmissão do Darma.

E em 2010, já há mais ou menos dois anos que estávamos aqui, surgiram contatos e a possibilidade de fazer o meu primeiro retiro de rua.

A minha primeira experiência dos retiros não convencionais foi nas ruas de Zurique, e eu realmente vi muito sentido porque eu tenho a necessidade.

Eu acho que cada um de nós tem a necessidade de certas experiências na prática para realmente tirar, como eu digo, o sutra do papel. E “bueno”, aí eu fiz o retiro, e, realmente, foi algo transformador. Pela primeira vez eu realmente vi o que é a compaixão na minha experiência, isso vale muito para mim. E realmente fiz um voto pessoal: eu quero fazer mais isso.

Eu acho, e falo isso frequentemente no Zenpreacemaker, nos papéis que eu exerço, que qualquer liderança, qualquer manifestação do Darma na prática tem que se manifestar no serviço. Qualquer outra manifestação, para mim, é insuficiente. Então, eu me coloquei à disposição.

E em 2012 eu fiz o meu primeiro retiro em Auschwitz como um praticante normal, se é que alguém normal faz isso, e eu entendi. Foi a primeira vez que eu encontrei o Bernie pessoalmente e a forma como ele me acolheu, como um igual, foi algo que não deixou dúvida com relação aos votos e à prática daquele homem. E eu entendi, também, o que ele dizia sempre: Auschwitz-Birkenau são lugares de horror, mas também são lugares de esperança. Ele dizia: porque se nós, como seres humanos, conseguimos manter a esperança e manter a possibilidade de querer o bem de outros seres depois daquilo, é porque realmente há esperança na nossa espécie.

E eu fui, como sempre, porque a minha natureza foi me colocando a serviço. [Eu fui] carregando colchonetes e enfim.

Eu não sei que ano foi, mas fui convidado a fazer parte da equipe que cuida das pessoas e das condições. Quando as pessoas vão descansar, nós vamos arrumar as salas, arrumar o campo, preparar um lugar de meditação. E eu acho que há uns cinco anos, a Bárbara disse: olha, nós nunca tivemos, porque o Bernie é quem fazia isso, mas tu tens!

E eu falo que caminho com duas pernas: tenho a ordenação monástica, eu fiz as minhas cerimônias no Japão, mas ao mesmo tempo sou um praticante socialmente engajado onde os títulos não importam. E ela disse: olha, nós gostaríamos que tu fosse o oficiante budista. E eu disse que seria uma honra. Então eu comecei e me tornei o oficiante budista nos retiros de Auschwitz-Birkenau.

O Bernie faleceu em 2018. E o interessante é que eu recebi a transmissão no Darma no dia 31 de outubro de 2018, e no dia 4 de novembro de 2018, o Bernie faleceu. Nós estávamos num domingo, em Cracóvia, nos preparando para ir para os campos quando recebemos a notícia.

Então, a primeira cerimônia, como professor transmitido, foi o serviço memorial do Bernie Glassman, em Cracóvia. E, depois, no ano seguinte, a Eve foi e fizemos, em Birkenau, uma cerimônia memorial a pedido dela com os “Portais do Doce Néctar”, que era a cerimônia que o Bernie mais apreciava da tradição Zen. Essa é a história.

Todo ano é como um compromisso pessoal, e com relação às pessoas que vão mais vezes, é quase que um padrão: encaramos como um serviço de gratidão, de proporcionar para outras pessoas a intensidade da experiência que nós tivemos desde a primeira vez.

E é tudo muito simples. Talvez o Bruno [um dos entrevistadores que também foi ao retiro de Birkenau] possa contar também a experiência dele, porque está todo mundo a serviço. Nós servimos no retiro, mas nós também temos a experiência. Cada retiro é diferente. E a proposta é que seja um retiro inter-religioso.O retiro cada vez recebe mais descendentes de alemães, mas sempre recebe, claro, muitos israelitas e pessoas de outras tradições. Eu acho algo muito corajoso e louvável. Essa é a minha experiência ou como Bernie sempre dizia: isso é apenas a minha opinião, “just my opinion”. Não sei se eu respondi a sua pergunta.

