Brasileira que vive e estuda tibetano na Índia há três anos nos conta sobre seus aprendizados com a língua e a cultura
Estudar tibetano parece algo tão impensado e maluco, que talvez faça sentido contar o que me levou a fazer isso.
Vivia uma vida normal para os padrões paulistanos. Trabalho, casa, saúde, amigos e família: tudo a postos para estar tranquila e feliz. E estava. Hum, talvez no fundo, no fundo, não era bem assim… Se estivesse, por que minha conduta no trabalho era diferente da conduta que eu mesma orientava aos pacientes na busca do seu bem-estar? Se estivesse, por que, então, seguia inquieta em relação ao que possuía e conquistava — material, intelectual ou emocionalmente?
Perguntas como essas me fizeram decidir por afastar-me temporariamente da rotina lotada de atividades e, em dois mil e treze, fui conhecer práticas espirituais da região dos Himalayas, com passagem de retorno para seis meses depois.
Comecei minhas andanças pelo sul da Índia, numa comunidade espiritual com base na união humanitária. Foi meu primeiro contato com a cultura indiana e um choque em todos os sentidos. Me surpreendi com a forma indiana de encarar um momento de fraqueza e doença, com seu contentamento e fraternidade, com a importância que dão à prática do ser pequeno, humilde, com sua cooperação e flexibilidade social. Ah sim, o caos, a sujeira, o barulho foram um choque também, mas pequeno, considerando a imensidão de reflexões que eu tinha a cada momento. Depois de dois meses lá, segui rumo ao Norte do país, convidada a fazer um trekking nas montanhas dos Himalayas no inverno. Sim! Eu estava indo aos Himalayas no inverno! Nem eu acreditava.
Fizemos trekking num dos rios congelados encravados nos vales e montanhas nevadas nos arredores de Ladakh. A energia das montanhas, o silêncio que transformava em grito o contínuo zumbir do tímpano, a alegria incondicional dos nossos guias e carregadores no trekking, e quando nas vilas, o ar gentil e amoroso que permeava todos, os camponeses que tocavam seus yaks (o búfalo da região), os monastérios budistas com as cerimônias de mantras tocados e rezados, o sorriso genuíno dos monges, bandeirinhas e apetrechos espalhados por todas as vilas que faziam com que nos recordássemos constantemente do lembrar do próximo, ser gentil, generoso, etc. Tudo isso mexeu muito comigo.
Lá de Ladakh, me indicaram conhecer a pequena Dharamsala — que acolheu em exílio o Dalai Lama e a comunidade tibetana, há quase sessenta anos, e fazer um curso de Budismo. No meu primeiro dia na cidade, coincidentemente aconteceu uma palestra pública do Dalai Lama. Que alegria! Ouvia atentamente o que ele dizia. Falava com tanta suavidade mas também com uma objetividade que faziam suas palavras parecerem flechas certeiras no meu ego e nas minhas agonias.
“A sua mente é quem percebe o mundo ao seu redor… Se você está agoniado, é porque sua mente criou esse cenário. Em contrapartida, sua mente é a única que realmente consegue corrigir essa interpretação errônea e trazer o estado de paz que busca. Por isso, você é responsável por sua própria felicidade.”
Não sei se o Dalai Lama realmente falou tudo isso, mas foi o jeito que interpretei naquele momento. E aquelas palavras caíram como uma chuva no sertão…
A partir de então, decidi tomar Dharamsala — ou a parte alta de Dharamsala, conhecida como Mcload — como meu segundo ambiente de prática espiritual. Minha nova rotina de aulas com lamas tibetanos e frequentes palestras públicas com S.S. (Sua Santidade) despertaram em mim a esperança quase convicta de que tudo o que me fazia sentir mal ou falsamente bem poderia ser racionalmente compreendido e erradicado, e um estado tranquilo de mente ou de coração poderia ser verdadeiramente alcançado. Até mesmo vivendo na agitação corporativa de São Paulo!
Nesse processo ainda contínuo de aprendizagem do tibetano, acabei conhecendo uma nova maneira de ver o mundo, aparentemente mais ingênua, pura e… simples.
Em minha nova rotina de aulas, focada em gramática, conversação e interpretação, o alfabeto inicialmente parecia algo impossível de aprender. Quase que novas habilidades físicas devem ser usadas para pronunciar corretamente os sons! (Vou me esforçar pra um dia lograr isso…).
É um processo que exige paciência e humildade — o que eu não tinha como hábito… Mas, em algum momento, de algum modo, as primeiras frases aconteceram, alguns hábitos negativos foram sendo abrandados, e em paralelo, já com menos barreiras da língua, o contato direto com os professores — os geshelas — lentamente se tornaram uma realidade.
Numa aula de gramática, ao apresentar o pronome possessivo ‘meu’, a professora — figurassa! — imediatamente comentou: “… esta é a fonte da nossa grande miséria, o excesso de apego e importância que damos ao ‘eu’, ‘meu’…”.
Também poder estudar o significado direto das palavras em tibetano foi algo surpreendente… Por exemplo:
A convivência com alguns dos meus professores, já sem a barreira do idioma, me deu a oportunidade de receber conselhos práticos, tirar dúvidas do estudo, mas especialmente de poder observar como eles se relacionam com seus problemas e rotina, sempre de um jeito tranquilo e divertido.
Adooooram uma brincadeira, mesmo carregando um conhecimento intelectual condizente com o de um PhD ocidental. “Não importa se essa pessoa agiu errado contigo. Se um sentimento ruim nasceu em você, é nele que você tem que dar umas pauladas… hahaha”, o geshela riu muito.
