Crédito: Barbara Carrizo

Feitiço para novos mundos

Neste texto, Lia Beltrão se pergunta: o que a proibição da venda de um queijo pode nos dizer sobre o reencantamento da vida na Terra?


Por
Revisão: Caroline Souza

Na região dos Campos de Cima da Serra, no sul do Brasil, onde hoje moro, imigrantes europeus do século XVIII trouxeram consigo além, e apesar, das dores e traumas da imigração tecnologias ensinadas a eles por seus ancestrais sobre como transformar o que a terra e os seus seres dão em alimento. Uma entre muitas dessas tecnologias que ganharam forma nesse território e atravessaram o tempo é o que eles batizaram de queijo serrano. Um queijo feito com leite cru após a ordenha, normalmente não curado, de cor clara, levemente amanteigado, cheio de buraquinhos, delicioso. 

Em um restaurante de beira de estrada perto de casa, bem na entrada, uma antiga barrica de vinho faz as vezes de expositor de queijos e outros frios que os atendentes cortam e servem aos fregueses, generosamente. “Vamos provar um queijinho, freguês?”, “Um quilo tá bom?”, “Este é o daqui da nossa região, o serrano”. Nos tornamos clientes conhecidos do lugar, conquistados não exatamente pela comida do restaurante, mas por esse cantinho que guardava duas joias: uma é a forma não econômica de relação, a abundância de alimento servido em cortesia, a alegria de dar; a outra era o famoso queijo serrano. Sim. Era. Em 2018, o queijo tão característico da região sem fermento lácteo, não pasteurizado, produzido de forma caseira, sem data de validade, sem conservantes teve sua venda proibida pela Anvisa. Desde então, apenas queijos fabricados por empresas registradas, embalados a vácuo  e com código de barras passaram a ser permitidos. 

A imposição demorou um tempo para se instalar. Antigos fregueses como nós ainda podiam cochichar seu pedido aos atendentes, que traziam de dentro da cozinha, meio escondido, nosso pedaço de queijo. Hoje não fazem mais isso. Nos restam os queijos plastificados e com código de barras. Sem furinhos, sem cheiro forte, sem sabor. 

No momento em que escrevo este texto o mundo está enfrentando uma pandemia global. O Brasil se aproxima dos 150 mil mortos sem qualquer política de enfrentamento da crise sanitária, social e econômica que se instala. Falar de queijo serrano parece, no mínimo, fora de contexto. Mas o que a proibição da venda do queijo serrano tem a ver com o buraco em que nos metemos? E o que pode nos dizer sobre as formas de sair dele? E como isso se relaciona com imaginação e o reencantamento de nossa vida sobre a terra?

 

Capitalismo: um feitiço sem feiticeiros

A filósofa Isabelle Stengers propõe identificar o capitalismo como um sistema feiticeiro, que captura, distorce e cria armadilhas para se manter. Capitalismo é, obviamente, uma palavra carregada, mas aqui podemos entendê-la, seguindo Stengers em seu No tempo das catástrofes, como um sistema de desenvolvimento baseado no crescimento, cuja característica de ser “intrinsecamente insustentável” tem se tornado um saber comum. Em sua visão, a noção de ideologia que normalmente usamos para explicar como um determinado sistema político-econômico se mantém é insuficiente para explicar a eficácia desse sistema. Em uma entrevista publicada na Revista DR, Stengers explica: “Esses que, por exemplo, transformaram a expressão já capenga ‘desenvolvimento sustentável’ em ‘crescimento sustentável’ não creem em feitiçaria, mas a praticam: eles capturam, distorcem, criam armadilhas. Nós estamos assim cada vez mais sujeitos às palavras enfeitiçadas”. Essas palavras, continua Stengers, são “dispositivos que funcionam como teias de aranha – quanto mais nos debatemos contra, mais ficamos presos como moscas. Não há, nesse caso, ilusão ideológica, mas uma terrível eficácia feiticeira”.

Quando leio Stengers, não posso evitar de pensar na resignação aparentemente inofensiva diante da proibição da venda do queijo serrano como um exemplo desse feitiço e sua eficácia. Dá até para imaginar a Anvisa com sua varinha mágica de higiene e progresso lançando o feitiço maligno sobre os queijos serranos expostos na barrica do restaurante e fazendo funcionários e clientes atenderem, obedientes, ao seu comando. Mas o feitiço do qual ela fala não envolve sequer bruxas e varinhas de condão aliás, uma das características do feitiço capitalista é justamente o fato de que não possui feiticeiros. 