Bodisatva – Respondeu sim, muito obrigado. Eu acho que já posso fazer a segunda pergunta. O Koho já mencionou a resposta, mas se puder centrar mais na fala de como é a sua visão sobre esse Retiro em Auschwitz, que oferece práticas de contemplação num ambiente tão duro que é um campo de concentração.

Monge Koho – O meu conhecimento das práticas de outras escolas é limitado. Mas o Bernie, por ter sido um monge budista, acreditava muito no poder do silêncio. É uma prática de muito respeito. Nós entramos nos campos com o mínimo. Nunca comemos ou bebemos nada dentro dos campos. É um compromisso de respeito àquelas vítimas. E quando fazemos algo, é nessa visão de uma prática respeitosa.

Nós fazemos Zazen várias vezes ao dia, recitamos os nomes de pessoas de quem nunca  foi encontrado nada, nem as cinzas. E fazemos de terça a quinta-feira uma cerimônia de cada tradição representada. Normalmente são quatro: cristã, judaica, budista e islâmica. E na sexta-feira, então, há uma prática única que é coordenada pelo padre Manfred, um homem que eu considero um bodisatva que está há 20 em Auschwitz, cuidando do centro de diálogo e oração que nos acolhe e acolhe qualquer pessoa que queira ir nos campos aprender como nutrir essas sementes de compaixão e de esperança, apesar do horror que aconteceu naquele local.

E o que eu posso dizer, é isso: a prática em Auschwitz é baseada no conceito de que o lugar é o nosso professor, a nossa professora é a presença naquele local. E cada ano é diferente. A metodologia é sempre a mesma. A rotina varia, mas sempre se começa o dia com a prática do Council, que é um diálogo respeitoso em que só uma pessoa fala e todos os outros ouvem a partir do coração, como se diz. E o resto é prática.

Existem os spirits holders, e, no caso, as pessoas que representam as tradições para apoiar aqueles que precisarem. Mas o convite é que a pessoa viva humanamente aquela experiência, lembrando que naquele local, também, seres humanos viveram em situações muito extremas. E, claro, vemos esses aspectos históricos dos dois extremos. Os extremos dos perpetradores e o das vítimas, e dos exemplos de dignidade e grandeza, que mesmo em um local assim, podem acontecer.

Bodisatva – O senhor iniciou a entrevista dizendo que tinha uma tendência de falar em primeira pessoa. Então, eu vou voltar um pouquinho com a pergunta anterior para saber a sua impressão pessoal sobre a primeira vez que realizou esse retiro. Qual era a sensação que o senhor tinha, a expectativa? E o que o senhor sentiu realmente nessa primeira participação, em Auschwitz?

Monge Koho –Eu senti que a minha identidade é uma ilusão tamanha, que pude ver que eu era todas aquelas pessoas. Isso é muito falado na nossa prática que não tem tradução do inglês.

Eu não gosto da tradução direta do “bear witness”. Eu gosto de dizer “práticas de presença plena”. Porque quando eu vivo uma experiência assim, sinto que, de certa forma, todas as ideias que eu tinha sobre a prática se tornam insuficientes. É como se a minha percepção de humanidade se ampliasse. Eu acho que eu nunca senti tanta emoção em termos de tristeza, mas também tanta emoção em termos de senso de dignidade pelo ser humano. Por conta, por exemplo, do padre Maximiliano Kolbe, que tem uma passagem famosa: ele tomou o lugar de um outro prisioneiro porque esse rapaz pediu para não ser executado, ele tinha família. E o rapaz foi poupado e o padre foi colocado numa cela para morrer de fome, e duas semanas depois ainda estava vivo. Três semanas depois, ele ainda estava vivo. E então ele foi executado com uma injeção de potássio.

Esse ponto, para mim, de ver a que nível  chegaram os perpetradores, seres humanos como nós, e a que ponto chegaram outras pessoas, seres humanos como nós, em atos reais numa situação absolutamente de perda de dignidade; porque quando tu perdes inclusive o teu nome e é substituído por um número, é muito difícil conservar a dignidade, e no entanto, as pessoas a conservavam.

