Foto: Sebastien Marchand (Unsplash)

Instruções para o Tenzo, o cozinheiro zen

Texto do grande mestre Dogen sobre como transformar a prática da cozinha na mais elevada prática espiritual


Por
Transcrição: Ormando M. Neto
Tradução: José Eishin Fonseca

Na primavera de 1237, mestre Dogen, que levou o budismo Zen da China ao Japão, escreveu o ensinamento conhecido como Instruções para o Tenzo, dedicado “àqueles que em gerações futuras vierem a praticar o Caminho”. Abaixo, um trecho do texto de Eihei Dogen zenji, selecionado e traduzido por José Eishin Fonseca a partir da versão inglesa de Yasuda Joshu rishi e Anzan Hoshin sensei. Este texto foi originalmente publicado na edição 18 da Bodisatva. Para conhecer nosso acervo e adquirir exemplares, acesse aqui.


 

Nos mosteiros zen, o tenzo é responsável pelas refeições da comunidade. Embora seu trabalho envolva preparar e servir a comida, o tenzo não é apenas “o cozinheiro”. O tenzo prepara toda a comida com respeito, como se ela fosse para o imperador, e tanto o alimento cozido como o cru deve ser tratado dessa maneira.

Ao preparar a comida, jamais considere os ingredientes a partir da mente comum. Se você tiver apenas ervas do campo para fazer uma sopa, não as despreze. Se tiver ingredientes para uma sopa cremosa, não se deixe enlevar. Onde não há apego, não pode haver aversão. Não seja descuidado com ingredientes grosseiros nem dependa de ingredientes finos para o seu trabalho, mas lide com todos eles com a mesma sinceridade. Não fazer isso é como mudar seu comportamento de acordo com a importância da pessoa que você encontra. Um estudante do Caminho não age assim.

Dia e noite, o trabalho de preparar a comida deve ser feito sem desperdiçar um só momento. Fazendo sempre de todo o coração, isto alimentará as sementes do Despertar, trazendo paz e alegria à prática da comunidade.

Nos muitos mosteiros que conheci na China, os monges encarregados das várias funções treinam no trabalho durante um ano, e cada um deles, a cada momento, pratica de acordo com três normas. Primeiramente, beneficiar os outros traz benefícios. Em segundo lugar, fazer todo esforço para manter e renovar o ambiente monástico. Terceiro, seguir as normas estabelecidas pelo exemplo dos excelentes praticantes do passado e do presente e juntar-se a eles.

Você deve entender que os tolos praticam sem considerar as outras pessoas e os sábios praticam considerando todas as pessoas como consideram a si mesmos.

Um antigo mestre disse:

“Dois terços de sua vida se passaram, sem esclarecer quem você é.
Gastando sua vida, metendo-se nisso e naquilo, você nem mesmo se vira ao ser chamado.
‘Patético!’”

A partir desses versos, podemos ver que se você não encontrar um verdadeiro professor, você apenas seguirá suas tendências. E isto é patético. Parece com a história do filho tolo que sai da casa dos pais com o tesouro da família e joga tudo no lixo. Não perca a sua oportunidade como fez aquele homem.

Considerando aqueles que no passado fizeram bom uso de seu treinamento, como o tenzo, podemos ver que suas virtudes eram comparáveis àquelas de sua função. O grande Daigu se iluminou treinando como tenzo. A única coisa de valor é a realização do Caminho, o único momento precioso é cada momento da realização do Caminho.

Muitos são os exemplos daqueles que buscam o Caminho. Há a história de uma criança oferecendo a Buda um punhado de areia como um grande tesouro. Outra é a de alguém que fez imagens de Buda e as reverenciava, criando com isso grandes méritos. Quão maiores devem ser os méritos de exercer a função de tenzo realizando suas possibilidades como fizeram os excelentes praticantes que praticaram antes de nós?

Quando treinarmos em qualquer função do mosteiro, devemos fazê-lo com um coração alegre, um coração de mãe, um vasto coração.

De acordo com as Normas Monásticas do Zen, “a comunidade monástica é a mais excelente de todas as coisas porque aqueles que vivem assim vivem além da estreiteza das fabricações sociais”. Não somos afortunados apenas por termos nascido como seres humanos, mas também por sermos capazes de preparar refeições para oferecê-las aos Três Tesouros. Devemos nos alegrar e ser gratos por isto.