Na realidade, fui percebendo que esse aprendizado não acontecia apenas com meus professores, mas no meu convívio com os tibetanos de forma geral. Outro dia, fui ao médico e quando finalmente chegou minha senha, ainda tive que esperar que ele terminasse seu joguinho no celular para me atender… “relaxa, ficar tensa ou ansiosa vai aumentar a sua dor de cabeça…”, disse ele.
Decidi me encontrar para um café com um amigo tibetano. No restaurante, comentou comigo sobre um estrangeiro na mesa ao lado: “ele está comendo, conversando e se comportando de maneira tão exata, com os movimentos tão pensados. Quando ele chega em casa, ele deve estar muito cansado de ter estado tanto tempo tenso, preocupado com a imagem mostrada. Será que ele é feliz assim?”.
Interessante também é o contato com o sistema de educação tibetana dentro de um monastério de monjas. Vindas de uma sociedade tradicionalmente patriarcal, as mulheres tinham menor acesso à educação, mesmo em conventos, e isso só começou a mudar com o exílio e a exposição ao mundo externo. No monastério onde estudo, são cento e vinte monjas com rotina puxada de aulas de gramática, lógica, debates e estudo dos sutras, assim como sessões de pujas longos, trabalhos de manutenção do monastério e memorização de preces e textos estudados. Aprendo muito no convívio com essas meninas que desde cedo se tornaram monjas e vivem longe de suas famílias — que ainda estão no Tibete. Diante de suas dúvidas, ansiedades e alegrias elas debatem seriamente sobre como encontrar as falhas do entendimento incorreto da realidade para alcançar uma mente serena. Elas são uma fonte de inspiração!
Não estou dizendo que a comunidade tibetana seja uma comunidade de bodhisattvas. Naturalmente também têm seus problemas e desavenças. Mas convivendo com eles no seu idioma e no seu ambiente — em exílio — percebo diariamente como a filosofia budista permeia e interfere no seu modo de pensar, de olhar a vida, as dificuldades, as diferenças.
Daqui, vejo a força dos hábitos que tinha no Brasil, como o vício em uma vida ocupada, na cobrança do muito/rápido/tudo, em não permitir relaxar como sinal de fraqueza, entre outros. Sempre que digo “Professor, estou atrasada, mas rapidinho já chego”, nunca recebo um retorno diferente, de qualquer um deles:
“Não se apresse, não se desespere, venha devagar e tranquila”.
De fato, este é o significado da palavra Khalepe — tchau.
O Darma é o caminho que escolhi e estudar tibetano pra mim tem sido uma experiência de desenvolvimento pessoal, espiritual. Mas estudar tibetano também pode ser muito útil pra quem quer entender mais a cultura tibetana, a medicina e a astrologia tibetanas, as artes — como pintura de thankas — além de aproveitar melhor uma eventual viagem ao teto do mundo — Tibet.
TashiDelek!
བཀྲ་ཤིས་བདེ་ལེགས།
Karen Portaluppi — Paulistana, 37, há três anos mora na Índia, onde tem se dedicado ao estudo da filosofia budista e do idioma tibetano junto à comunidade tibetana em exílio. É engenheira de formação e ex-profissional de Recursos Humanos. Atualmente estuda tibetano na Biblioteca Tibetana (Tibetan Library) e lógica budista no monastério de monjas GedenChoeling, em Dharamsala.
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9 Comentários
Karen ,
Gostaria de compartilhar algumas questões com você e aprender com sua vivência na Índia.
Se sim , por gentileza , enviar a resposta por mail.
Gratidão
Gilca
Que todos os seres sejam conscientes da felicidade e da liberdade e possam viver em paz intersendo amor.
Oi Gilca!! Mil perdoes, acredita que somente hj vi este seu post… como vc esta? Te passo meu email… bjo
Oi, Karen. Tudo bem? Meu nome é Ingrid Gerolimich, sou socióloga e documentarista. Estarei em Dharamsala entre os dias 22 de dezembro e 09 de janeiro para gravar um documentário e gostaria muito de entrevistá-la e/ou somente conversar com você se não quiser gravar, pois fiquei encantada com a sua história. Você poderia me passar um contato seu para que possamos conversar melhor? Grande beijo
Ola Ingrid! Puxa, somente hj vejo este site e seu post…rs… desculpa… de qq modo, podemos nos falar por email ou whatsapp.. bjo Karen
Oi Karen, que linda a sua história! Poderia me passar o seu email para eu trocar umas ideias com você? Obrigada!
Oi Juliana, meu email eh karen.mainumby@gmail.com. Nos falamos, obrigada!
Ola Karen,
Por algum motivo lembrei de vc hoje e tentei de alguma forma encontrar seu contato. Espero que se lembre de mim apenas pelo nome. Eu era estudante de Eng Ambiental da Poli quando vc trabalhava na Estre. Enfim, sua história é incrível e nao sei por onde anda agora, mas se vir essa msg e quiser retornar será um prazer. Um forte abraço.
11 999 739 510 facc.coelho@gmail.com
Karen, grande amiga! Saudades de vc! Nossa quanto tempo não a vejo. Pelo visto está bem. Encontrou seu propósito ou missão espiritual! Podemos retomar nossa amizade? Entre em contato comigo pelo email cesarsiqueira33@gmail.com para nós falarmos por whatsapp.
Lembra de mim né?
O Alemones da academia …..
Beijos
olá quero apreender um pouco mais sobre a cultura do tibet e sobre a lingua, atualmente só estou ouvindo as músicas tibetanas e apoio o #freetibet / tibetlivre. quero aprender mais sobre esse belo povo! também eu li algums documentos sobre o tibet e o seu povo na internet então sei pequenas coisas.