Nesse sentido, também, o meu contato pela via profissional com a obra e a herança intelectual de Viktor Frankl foi muito importante. Ele foi o criador da logoterapia, e esteve em Auschwitz e pesquisou do ponto de vista de um psicoterapeuta, como as pessoas não se suicidavam quando era tão fácil se suicidar.

Então a minha experiência foi algo aterrador por um lado, e por outro dizia que “não, nós podemos muito mais, eu posso muito mais”.

E nesse senso da primeira pessoa, eu coloco a minha visão como praticante. Hoje eu reflito muito sobre isso. Eu só posso superar algo que eu aceito que existe. Eu só vou conseguir ir além de uma identidade substancial se eu perceber o quanto ela é presente. Depois, então, eu posso abrir mão. Enquanto eu não percebo a presença, essa identidade cheia de conteúdos interpretativos discriminativos, eu não posso abrir mão. É como perseguir um fantasma. E aqui eu me inspiro muito nas palavras e ensinamentos de Thich Nath Hanh, esse grande mestre: abraçar a experiência é realmente abraçar a experiência em todos os seus aspectos. Disso, algo novo surge, uma nova possibilidade surge, porque agora é real. É meio paradoxal, eu acho. Eu posso falar um monte para vocês, mas experiências são intransferíveis.

Eu acho que um retiro, seja de que tipo for, só acontece de fato quando eu mergulho na experiência e por isso usamos esse termo, “to plunge”. O Bernie apelava para isso: mergulhem na experiência, não intelectualizem, não racionalizem, vivam o que vocês sentirem. É isso, para mim funciona. E é por isso que nós fomos ensinados e aconselhados a falar na primeira pessoa. A experiência é minha, o aprendizado é meu e eu sou o responsável pelas decisões que surgirem.

Bodisatva – Muito obrigado, Koho. Então, usando a sua última fala, gostaria de fazer uma pergunta sobre ação no mundo. Como é a sua visão de prática e ação no mundo? Parece fácil reificarmos a ação no mundo e sairmos fazendo, mas acho que podemos nos perder e não sair da almofada, também.

Monge Koho Hoje como ensino isso, na medida do possível, eu acho que esse é o principal ou talvez seja o ensinamento mais profundo do  Bernie. Quando ele transpõe os princípios da prática convencional ou tradicional, vamos dizer, para uma visão contemporânea, ele propõe que a impermanência seja vista como um não saber, a interdependência como a presença plena, e depois, então, podemos pegar tanto o senso do nirvana possível quanto um self não substancial como um “faça algo”.

Ele vai dizer que esse “algo” que deve ser feito, surge do não saber e da presença plena. Portanto, eu não tenho ideia do que isso significa, porque não é real, não está aqui ainda.

Quando acontece um mergulho na experiência plena, num estado de não saber, o que surgir, eu acolho e tiro o que eu quiser do caminho. Eu não vejo forma mais efetiva de vivenciar a possibilidade de um eu não substancial.

Todos os anos, para muitas pessoas que vão a Auschwitz, muitos projetos surgem. Muitas vezes em áreas inesperadas. E está bem. O que surgir, está bem. E se nada surgir, está bem, também.

O “take in action”, o fazer algo, o haja no mundo, surge do não saber e da presença plena. É viver a experiência com base num abrir mão de conceitos. E aí, nesse estado, vamos nos socorrer dos ensinamentos: desse pleno potencial da vacuidade vai surgir aquilo que naquele momento é o que essa identidade pode colocar a serviço na forma de compaixão embasada na sabedoria. Não tem que racionalizar, não tem que buscar elementos. “Ah, por que não? Mas isso é porque aquilo”. Não! Não faça! E não se preocupe em acertar, porque se pensar em resultado, já houve um apego a uma identidade que quer algo. Isso é muito transparente, eu diria.