Podemos também refletir sobre como seriam nossas vidas, se nascêssemos em reinos de seres infernais, fantasmas famintos, animais, ou deuses invejosos. Como seriam difíceis nossas vidas naquelas quatro situações ou se tivéssemos nascido em qualquer uma das oito condições adversas. Não seríamos então capazes de praticar juntos com a força de uma comunidade  monástica, ainda que o desejássemos, e muito menos poderíamos oferecer comida aos Três Tesouros com nossas próprias mãos. Em vez disso, nossos corpos e mentes ficariam presos dentro dos limites dessas circunstâncias.

A vida que vivemos é uma vida de regozijo, este corpo é um corpo de alegria que pode ser usado para dedicar oferendas aos Três Tesouros. Ela surge através dos méritos de eons, e usando-a assim, o seu mérito se estende infinitamente. Espero que vocês possam trabalhar e cozinhar desta maneira, usando este corpo, que é a fruição de milhares de existências e nascimentos, para criar méritos ilimitados para inumeráveis seres. Ter coração alegre é compreender esta oportunidade, pois mesmo se você tivesse nascido como um senhor do mundo, o mérito de suas ações simplesmente desapareceria como a espuma, como fagulhas.

Um “coração materno” é um coração que cuida dos Três Tesouros como pais cuidam de uma criança. Os pais educam uma criança com profundo amor, a despeito de pobreza ou dificuldades. Seus corações não podem ser compreendidos por um outro. somente um pai ou uma mãe pode entendê-lo. Os pais protegem a criança do calor ou do frio antes de querer saber se eles mesmos estão sentindo calor ou frio. Este tipo de cuidado só pode ser entendido por aqueles que o praticaram. Elevada ao máximo, esta é a maneira como você deve cuidar da água e do arroz, como se eles fossem seus próprios filhos.

O grande mestre Sakiamuni ofereceu os últimos vinte anos de sua própria vida para nos proteger do declínio até os dias de hoje. O que é isto senão a doação de seu “coração paterno”? “Aquele que chegou do tal como é” não fez isso na esperança de tirar algum proveito, mas por munificência absoluta.

O “vasto coração” é como uma grande extensão do oceano ou uma enorme montanha. Ela tudo vê da mais inclusiva e mais ampla das perspectivas. Este vasto coração não considera uma grama leve demais nem cinco quilos pesado demais. Ele não segue os sons da primavera nem tenta se aninhar em um jardim florido; ele não escurece com as cores do outono. Ele vê todas as mudanças de estações como um só movimento e compreende o leve e o pesado na sua relação um com o outro, numa visão em que ambos estão incluídos. Quando escrever ou estudar a palavra “vasto”, é assim que você deve entender o seu significado.

Se o tenzo de Jiashan não tivesse estudado assim a palavras “vasto”, ele não poderia ter iluminado o velho Fu com uma risada. Se o mestre zen Guishan não tivesse entendido a palavra “vasto”, ele não teria soprado três vezes em gravetos secos. Se o mestre Dongshan não entendesse a palavra “vasto”, ele não poderia ter respondido “Três libras de linhaça” ao monge que lhe perguntou sobre o Buda.

Estes e outros grandes mestres através dos tempos estudaram o significado de “vasto” ou “grande” não apenas na palavra em si, mas em todos os momentos e atividades de suas vidas. Assim, viveram como um grande grito de liberdade, apresentando a Grande Matéria, penetrando a Grande Questão, treinando grandes discípulos e trazendo desta forma tudo isso até nós.

O abade, os encarregados das várias funções e todos os monges devem ter sempre em mente essas compreensões, esses três corações – o coração alegre, o coração materno, o vasto coração.


Esta é a transcrição de um texto que se encontra na edição 18 da Revista Bodisatva. Se você deseja saber mais sobre o nosso acervo e adquirir algum exemplar, acesse a loja virtual!

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3 Comentários

  1. rafaela senna disse:

    à verdadaira iluminação!

  2. Amiten Panzera disse:

    maravilhoso

  3. Adriana Leopoldino disse:

    Pratica sempre em qualquer momento

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