Garab Dorje, uma biografia

A extraordinária história de vida desse grande mestre contada por Dudjom Rinpoche


Por
Revisão: Daniela Castro
Edição: Lia Beltrão e Guilherme Erhardt
Tradução: Ormando M.N.

A palavra em tibetano para biografia é namthar, que literalmente significa “liberação completa”. Essa definição mostra claramente a intenção das biografias tibetanas: mostrar um retrato do desenvolvimento espiritual, sem o compromisso de seguir uma lógica cronológica dos eventos. Ela serve como exemplo perfeito para inspirar praticantes a ultrapassarem seus obstáculos ao transformá-los em caminho para a liberação. Assim, a história da vida de um mestre se torna um ensinamento a ser estudado e contemplado, já que pode produzir faíscas de sua própria liberação em nós. Os tibetanos ainda as dividem em três tipos: externa, com a descrição do seu nascimento, educação e eventos do cotidiano; interna, que narra as experiências meditativas e iniciações; e a secreta, onde sua experiência de realização é descrita.

Para nós, ocidentais, com nossa sensibilidade moderna, podemos entrar em choque com o relato das vidas de alguns mestres, e a de Garab Dorje não foge à regra: ela possui todos os elementos que desafiam a nossa imaginação mecânica-científica-materialista. Uma região de desconfiança sempre opera ao lermos as biografias de grandes mestres e ficamos pensando se devemos tomar ou não como literais os eventos que estão sendo narrados.

Os eventos de uma biografia como a de Garab Dorje – que tampouco deveriam ser simplesmente aceitos de forma cega e sem questionamentos – são um grande desafio para o nosso sistema de pensamento. Nossa tendência habitual é encará-los como mera simbologia, ou vê-los como expressão poética e assim por diante. Essa perigosa redução pode nos ajudar a digerir com mais facilidade o conteúdo.

Em certa medida é bem compreensível que se faça isso. Contudo, existe uma perda quando reduzimos essas “ideias da tradição” e as adaptamos à nossa compreensão de mundo. Para o praticante do Darma especialmente, essa redução pode ser lida como uma censura e uma espécie de “desnutrição” dos relatos. O problema dessa abordagem é que ela dificulta a obtenção de uma visão mais ampla sobre o significado do Darma e apenas reforça uma atitude de cristalização do nosso próprio pensamento. Nosso arcabouço materialista de imagens fica intocado, imune a qualquer ampliação, uma vez que varremos tudo que confronte nossas ideias consolidadas da realidade.

Portanto, o convite aqui é que, ao se deparar com a história de vida de Garab Dorje, você possa manter sua disponibilidade para desfrutar do relato sem cair nem em ingenuidade crédula, nem em ceticismo árido. Que possamos ter uma abertura frente àquilo que a nossa mente não consegue sondar, que esse elemento de mistério preencha o espaço da imaginação e nos permita aproveitar a inspiração que as biografias nos oferecem.

Em agosto, o CEBB Caminho do Meio receberá Dzogchen Ponlop Rinpoche que ensinará o texto-testamento que Garab Dorje transmitiu a seu discípulo Manjushrimitra, iniciando assim a linhagem transmissão dos ensinamentos Dzogchen nesse mundo de acordo com a Linhagem Nyingma. O testamento de Garab Dorje consiste de apenas 3 frases que apresentam visão, meditação e ação. Nesse ensinamento está contida a essência vital de toda a tradição dos ensinamentos Dzogchen. Ponlop Rinpoche irá comentar o texto do grande mestre dzogchen Patrul Rinpoche para nos apresentar a visão, a meditação e ação a partir dessa perspectiva.


A Linhagem de Atiyoga, a Grande Perfeição  –  GARAB DORJE E MANJUSRIMITRA*

Quando o Transcendente Senhor dos Segredos, Vajrapani, estava ensinando a doutrina do mantra secreto para um conjunto de dakas, dakinis, mestres realizados e detentores da consciência no cemitério a céu aberto da Montanha de Fogo Flamejante, ao norte do Monte Sumeru, a ilha de Dhanakosa, em Oddiyana no Oeste da Índia, era habitada somente por criaturas chamadas kosa, que tinham corpos como os dos homens, as faces de ursos e garras inteiras de ferro. A ilha era rodeada por muitos tipos sublimes de árvore, incluindo sândalo. Era por causa disto que era chamada de Dhanakosa (Tesouro de Riqueza), ou assim é dito. Neste país havia um grande templo chamado Sankarakuta, que era rodeado por seis mil e oitocentos templos pequenos. Era um lugar perfeitamente dotado com esplendor e riqueza.