E existem muitos julgamentos, inclusive a respeito do budismo socialmente engajado. Não só do Zen Peacemaker, mas de muitas outras iniciativas, porque não há o menor interesse em divulgar. Tem pessoas que fizeram o retiro em Auschwitz nas primeiras edições e que estão há mais de 20 anos fazendo trabalho voluntário em prisões, em centros de apoio a pessoas abandonadas em vários países, especialmente nos Estados Unidos. Mas eles não falam porque não interessa falar. O que interessa são aqueles seres que vão, de alguma forma, receber benefício pela gratidão que nós temos por entender que é isso o que deve ser feito. É simples assim.

Então, eu entendo que muitas vezes é muito forte esse alerta para as pessoas que praticam, principalmente na ordem Zen Peacemaker, que é um número menor. As pessoas que tomam os votos são um núcleo pequeno. Mas para quem se filia ao Zen Peacemakers International e tem um projeto, o que nós sempre alertamos é: não se preocupem com resultado, não se preocupem em acertar e não se preocupem em fazer algo grande, porque a experiência tanto de viver o retiro, seja de que tipo for, quanto de fazer algo engajado na sociedade, é qualitativa. Ela vai muito além do limite de qualquer mensuração.

“Ah, eu ajudei tantas pessoas”. Não interessa! Às vezes uma pessoa, por causas e condições, através da nossa ação, sem querer – sem querer querendo – essa pessoa se sente beneficiada. Isso já justifica a nossa vida, a minha vida.  E eu penso que isso é difícil de entender quando existe a tentativa de transposição de um modelo que é baseado na vacuidade para a nossa mente ocidental, que liga causa e efeito, que, “portanto, se eu faço isso, eu devo obter aquilo”. É muito difícil.

Eu aprecio isso especialmente no Zen. Pelo menos, eu tive e tenho o contentamento e o mérito de sempre ter tido, desde Moriyama Roshi, professores e professoras, e vou meio que alternando, ou melhor, a vida tem alternado, um homem, uma mulher, um homem, uma mulher. Eles não me deixam em paz. Quando eu penso que eu sei alguma coisa, eles mudam, quando eu penso que  aprendi a dançar, eles mudam a música. É uma maravilha. Em japonês se diz “Shoshin” que é mente de principiante.

Então é isso, a ação no mundo é simplesmente o que tem que ser. Surge espontaneamente, não é planejado. O Bernie dizia “simplesmente crie o terreno, as plantas virão”. Quando eu crio o terreno da prática, ou melhor, quando eu crio o terreno da ação através da minha prática, a ação surge. Então é leve, não “tem quê” nada, não é quantitativo e é um contentamento.

Não sei se vocês sabem, mas o Bernie, quando enfrentou a fase mais difícil da vida dele, a terapia em que encontrou consolo foi receber ensinamentos de um clown (palhaço), Moshe Cohen. Ele é um grande mestre dessa parte da ordem Zen Peacemakers, “a ordem da desordem”. O nome dele no Darma é Yoowhoo. O Bernie era BoobiSatva, então, tem esses nomes. No caso, a roupa de prática que nós usamos inclui um nariz vermelho. O Bernie dizia “Se tu está te achando fora da tua prática, levanta de manhã e te olha no espelho: vê que ridícula é essa criatura. Faz algo para ser menos ridícula!”

A ordem da desordem traz essa tradição muito antiga que ensina a vermos que nada é tão importante. No fundo o que é importante é manter os votos. Maezumi Roshi, e é muito emocionante isso, quando estava perto do final da vida, recebeu a seguinte pergunta: “Roshi, o que o senhor acha que vai ficar desses anos de prática?” E ele era um ser tão humano que muitas vezes “pisou na bola” como muitos mestres, ele disse: “A única coisa que vai ficar dos meus anos de existência são os meus votos. Todo o resto vai passar, mas os meus votos continuam.” É isso.

Bodisatva – Numa pergunta anterior, o Monge Koho nos disse que é como se o Zen tivesse um caminho do paradoxo, e eu lembrei do Lama Padma Samten que certa vez disse que o Zen tomava o paradoxo como caminho e utilizou prajna para explicar. Não me lembro se foi Moriyama Roshi, Tokuda San ou outro mestre do Zen que dizia que quando estamos no caminho sem entender esse paradoxo da “abertura depois da percepção da presença”, chega o momento em que não conseguimos vomitar, nem engolir. Não conseguimos botar para fora nem digerir, mas fica aqui [na garganta]. Por isso tem uma coisa paradoxal de “perseguir um fantasma”.