Podemos simplesmente pensar no feitiço como a simples ausência de espaço para a possibilidade. No caso do queijo, não houve nenhuma tentativa de gerar adequações possíveis para a sobrevivência desse bem cultural, mas apenas um categórico não, baseado em uma crença de que esta proibição é um sinal inquestionável do progresso simbolizado aqui pela produção do queijo pela indústria, garantidora única da segurança alimentar. “O capitalismo nos enfraquece, pois mata os possíveis e mesmo a política, nos desobriga a pensar, nos entorpece e nos chantageia com suas alternativas infernais”, esclarece o antropólogo Renato Sztutman neste ensaio em que faz uma leitura da obra de Stengers. 

A expressão “alternativas infernais” um conjunto de situações formuladas e agenciadas de modo a não haver outra escolha senão a resignação aliás, é chave na obra de Stengers e nos ajuda a entender o mecanismo do feitiço. Um exemplo das alternativas infernais seria, segundo Sztutman, “quando se estabelece que ou a Europa deve aceitar os organismos geneticamente modificados ou perderá a competitividade mundial, seus pesquisadores migrarão para os Estados Unidos, sucumbir-se-á a uma imensa fome.” E segue: “Poderíamos com facilidade proliferar exemplos, tendo como referência a realidade brasileira mais recente: ou a reforma da previdência ou a falência do Estado; ou Belo Monte ou a crise da energia; ou o freio à imigração ou o colapso social; ou a indústria farmacêutica ou o fim do financiamento das pesquisas.” 

No caso do queijo serrano, o jogo capitalista das alternativas infernais se mostrava a partir de uma ameaça implícita: ou queijo serrano produzido pela indústria ou doenças causadas por falta de segurança alimentar. Sem que fosse preciso nenhuma campanha, nenhuma visita, nenhuma sessão de lavagem cerebral, nos resignamos a decisões e normalizamos transformar a cultura viva de um povo em algo marginal quando ainda cochichamos com os funcionários pedindo nosso pedaço de queijo escondido e depois como algo morto quando nem isso é possível mais, porque a produção já não é realizada. O processo de naturalização da apropriação e destruição do que é comum o que é conhecimento comum ou de uso comum de uma sociedade é o mecanismo básico do capitalismo, é o seu feitiço.  

A proibição do queijo serrano aqui no Sul é análoga a tudo que ouvimos e aceitamos como realidade sem pensar: ou salvamos a economia ou as pessoas; ou progredimos ou damos aos pobres o que comer; ou há emprego para as pessoas ou preservação do meio ambiente; ou agronegócio ou fome. É uma lógica do “ou isso ou aquilo”, uma forma de olhar que nos encurrala e nos ameaça. E ainda que pareça completamente externa, é a própria expressão da mente bifurcada, onde não há espaço para acolher a complexidade que vai além do ou isso ou aquilo. O feitiço que se derrama sobre nós socialmente vai se fundindo, por insistência, com nossa própria visão de mundo e boicotando qualquer ação nossa em direção à resistência ou à mudança. É aí que o contrafeitiço entra em cena. Para Stengers, nos lembra Renato Sztutman, a resistência a este “sistema feiticeiro sem feiticeiros” é feita a partir da “proliferação incessante de contrafeitiços, que não deixam de ser eles também feitiços”.  

 

Pra quebrar o feitiço, novas histórias

“Então, em dias ruins nós ouvimos nossas próprias vozes internas murmurando. ‘É inútil. Nós já perdemos. As forças que estão diante de nós são fortes demais.’ Essas vozes parecem razoáveis, sensíveis. Mas qualquer Bruxa consegue reconhecer um feitiço sendo lançado. Um feitiço é uma história que contamos a nós mesmos e que modela nosso mundo emocional e físico. A mídia, as autoridades contam uma história que está tão infiltrada que a maior parte das pessoas a confundem com a realidade.(…) O contrafeitiço é simples: conte uma história diferente”.

Esta é a fala de Starhawk, uma das autoras neopagãs mais lidas do mundo e uma reconhecida ativista do movimento antiglobalização que ela, aliás, prefere chamar de movimento por justiça global. Sua visão do sagrado e da magia está intimamente ligada ao ativismo e se transformou em um treinamento o Earth Activist Training – que mistura permacultura, espiritualidade e ação política. Para ela, é porque entendemos que a terra é sagrada que nos movimentamos na direção de defendê-la. E feitiço e magia são fundamentais para que isso possa acontecer.   

