Verdadeiros componentes de sociedades compassivas e sustentáveis, por Matthieu Ricard
Matthieu Ricard é um monge budista, humanitário, autor, fotógrafo e fundador da Karuna-Shechen, organização que busca quebrar o ciclo da extrema pobreza e revelar o potencial de mulheres, homens e crianças mais vulneráveis na Índia, Nepal e Tibete. Ele mantém um blog em seu site, onde esse valioso conteúdo, que aborda profundamente a interdependência, foi originalmente publicado.
O nosso sentimento de pertencer a um planeta, a uma humanidade comum e a uma consciência compartilhada com outras espécies foi reforçado pelos efeitos da pandemia de Covid-19. Um vírus de tamanho nanométrico conseguiu em poucas semanas paralisar parte do mundo e impactar a vida de mais de 6 bilhões de humanos. A nossa interdependência tornou-se mais evidente do que nunca, à custa da ideia de que o ser humano “se retirou da natureza” (como se pudéssemos nos retirar de algo do qual intrinsecamente fazemos parte). Os especialistas do IPCC¹ apelam de forma unânime e veemente aos nossos líderes para que considerem as ligações comprovadas entre o aquecimento global e os riscos à saúde, segurança e economia, que são particularmente exacerbados nas áreas mais afetadas.
Podemos, portanto, compreender a necessidade de questionar nossa responsabilidade universal e a urgência de fortalecer nosso senso de solidariedade e cooperação em geral. Com as nossas capacidades e recursos individuais, cada um de nós pode mobilizar-se à sua maneira e cultivar um estado de espírito altruísta para se tornar um elo na imensa cadeia de cooperação que se estende para além de muros e fronteiras.
Também é essencial levar a sério e de forma pragmática as recomendações dos cientistas climáticos e ambientais. Os dirigentes estatais não têm mais o direito, em vista de seu dever para com as gerações futuras, de transferir constantemente para os próximos governos a responsabilidade de tomar as medidas drásticas necessárias, sabendo que provavelmente não serão muito populares a princípio. O futuro não dói, pelo menos não ainda, mas vai bater forte e rápido se não fizermos algo hoje, e as gerações futuras certamente dirão “você sabia e não fez nada”.
Embora estejamos em grande parte conscientes da emergência ecológica, também podemos nos sentir impotentes, até mesmo ansiosos, diante dos compromissos necessários — tanto no nível individual quanto no coletivo. Essa percepção, às vezes vertiginosa, pode nos paralisar e nos levar a nos fecharmos em nós mesmos.
A desconfiança em relação à instituição leva ao abandono da participação na vida comunitária. E a patética desconfiança em relação aos cientistas abre caminho para o retorno do obscurantismo. Vemos aqui a definição de individualismo dada por Alexis de Tocqueville, historiador e filósofo, em meados do século XIX, que já se preocupava com esse “sistema de isolamento da existência. Individualismo [como antônimo] do espírito de associação”.
“Individualismo” geralmente tem dois significados. Pode referir-se à autonomia moral dos indivíduos que lhes permite agir e pensar livremente. Em um nível filosófico, esse individualismo é a base de nossas sociedades democráticas.
Existe, no entanto, uma visão alternativa: o individualismo como uma aspiração egocêntrica de ser livre de qualquer consciência coletiva e dar prioridade ao “eu primeiro”. Os indivíduos são assim encorajados a agir por impulsos imediatos, desconsiderando outras pessoas, sua própria responsabilidade na sociedade e as consequências de suas ações.
O economista e sociólogo inglês Richard Layard considera esse excesso de individualismo uma das mazelas significativas do nosso século e que “os indivíduos podem nunca conseguir levar uma vida satisfatória senão numa sociedade onde as pessoas cuidam umas das outras e promovem o bem-estar dos outros como o seu próprio. A busca do sucesso pessoal às custas dos outros não pode contribuir para uma sociedade feliz, pois o sucesso de uma pessoa implica necessariamente o fracasso de outra. Hoje, a balança pende fortemente para a busca de interesses individuais. Este excesso de individualismo está, acreditamos, na raiz de uma série de problemas da sociedade”.²
Há uma bela interpretação da dialética Mestre e Escravo na Fenomenologia do Espírito de Hegel. Na primeira leitura, o mestre é o mestre do escravo e pode levá-lo a fazer qualquer coisa. Ele parece ter total liberdade de ação. Na segunda leitura, o escravo parece privado de sua liberdade, pois deve cumprir todos os desejos de seu senhor. Na terceira leitura, percebemos que o mestre é de fato um escravo de seus próprios desejos, e que o escravo conseguiu domar seus desejos, tornando-se assim seu mestre interior. Talvez às vezes também sejamos escravos de nossos próprios desejos, construções mentais e vieses cognitivos. Querer agir ao sabor de qualquer capricho pode ser uma estranha tomada de liberdade que destrói o tecido social, já que nos tornamos – com um cinismo um tanto resignado – um joguete para mover pensamentos e emoções que prejudicam nosso julgamento.
Ao contrário do individualista que confunde a liberdade de fazer o que quer com a verdadeira liberdade que consiste em dominar a si mesmo, entendemos a importância de considerar a interdependência e a cooperação como componentes essenciais de sociedades solidárias e sustentáveis. Libertar-se da ditadura do egocentrismo e dos preconceitos que ele carrega significa poder tomar a própria vida em suas próprias mãos, em vez de abandoná-la a tendências forjadas pelo hábito.
É fundamental hoje considerarmos a interdependência de todos os seres, tanto na forma como operam, quanto na aspiração compartilhada de evitar o sofrimento e vivenciar o bem-estar. Um estado de ser altruísta pode ajudar a aliviar as desigualdades e injustiças sociais no curto prazo, promover o bem-estar da população no médio prazo e, no longo prazo, levar adequadamente em consideração o destino das gerações futuras e da vida em geral. Se no início uma tarefa pode parecer além de nossas capacidades, podemos progredir passo a passo. Como escreveu o filósofo Pierre Levy, “ninguém sabe tudo, mas todos sabem alguma coisa”. Poderíamos dizer o mesmo da ação, “ninguém pode fazer tudo, mas todos podemos fazer alguma coisa”. O fato de a jornada ser longa não deve nos desanimar. O importante é saber que estamos caminhando na direção certa. Nesse caso, cada passo dado é gratificante e nos impulsiona a perseverar pelo bem de todos os seres.
Os estudos transdisciplinares de Gauthier Chapelle e Pablo Servigne mostram que é possível reviver os principais fatores de mudança que todos temos em nós mesmos. Em seu livro Mutual Aid: The Other Law of the Jungle (2022), eles citam uma passagem inspiradora do livro de Jean-Claude Ameisen, Dans le lumière et les ombres [Na luz e nas sombras]: “Precisamos entrar em relacionamentos com empatia, com o que há de único, singular, maravilhoso, frágil e ameaçado em cada ser humano e na natureza ao nosso redor. E devemos nos perguntar o que podemos fazer para proteger, preservar, reparar, curar e evitar que desapareça. […] Com respeito pela grande vulnerabilidade de quem nos trouxe à vida, de quem nos rodeia e de quem nos manterá vivos”.
Precisamos de uma educação esclarecida para enfatizar ideias de cooperação e solidariedade em vez de valores de competição e indiferença. Uma visão de um mundo interdependente e conectado pode estar no centro do que passamos para as gerações futuras. Assim, podemos entender como a interdependência e a cooperação podem remediar as mazelas contemporâneas, e como a prática contínua do altruísmo pode oferecer soluções para os desafios de amanhã.
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