Monge Koho – Não faço ideia, pergunta para o Lama, ele que explique, agora, se falou! Se vocês pararem de gravar eu falo que o Lama é um infiltrado, nós colocamos ele lá, ele tem até Rakusu [vestimenta usada por praticantes do Zen que fizeram os votos de orientar suas vidas de acordo com os dezesseis Preceitos do Bodisatva]. Não! É brincadeira! O Lama é mestre em qualquer linhagem!

Bodisatva – O Monge Koho poderia dar algumas palavras sobre a roda Council, já que tocou no assunto dessa prática, e falar, também, sobre os três preceitos? 

Monge Koho – Em primeiro lugar, o Council é uma declaração de princípios. Quando os Zen Peacemakers adotaram o Council, que veio da Fundação Ojai, já estava formatado nesse livro brilhante “The Way of Council”. Naquela época já existia a ordem e os professores daquela geração, e só “peixe graúdo”.

Eles sentiram que era preciso, pela intensidade das experiências dos retiros não convencionais, prover a sanga de praticantes com uma ferramenta para descompressão. E como tu disseste, é realmente uma prática, eu não diria perigosa, mas muito sutil e, portanto, requer uma preparação muito séria com quem vai facilitar o Council.

Eu atuo como terapeuta e em terapia se fala que para abrir tem que saber fechar. Quando a pessoa vive uma experiência extrema, é preciso ter pessoas que saibam acompanhar, estar do lado, nem à frente, nem acima, nem abaixo. Mas estar do lado dessa pessoa. São pessoas que já fizeram esse caminho.

A compaixão mais efetiva provém de alguém que já passou pelo mesmo tipo de sofrimento. Então, eu acredito, e isso é parte do processo de Council, que já temos uma certa trajetória em ter sofrido.  Já temos uma certa trajetória para entender as manifestações que o sofrimento tem na nossa realidade humana.

E a formação é muito estruturada. Todos os anos acontece uma revisão, digamos, antes do retiro, pelo professor mais qualificado, que é o Fleet Maul, um Roshi.

Mas de tudo que eu já vivi, em retiros de rua, em Sesshin (retiro longo no Zen) e em Auschwitz-Birkenau, eu posso dizer que é realmente algo mágico o que acontece quando se cria esse espaço. É por isso que se qualifica o Council como um espaço sagrado fora do espaço e do tempo. É por isso que existe um ritual para se fazer um Council. É realmente muito impressionante como a natureza humana consegue se expressar, não desenvolvendo um aprofundamento da identificação com a experiência. Essa é a minha visão.

Mas, especialmente em Auschwitz-Birkenau, em contato com pessoas que são descendentes de vítimas e de perpetradores, é algo notável que eu já vi acontecer.

O que eu conheço, que eu já experienciei sempre em experiências facilitadas, como gostamos de dizer, por pessoas que são praticantes preparados tecnicamente, é que, muito importante dizer, existem metodologias para lidar com as situações. E no mais, é uma rotina. Nós começamos o dia com Council antes mesmo do café da manhã. Mas é sutil, é uma experiência delicada.

Bodisatva – São feitas quantas sessões de Council por dia?

Monge Koho – Terça, quarta, quinta e sexta, se faz uma só. E como eu disse, isso depende. Em alguns retiros acontecem e em outros não, depende dos spirits holders que são professores muito experientes que já fizeram 15, 20 vezes o retiro.

E em alguns anos se faz um Council coletivo, que é tipo um fishbowl. Tem seis, oito pessoas no centro e o grupo todo está lá. E depois que a pessoa falou, ela troca de lugar e assim por diante. Mas isso depende muito, não há forma rígida, nem existem diretrizes. O que é certo, é que todas as manhãs começam com Council em pequenos grupos de no máximo doze pessoas.