O pensamento de Starhawk, que por sinal se autodenomina Bruxa, tem influenciado fortemente acadêmicas como Stengers. Por meio do diálogo entre elas, palavras como feitiço, magia, encantamento e receita sendo esta última uma de minhas palavras mágicas preferidas começaram a aparecer em textos acadêmicos, balançando as frias estruturas do racionalismo científico e também inaugurando uma forma mais aterrada de relacionamento de pensadores acadêmicos com o mundo que lhes cerca. 

Ao lado de Stengers, acadêmicos como Donna Haraway e Bruno Latour têm também adentrado outra forma de fazer conhecimento, aberta, engajada, convidativa e extremamente provocativa. No documentário Story Telling for Earthly Survival, em meio a imagens de medusas gigantes que flutuam no espaço de sua sala, a antropóloga Donna Haraway nos fala: “Nós precisamos de outros tipos de histórias. Nós precisamos mudar as histórias, as histórias das eras, as histórias da Terra. Precisamos mudar as histórias assassinas. (…) A própria história da Terra está em perigo. Nossa própria extinção é realmente possível. Mas com ou sem extinção no sentido da morte final, o aprofundamento da destruição dos modos de viver e morrer nesta Terra está acontecendo. E a história desta Terra [que precisa ser recontada] é a das artes de viver em um planeta danificado, a obrigação absoluta de sermos capazes de nos tornarmos mutuamente capazes de mudar a história para a história da continuidade, cultivada nos túneis da terra.” A necessidade urgente de produção de novas histórias, da qual fala Haraway, tem sido também o foco de Latour, cujo artigo publicado em março deste ano nos convida a “imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise”. O texto, em linguagem nem um pouco acadêmica, se popularizou e tem norteado discussões em diferentes movimentos mundo afora. 

 

Além da denúncia – receitas para fazer nascer o possível

A verdade é que encontramos feiticeiros lançando contrafeitiços, ativando a arte de contar novas histórias e ousando imaginar outros mundos por toda parte. Aqui no Brasil, a jornalista e escritora Eliane Brum atiçou as chamas do Liberte o Futuro, um movimento que nasce, em suas próprias palavras, pelo susto e pelo desejo. “A pandemia se desenhava no mundo, a Itália vivia cenas de peste e o Brasil apenas anunciava seu primeiro caso. Mas havia quem já falasse da volta à normalidade. Este era o nosso susto. Normalidade para quem?”, escreve Brum neste artigo ao El País. O Liberte o Futuro traduz e expande a própria postura política de Eliane Brum que, enquanto jornalista, nunca se contentou com apenas denunciar. Como diz a própria Stengers em La Sorcellerie Capitaliste “se o capitalismo tivesse que ser posto em perigo pela denúncia, ele já teria morrido há muito tempo”. Eliane sempre foi além da denúncia, trazendo conexões entre o que vemos como equívoco e o que fazemos na direção da resistência e da criação de outras possibilidades. 

Sustentando que “imaginar é um ato político”, o movimento está ativando e publicando propostas sobre como “adiar o fim do mundo” expressão inspirada pelo imperdível livro de Ailton Krenak, uma das vozes que tem lucidamente apontado direções nesse mesmo sentido. As propostas, que podem ser enviadas em vídeos de até um minuto, são divididas em cinco grandes temas: Antídotos, Emergência climática, Consumo, Democracia e Insurreição. Nos vídeos disponíveis no site, é possível ouvir dezenas de pessoas compartilhando seus feitiços de resistência, criatividade, testemunhos de amor pela Terra e seus seres. Além disso, o movimento também está realizando Laboratórios Sociais, onde pessoas se reúnem virtualmente para ouvir e compartilhar propostas mas também para organizar formas de colocá-las em prática. 

Do lugar de onde falo, como participante desse maravilhoso experimento encantado chamado CEBB, vejo o meu professor, Lama Padma Samten, soprando seu feitiço visionário e fazendo surgir comunidades, e dentro delas retiros, horários de prática e estudo, mas também institutos, escolas, editoras, revista, rádio, lives, horta, eventos de diálogo. Um grande feitiço em direção à Terra Pura movido por sonho, por imaginação, pelo exercício de sustentação do nosso mais ousado desejo: que todos os seres sejam felizes. 

Lama Samten tem ocupado um lugar de feiticeiro, persistentemente nos fazendo enxergar as armadilhas da visão que chama de paradigma econômico e nos convidando a atuar no mundo a partir de uma outra base, mais ampla, mais inclusiva, menos antropocêntrica. Em suas palavras, “A vida como um todo sustenta cada ser da biosfera na sua individualidade. Surgimos assim e assim vivemos. A visão antropocêntrica está ultrapassada, é uma bobagem. Não temos que lidar apenas com a rede dos seres humanos. Somos uma grande rede, essa grande rede inclui os rios, as montanhas, o mar, a composição da atmosfera. Nós precisamos cuidar disso. É isso tudo que nos cuida, é isso que mantém a vida. E o paradigma econômico simplesmente não considera isso.” 