Lá havia um rei, Uparaja, e sua rainha, Alokabhasvati. Eles tinham uma filha chamada Sudharma. Ela foi ordenada como uma noviça e, logo após, como uma freira. A uma yojana de distância de Dhanakosa, em uma ilha coberta com areia dourada, em uma minúscula casinha de palha, ela praticou yoga e meditação com a sua serva Sukhasaravati. Uma noite, a monja teve um sonho no qual um homem branco imaculado colocou três vezes um vaso de cristal selado com as sílabas OM AH HUM SVAHA sobre a coroa da cabeça dela. A luz irradiando do vaso era tanta que ela podia claramente ver os três reinos. Não muito depois disto, a freira deu à luz a uma criança, que não era outro que não o filho do Conquistador, Adhicitta (sems-lhag-can), a divina emanação de Vajrasattva, que havia propagado a Grande Perfeição no céu. Mas a freira estava envergonhada, e viu [o nascimento dele] como uma grande impropriedade:

‘A qual raça esta criança sem pai pertence?
Ele é algo além de algum demônio mundano?
Ele é um demônio? Brahma? Ou, ainda, algo diferente?
Ele é um espírito  – um Gyelpo, um Tsen ou um Mu?
Nos três reinos, quem iria desejá-lo?
Apesar de alguns deuses e antideuses poderem tomar diversas formas,
Ainda assim eu não vejo precedentes para isto.
Para quem este reino injusto existe?
Ai de mim! Minha conduta é pura e eu desejo superar o mundo,
Mas eu serei acusada por seres perversos. Que pecado!’

Garab Dorje

Então ela chorou em grande lamentação. Mas sua serva disse, ‘Ele é o filho dos Budas. É impróprio se desesperar.’

Sem prestar qualquer atenção à ela, a freira lançou a criança em um poço de cinzas, e de uma vez surgiram sons, luzes e outros fenômenos. Então, depois que três dias haviam passado, ela viu que a criança estava ilesa; assim ela soube que ele era uma emanação. Quando, com grande respeito, ela trouxe ele pra fora do poço, deidades celestiais se reuniram e exclamaram:

‘Ó Mestre! Ó Professor! Senhor Transcendente!
Ó senhor do mundo, revelando a verdadeira natureza!
Proteja-nos, Vajra Celestial!
Nós rezamos assim neste dia.’

Então, dakas, dakinis, deuses, nagas, yaksas e outros protetores mundanos também honraram ele com muitas provisões de adoração.

Quando sete anos haviam se passado o garoto disse para a mãe dele, ‘Mãe, eu gostaria de conversar com eruditos da doutrina. Por favor me dê seu consentimento.’

Ela respondeu, ‘Querida criança, você ainda é muito novo. Como os eruditos são homens sábios e estudados, vai ser difícil para você ter êxito.’

Mas, devido à seu pedido persistente, ela disse para ele discutir a doutrina com quinhentos eruditos, que eram os sacerdotes do já mencionado rei Uparaja. O garoto foi até Dhanakosa e solicitou uma audiência com o rei, para o qual ele repetiu seu pedido. Mas o rei pensou, ‘O rapaz é só uma criança, então vai ser muito difícil para ele discutir a doutrina com eruditos. E ainda assim, existem muitas marcas de uma grande indivíduo no corpo dele. Talvez ele seja uma emanação.’

O rei consultou seus sacerdotes, entre os quais não houve consenso. Mas, um deles, que era muito instruído, disse, “Existe uma marca que é mais auspiciosa. Mande o garoto entrar e nós iremos descobrir se ele é, de fato, uma emanação.”

Quando convocado à presença deles, a criança se prostrou na frente dos eruditos. Depois de longas discussões e diálogos críticos ele prevaleceu sobre o brilho deles, que então curvaram suas cabeças aos pés dele. Os eruditos honraram ele com grande respeito e deram a ele o nome Prajnabhava (Fonte da Consciência Discriminativa). O rei também ficou atônito e em deleite, devido ao que ele conferiu à criança o título de “Grande Mestre” e o nome Garab Dorje (Vajra do Mais Alto Deleite). Anteriormente, sua mãe, que havia ficado maravilhada de encontrá-lo ileso depois de ser lançado em um polo de cinzas, chamou-o de Sukha o “Zumbi”, ou o “Zumbi Cinzento”.

Então, na direção do norte, no precipício chamado Suryaprakasa, que era muitíssimo amedrontador, e por onde espíritos atormentados podiam serem vistos vagando, Garab Dorje viveu por trinta e dois anos em uma casinha de palha, absorto em contemplação durante todo este tempo. Naquela ocasião, a terra tremeu sete vezes e uma voz veio do céu, proclamando o declínio dos ensinamentos extremistas. Ouvindo isto, um rei extremista mandou um assassino para matar o mestre; mas quando eles viram Garab Dorje voar através do céu, o rei e seus servos adquiriram fé suprema e foram iniciados nos ensinamentos budistas.