Bodisatva – Eu penso que fazer uma prática de Council num ambiente como um campo de concentração faz aflorar muita coisa. O sofrimento que surge pode ser muito intenso. Então, como é essa questão de, eventualmente, alguém colapsar? 

Monge Koho – Antes eu me permito uma observação: numa medida maior que o  sofrimento  está  o apoio ao sofrimento. Naquele grupo vão ter pessoas que sofreram ou estão sofrendo, mas de forma similar e silenciosamente, falamos que “esse container vai ser mantido”.

Eu vi muitos casos de pessoas, especialmente descendentes dos perpetradores, que lidam com essa inutilidade na existência humana, que é a culpa. Essa semana eu estava escrevendo um texto sobre como é muito mais fácil lidar com a culpa do que com a responsabilidade. A culpa é simples, tu encontras alguém que te console, alguém que tu projete e pronto. A responsabilidade, não. A responsabilidade implica em fazer algo a respeito. O que vi, muitas vezes, foi isso: o extremo do paroxismo da dor e um extremo de compaixão e aceitação daquelas pessoas como descendentes do outro lado.

“Mas por que não? Por que não parar com isso agora?” E às vezes surge um projeto. Eu já vi coisas impressionantes, de acolhimento mesmo. Não é fazer de conta, é acolhimento!

Bodisatva – O Monge Koho poderia falar um pouco mais sobre os três preceitos – não saber, estar aberto e confiar?

Monge Koho Em inglês, seria Not Knowing, Bear Witness e Take in Action. Eu traduzo como não saber, presença plena na experiência e fazer algo a respeito, que surge do não saber e da presença plena. Mas isso é uma tradução minha e não são preceitos. Nós temos dez preceitos, nós os revisamos no ano passado.

O segundo, se fôssemos traduzir literalmente para o português, seria dar testemunho, mas dar testemunho é algo muito ligado à tradição evangélica, não a pentecostal exatamente, mas a evangélica. Então, eu acho que faz mais sentido para uma prática inter-religiosa ampla, a “plena presença”, porque é mergulhar na experiência. O Bernie falava em mergulhar, “to plunge”. Então é como eu traduzo.

E essa transposição sou eu que vejo. Eu acho que faz todo sentido ver o não saber como um acolhimento amoroso da impermanência e a plena presença como acolhimento sábio da interdependência de ver que não existe nada isolado. Portanto, me permite mergulhar em todas as experiências possíveis para ver as outras partes de mim mesmo. E a ação é assim: já que tudo muda e que eu estou ligado a tudo, então, vamos fazer alguma coisa. O quê? Eu não sei, na hora veremos, mas vai ser bom, porque é o que tem que ser feito naquele momento. E para mim tem sido.

Bodisatva – Como o Monge Koho vê o Lama Padma Samten fazendo esse retiro? E, também, qual é a importância dos mestres participarem e fazerem esse retiro em Auschwitz?

Monge Koho – Eu acho que vou responder como gaúcho, “Tchê”, eu não faço ideia, nós estamos ainda num estado de graça porque é um sonho de muitos anos. Acho que há uns quatro anos  estava tudo pronto. Tínhamos um esquema para os filhos do Lama ficarem aqui [na Suíça], com escola, mas não deu tempo. Então foi o que tinha que ser. Assim também com a Coen Roshi, mas aceitamos. E nesse ano o Lama fez contato.

Eu acho que vai ser uma experiência diferente, uma ocasião histórica, porque, na minha opinião, é seguramente um dos grandes mestres do budismo no mundo que vai ter uma visão baseada na lucidez.

Será muito mais importante o que o Lama vier a ensinar – que não é contar, mas ensinar a partir da experiência dele –, do que qualquer coisa que eu diga. Porque vai ter uma capacidade de ampliação da visão pelos anos de prática que ele tem, e pela sinceridade e a profundidade da sua prática.

E até há pouco eu estava revendo muitos planos que  havíamos feito: “vamos para as montanhas, vamos isso e aquilo”, mas ele disse “não, eu quero ficar com a Sanga, não quero fazer nada”. Então nós vamos ficar com ele, andar de bicicleta aqui e ali. 