Além dos feiticeiros do Liberte o Futuro e do CEBB, espalhando contrafeitiços às alternativas infernais do capitalismo, podemos encontrar tantos outros. Sempre me emociono com Emicida e seu projeto AmarElo Prisma, uma jornada coletiva de autotransformação para que as pessoas possam se ajudar mutuamente em momentos de grandes mudanças. Outra super bruxa é a adrienne maree brown, que junto com diferentes movimentos de transformação nos Estados Unidos está impulsionando ações políticas por meio do exercício da ficção visionária uma forma de imaginar mundos novos e justos. Toda organização é um ato de ficção, diz adrienne. 

E voltando ao queijo serrano, não é que todos tenham sucumbido ao feitiço baixo-astral da Anvisa. Aliás, alguns anteciparam que ele aconteceria. Suspeitaram que iriam querer pasteurizá-lo e resolveram partir em sua defesa. Foi assim que o queijo serrano se tornou um dos alimentos listados em uma importante publicação produzida por especialistas do movimento Slow Food: um projeto incrível chamado A Arca do Gosto. A história do queijo e de todos os outros alimentos listados na publicação não é contada por uma motivação hedonista, pelo sabor apenas. A sua produção, que envolvia na época da pesquisa, em 2016, mais de 4 mil famílias nos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, garantia uma relação de mais harmonia com a terra, a valorização de raças crioulas, a criação livre dos bichos, o respeito ao tempo da cura do alimento (veja aqui). O Slow Food foi criado por um grupo de ativistas italianos com o objetivo inicial de defender as tradições regionais, a boa comida, o prazer gastronômico e um ritmo lento de vida. Um movimento claríssimo de contrafeitiço e que se espalhou pelo mundo e de alguma forma, chegou até os Campos de Cima da Serra. É um contrafeitiço ainda em curso em defesa do que amamos, e do qual podemos participar. 

Para terminar, deixo uma citação de Starhawk, em seu livro Webs of Power: Notes from the Global Uprising (Teias de Poder: Anotações da Insurgência Global). Porque não há nada melhor do que as palavras de uma Bruxa para inspirar, abençoar e empoderar nossos contrafeitiços em defesa do que amamos. 

“O contrafeitiço para o medo é a coragem: encarar a possibilidade do pior e depois seguir em frente com o que você sabe que é certo. O contrafeitiço para o desespero é a ação em serviço de uma visão. O contrafeitiço para a paralisia é teimosia, paixão persistente. Mesmo que estejamos errados, mesmo que nada que façamos faça qualquer diferença, coração e paixão são um lugar melhor de estar do que falta de esperança, cinismo e medo. Se as autoridades nos reprimem, isso é melhor do que nos tornarmos pessoas que reprimem a si mesmas. Se vemos nossos sonhos sendo arrancados das nossas mãos, isso é melhor do que nunca ter ousado sonhá-los. Se nós contamos nossas próprias histórias com intensidade e foco suficientes, nós vamos começar a acreditar nelas, e outras pessoas também. Nós iremos quebrar o feitiço que nos domina. Nós começaremos a desejar aquele outro mundo que dizemos ser possível com tanta intensidade que nada vai poder nos impedir ou negar. Tudo que precisamos é da nossa vontade de agir a partir da visão, e não do medo, e arriscar desejar, ousar agir em nome daquilo que nós amamos.” 

 


Agradecimentos a Andreas Hernandes e Henrique Lemes pelas sugestões ao texto.

Apoiadores

3 Comentários

  1. Moisés Jardim Pinheiro disse:

    Texto inspirador 🙏

  2. Álvaro Veiga Júnior disse:

    O inimigo é universalista: Monocultura, monoteísmo, industrialismo…império capitalista. E a diversidade da vida se dirige à justiça global, onde se inclui espiritualidade, agricultura ecológica, ecologia profunda, educação, culturas… Planetariedade, ética do cuidado e cidadania planetária…O paradigma ecossocialista… Os contrafeitiços nos permitem sustentar outros mundos.

  3. Renato disse:

    Obrigado pelo texto esclarecedor. Feitiços sem feiticeiros, mais perigoso que feitiços com feiticeiros…

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