Agora, a memória de Garab Dorje continha todas as escrituras dos veículos externos e internos, e, em particular, os seis milhões e quatrocentos mil versos da Grande Perfeição natural [NGB Vols. 1–10]. Então, quando Vajrasattva apareceu de verdade para ele e mostrou-o como realizar a cognição prístina do [caminho de] não-mais-aprender, tendo conferido a ele o empoderamento do vaso da consciência, ele também ordenou que ele escrevesse os tantras verbais. Então, no topo do Monte Malaya, que tem pedras preciosas em abundância, o mestre, junto com a dakini Vajradhatu (a Dakini da Vastidão Indestrutível), que saboreia êxtase mundano, assim como com a dakini Pitasankara (a Dakini Amarela que dá Êxtase) e a dakini Anantaguna (a Dakini das Virtudes Ilimitadas), passou três anos registrando estes preceitos por escrito. Eles também organizaram os escritos corretamente, sem qualquer erro, junto com os escritos emanados, que foram auto-originados e naturalmente estabelecidos. Eles colocaram todos estes em uma caverna chamada a “Origem Real das Dakinis” (mkha’-‘gro-ma mngon-par-‘byung-ba’i phug).

Em outra ocasião o mestre foi para o grande cemitério a céu aberto Sitavana, que fica ao nordeste de Vajrasana, onde há uma grande estupa, e que é habitado por muitas dakinis venenosas e seres selvagens. Lá, ele continuou a ensinar a doutrina para a dakini Suryakirana e incontáveis outros seres. Naquele tempo, o sublime Manjusritiksna declarou ao mestre Manjusrimitra. ‘Ó filho da família iluminada! Se você deseja se tornar um buda em uma única vida, vá ao grande cemitério a céu aberto Sitavana.’

Manjusrimitra foi para o cemitério a céu aberto Sitavana, onde ele encontrou o mestre Garab Dorje e estudou a doutrina com ele por vinte e cinco anos. Após o grande mestre Garab Dorje ter dado a ele todas as instruções e mais conselhos, o mestre passou para o nirvana na vastidão incorrupta, nas margens do Rio Danatika. Quando isto aconteceu, Manjusrimitra clamou três vezes “Ai de mim! Ai de mim!” com angústia. Então, em uma aura de luz celestial apareceu de verdade o corpo do mestre; e o mestre soltou uma caixa de ouro do tamanho de uma unha que caiu na mão de Manjusrimitra. Ela continha o seu último testamento, intitulado Três Frases que Penetram o Essencial (tshig-gsum gnad-du brdeg-pa, NYZ bi-ma snying-thig, Pt.1, Vol. Ga, pp. 304–18).

Manjushrimitra

Posteriormente, o grande mestre Manjusrimitra dividiu os seis milhões e quatrocentos mil versos da Grande Perfeição em três classes:

A Classe Mental é para aqueles que residem na mente.
A Classe Espacial é para aqueles que são livres da atividade.
A Classe Esotérica Instrucional é para aqueles
Que são decididos sobre a essência mais íntima.

De dentro da última classe, em particular, ele dividiu a versão concisa, o Estabelecimento do Essencial Intrínseco da Espiritualidade Mais Íntima (thig-le rang-gnad-du dbab-pa), em uma linhagem oral e uma tradição exegética. Ele anotou a linhagem oral, mas, não encontrando, naquele momento, um recipiente digno de ser confiado com a tradição exegética, em outras palavras, com os preceitos transmitidos da Espiritualidade Mais Íntima (snying-thig), ele ocultou-os em baixo de uma rocha ao nordeste de Vajrasana; e, selando a rocha com um vajra-duplo (viśvavajra), ele fez ela ficar invisível. Então, ele foi para o cemitério a céu aberto Sosadvipa, a oeste de Vajrasana, onde ele ensinou a doutrina para ḍākinīs feias, incontáveis animais, e para muitos praticantes que aderiram à conduta [do mantra secreto]. Ele permaneceu lá, absorto em contemplação, por cento e nove anos.


*Título original ” The Lineage of Atiyoga, the Great Perfection  -  GARAP DORJE AND MAÑJUŚRĪMITRA”, extraído do segundo volume de “The Nyingma School of Tibetan Buddhism  –  It’s Fundamentals and History”, de Dudjom Rinpoche (Jikdrel Yeshe Dorje).


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3 Comentários

  1. Ormando :) disse:

    “Prece de Aspiração do Dzogchen” por Dudjom Rinpoche

    “Que nós possamos obter a grande confiança da Visão da igualdade perfeita de samsara e nirvana.

    Que nós possamos aperfeiçoar grandemente e fortalecer a Meditação, que é repousar naturalmente no estado inalterado.

    Que nós possamos ganhar maior habilidade na Ação, que é a natural e espontânea não-ação.

    Que nós possamos naturalmente descobrir o Darmakaya, que é além de ganhar ou perder.”

    Escrito por Jñāna (Dudjom Rinpoche)

    Traduzido para português por Ormando MN

    Texto em inglês disponível em https://www.lotsawahouse.org/tibetan-masters/dudjom-rinpoche/dzogchen-aspiration-prayer

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