Vamos fazer dois dias de zazen aqui onde moramos [Wettingen, a 20 km de Zurique], que já foi uma antiga capela [Rebberg Zendo] e nosso zendo em Zurique [Unsui Zendo], que é compartilhado  com outra sanga.

Vai ter zazen e um espaço para o Lama falar, também. Eu lancei em duas listas, porque tem a lista da sanga de lá [Unsui Zendo, Zurique] e a nossa daqui [Rebberg Zendo, Wettingen]. Em dois dias já não tem mais lugar. O espaço que é para 24 pessoas já não tem mais vagas. Aqui é uma sala maior, mas é fora de Zurique, então, vai ser mais tranquilo. E é isso o que vamos propor aqui para eles. Depois vamos para Cracóvia fazer o retiro. No fim, o Lama volta e fica ainda dois ou três dias aqui antes de ir para Paris.

Então vamos abrir esse espaço de acolhimento ao ser humano Lama Padma Samten para ele ter um tempo dele. Eu perguntei ao Lama e abro para vocês, se o Lama gostaria que fosse só o Lama ou eu poderia abrir o convite para a Sanga do Brasil, e ele falou que estaria como Lama o tempo inteiro e me permitiu convidar quem eu quisesse. Então eu abri. Vão ter duas pessoas do Brasil e talvez uma terceira. E o Lama disse “eu continuo sendo Lama, mas lá eu vou estar como participante”.

Então isso eu acho que é sensacional em um grande professor. Ele não abre mão da capacidade de lucidez pela prática dele, mas ele também se coloca no papel de alguém que vai viver aquela experiência.

Então, em resumo, se tu quiseres duas expressões, tu dirias que é um momento histórico e, no meu entender, é um grande potencial para os próximos passos.

E agora eu falo na primeira pessoa, talvez pretensiosamente, que eu pretendo dar no Brasil essas práticas e contribuir mais para a lucidez das pessoas quanto  à possibilidade de manter uma prática tradicional. Porque eu falo sempre que caminho com duas pernas. Eu continuo tendo meu professor no Japão, fazendo as práticas no Soto Zen, como se fazia há centenas de anos. Mas eu preciso, como ser humano, fazer algo na sociedade.

E, bom, no ocidente trabalhamos, temos família, torcemos para um time de futebol, aliás, esse é um grande conflito que eu tenho com o Lama. Espero que ele ainda tenha a lucidez para passar a torcer para o Internacional. Que ele não torça contra na quarta-feira! Mas isso é um assunto nosso, não se metam nisso!

A propósito, deixa eu contar um plano secreto. Nós propusemos, eu acho que lá nos primeiros eventos do 72 horas pela Paz, que vamos às últimas consequências, e vamos fazer um jogo da sanga do CEBB contra a sanga do Via Zen. Nosso plano secreto era o seguinte: enquanto a sanga do CEBB estivesse fazendo aquele monte de prostrações, nós marcaríamos dois gols, pronto! Mas não rolou. 

Então falando sério, se é que é possível isso, eu acho que é um momento histórico por esse grande professor se colocar num papel extremamente humilde e disponível para, em primeiro lugar, vir e ensinar com a presença dele, ter a experiência e no caso, nos ajudar, porque se tudo correr bem, e aí eu faço a minha absoluta manifestação de gratidão que aqui estão a Elen e o Bruno [participantes da conversa], que já estão há tempos me ajudando nisso, se tudo correr bem, nós pretendemos ter um núcleo de prática do Zen Peacemaker no Brasil.

Eu acho que simplesmente a palavra do Lama sobre a experiência dele apontará  para as pessoas que não é algo budista, que não é algo religioso, que não é algo político, não é um judeu, que não é um alemão, não! É uma experiência humana que visa realmente fortalecer a prática da sabedoria, da compaixão baseada na experiência, e não no que o mestre Dogen disse, não no que Moriyama Roshi disse, não. É para honrar os meus professores que eu faço. O que eu faço não é por valor meu, é porque eu acho que realmente eles merecem que eu faça isso.

E é isso, eu acho que o Lama certamente vai representar: um espaço compassivo de humanidade que muitas pessoas vão dizer “sim, isso eu também sinto, isso eu também gostaria de fazer”. E onde? “Aqui onde eu estou, com as pessoas que eu conheço, com a realidade que eu vivencio!”

É uma discussão muito grande que existe, e acho que é válida: até que ponto se precisa ter um retiro em Auschwitz para entender os horrores da discriminação? Não precisa, mas algumas pessoas precisam. Talvez, como no meu caso, que tenho a cabeça muito dura, as pessoas precisem realmente mergulhar tão fundo nos dois lados, como eu disse, no horror e na dignidade. Mas cada um de nós tem o seu caminho. Eu acho importante respeitarmos as nossas individualidades e também a orientação dos nossos professores. Eles sabem o que dizem e o que nos ensinam. Depois é fazer e pronto.

Bodisatva – Havia uma aspiração de trazer esse movimento para o Brasil com foco na escravidão ainda esse ano, conectado como o CEBB Recôncavo, na Bahia.

Monge Koho –O retiro foi totalmente planejado. Nós fizemos a prévia do retiro, eu e a Eve, mas agora ela tirou um “time out”. Na época ela também estava como co-diretora espiritual e houve choque de agendas porque já existe um retiro sobre o racismo na América do Norte que aconteceu um pouquinho antes, e um retiro dos movimentos de paz em Israel um pouquinho depois. 

E isso é importante dizer: o Zen Peacemakers International tem em torno de 6000 membros ativos, mas se considerarmos os que não estão tão ativos,  a ordem Zen Peacemakers tem em torno de 150 pessoas no mundo todo. Para tocar essa estrutura,  para organizar tudo, há três pessoas que são pagas, que têm um emprego, digamos assim. Um diretor que só tem duas pessoas trabalhando para ele. Tem o Jim Hoden Fricker [diretor de mídia]  que faz toda a parte tecnológica, e a Chloe Wright [diretora de programas e associações] que é a pessoa da comunicação. Todo o resto que acontece no mundo inteiro, em todos os projetos, é feito por trabalho voluntário. Tudo o que acontece em qualquer retiro, em qualquer atividade Zen Peacemakers é trabalho voluntário.

Bodisatva (Bruno Menegat, que também participou do retiro) – Eu gostaria de agradecer novamente todo o apoio que o Senhor e o Zen Peacemaker dão para quem está chegando no retiro. Eu estava fazendo uma experiência de viagem, me sentindo muito fora de casa, e quando cheguei, me senti muito em casa, me senti completamente acolhido em sanga, mesmo. Então, essa experiência de estar em sanga, com pessoas desconhecidas, falando outros idiomas, com paciência infinita para me ouvir, e para ouvir o meu inglês, foi muito especial, foi muito bom, foi muito profundo. E ao longo dos dias as práticas de Council, principalmente, foram me descamando, foram tirando escamas minhas, foram me expondo cada vez mais para a prática. Então, agora não surge nenhuma pergunta, mas só “obrigado, Koho”.

Monge Koho – Obrigado pela tua presença, foi muito bom estar contigo por lá.

Bodisatva – Monge Koho, vão ter brasileiros agora também por lá?

Monge Koho – Sim, já tem duas pessoas inscritas, tudo certo. Providenciei todo o apoio possível,  negociei com a coordenação que considerou porque é muito real a diferença de poder aquisitivo. Foi feito um desconto bem significativo para as pessoas participarem. E, na verdade, esse movimento começou lá com o Bruno, devo dizer. Então já existe essa compreensão hoje que é diferente. No mais, foi o que o Bruno disse, porque é de geração em geração.  Fomos bem acolhidos, então procuramos acolher bem, porque sabemos o quão importante é, assim como  acolher no decorrer do retiro, porque é uma experiência muito intensa.

Apoiadores

2 Comentários

  1. Maria Alem disse:

    A entrevista foi muito profunda e emociona alma.

    Não dá para não pensar sobre , refletir sobre o que aconteceu lá, o que aconteceu naquele momento histórico com a humanidade pra chegar onde chegou.

  2. Tirza Myga Garcia disse:

    Ótima entrevista! Qual a data, por favor???

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *