Lama Padma Samten fala sobre a Roda da Vida e a posição de mente dos seres
Ensinamento de Lama Padma Samten durante a Prática de Prajnaparamita e Buda da Medicina, transmitido do CEBB Bacopari, em 15 de julho de 2021. O vídeo pode ser assistido aqui (a partir de 01:00:28).
Quando nós estudamos, por exemplo, os 31 mundos, fica mais claro o lugar onde estamos. Eu acho um pouco impactante que, quando estudamos a Roda da Vida, nós vejamos seis reinos. Mas quando o Buda olha com mais detalhes, vamos encontrar 31, e não seis. E o Buda termina por dividir isso em três mundos, e esses três mundos essencialmente estão vinculados a como os seres posicionam sua mente. Quando olhamos esse aspecto, vemos que já exercemos essa operação que é o mundo do desejo: Loka significa mundo, Kama significa desejo; desejo e apego.
Então nós estamos no Kama-Loka, no mundo do desejo e do apego. Esse mundo do desejo e do apego se divide em dois submundos. Isso é uma forma de descrever. Vocês não pensem que submundo é uma coisa negativa, mas é como eles se dividem. Então temos os mundos de sofrimento e os mundos de felicidade. Nós, felizmente, não estamos nos mundos de sofrimento! Estamos em um de felicidade – eu não sei se todos concordam, mas é mais ou menos isso. O mundo de sofrimento corresponde ao reino dos infernos, dos seres famintos, dos animais, e também ao reino dos asuras, que correspondem, dentro da descrição da roda da vida, aos semideuses. Eles estão dentro do reino do sofrimento devido ao estresse constante, à briga constante deles.
Já no reino da felicidade nós vamos encontrar sete classificações, sendo que a primeira é o reino humano. Na classificação dos reinos de felicidade, nós estamos no reino do desejo, o mais simples dentro desse reino. Logo em seguida, vamos encontrar várias classificações de reinos dos deuses acima do nosso reino humano. Entre os reinos dos deuses, vamos encontrar os três últimos, dentre os quais Tushita, que é o reino pelo qual os bodisatvas sempre passam. Acho muito interessante porque ele corresponde à situação em que, quando fazemos coisas boas pros seres, nós nos alegramos. É uma espécie de reino dos deuses que funciona por compaixão, mas tem um autointeresse, tem uma identidade trabalhando ali dentro. A pessoa faz boas coisas e ela surge com uma identidade de quem faz boas coisas. Isso corresponde ao reino dos deuses.
Diz-se que todos os bodisatvas cruzam ali por dentro. O caminho para chegar à iluminação e à liberação completa passa pela ilusão que surge em Tushita. Por lá passou o bodisatva que reencarna como o Buda Shakyamuni (como Sidarta inicialmente) e lá está Maitreya também. Acima desses mundos vocês vão encontrar o mundo dos seres que constroem coisas e encontram felicidade para si mesmos, e os seres que usufruem disso a partir da ação dos outros. Esses reinos todos são inseparáveis uns dos outros. Então nós sempre temos uma conexão, por exemplo, com o reino dos infernos, dos seres famintos, dos animais, dos asuras. Nós temos conexão com esses reinos todos. E também, naturalmente, com o sétimo reino de felicidade, que pertence ainda a Kama-Loka, o mundo do desejo. Esse sétimo reino de felicidade, de Kama-Loka, é onde está Mara.
É muito importante vermos essas descrições. Eu acho muito didático e apropriado nos lembrarmos sempre disso. Então, por exemplo, quando as coisas aparecem diante de nós, elas surgem como se fossem oportunidades superfavoráveis, e nós embarcamos naquilo. Isso é Mara. Essa é a mente de Mara, que se alegra com as coisas que chegam prontas, e aí nós embarcamos.
Mas isto é só um comentário. Aliás, é um breve comentário sobre o tema do qual realmente quero falar, que é o fato de que nós estamos no reino do desejo. Então, que ninguém some ao sofrimento – “some” não é de “sumir”, ninguém vai sumir –, que ninguém adicione ao sofrimento usual, do reino da felicidade que seja, que ninguém adicione a isso uma culpa por ter emoções, por se afligir, por gostar ou não gostar, porque esse é o Kama-Loka. Os seres todos estão dentro disso.
Os próprios bodisatvas primeiro vão a Tushita. Eles têm essa identidade que surge pela própria compaixão, são capazes de tomar a compaixão como caminho e também se enganam um pouco com isso, porque eles não estão iluminados. Então é importante nós entendermos que dentro dos nossos obstáculos temos esse aspecto de Kama-Loka, que é desejo e apego, e nós temos as flutuações de energia, temos essa confusão toda. Mas aí vem a parte final do que eu queria falar para vocês: nem tudo está perdido, pessoal, o Buda nos dá várias classes de ensinamento no meio disso.
A primeira classe de ensinamento é: tudo aquilo ao qual nós nos vinculamos vai dar problema. Então o Buda vai falar sobre o carma. É totalmente matemático, não há como evitar. Não tem uma lei, não tem um juiz, ainda que tenha Yama, que pertence a um dos reinos de deuses de felicidade, que estão um pouco acima do reino humano. É importante nós entendermos que a primeira classe de ensinamentos está ligada ao carma. Ou seja, quem torce pelo Inter sofre torcendo pelo Inter. Quem torce pelo Grêmio sofre torcendo pelo Grêmio. É muito simples. Quem torcer pelo Flamengo vai sofrer pelo Flamengo. É isso.
Nós nos fixamos a aquilo como se fosse um elemento de felicidade, e aquilo gira e termina batendo na nossa cabeça. Se, quando nós encontrássemos a felicidade, estivesse escrito “sofrimento”, talvez não avançássemos. Mas as coisas aparecem, e nelas está escrito “felicidade”. Nós embarcamos e aquilo parece feliz, realmente. Mas qual é o problema? O problema é o carma. Ou seja, quando nós embarcamos no âmbito da felicidade, perdemos a liberdade, escolhemos uma base para toda a nossa operação de originação dependente que surge posteriormente. E isso é feito sem que a gente perceba.
Mais adiante, quando as coisas começam a se complicar, vamos perceber o outflow, ou seja, a fermentação da nossa mente, que fica ocupada, que fica pensando na mesma coisa e fica girando. A base disso é uma bolha, um conjunto de referenciais que se estabeleceu. Perguntamos: “Quando se estabeleceu?” Isso se estabeleceu quando eu pensei que a felicidade era possível a partir desse movimento. Nós temos esse processo. Um sintoma do carma é a fermentação mental, algo que os Arhats não têm. Eles já ultrapassaram isso porque não têm mais essa ligação com as coisas.
Mas, se nós estamos no meio disso, é assim mesmo que acontece. Ninguém pense que está errado, mas é assim. Naturalmente, o Buda, quando vai estabelecer os ensinamentos, vai dizer que o carma não é uma boa ideia. Se pudermos aliviar o carma, teremos mais liberdade na mente para poder desenvolver estabilidade e lucidez. Essa é a razão de o Buda e a Sanga toda viverem em um retiro, essencialmente. Eles abandonam as atividades comuns e mergulham em um retiro, essa é a razão pela qual os retiros existem. Porque ele tem esse referencial do carma. Não é que haja alguma coisa errada na fermentação mental, na aflição, no giro da mente. Não tem nada errado, é assim mesmo. É um exemplo perfeito de como o carma atua.
Também há os ensinamentos que surgem por compaixão. Chagdud Rinpoche dava sempre muita ênfase para esse ponto, de um modo muito prático, não teórico. Um modo prático no sentido de que, quando ele via alguém em sofrimento, em vez de dizer: “O que foi? O que aconteceu? O que nós fazemos para consertar? Se você fizer isso, fizer assim, se você pensar assado, aí elimina o sofrimento”, ele trazia a perspectiva Mahayana, que é assim: “Se você está vendo o sofrimento, agora olhe em volta e veja a vastidão de sofrimento que tem por todo o lado”. Quando olhamos a vastidão de sofrimento, nosso sofrimento parece menor, porque ampliamos a mente.
Tentar resolver o sofrimento por dentro do samsara é mais ou menos assim: trocar o técnico, comprar uns jogadores, vender outros, agora acerta o time, agora vamos ganhar sempre (o que não vai acontecer). Os campeonatos foram criados por Chenrezig para podermos entender como é o sofrimento virtual e podermos nos livrar do sofrimento de fato. Porque é fácil rir do jogo de futebol, só não é fácil rir das situações em que estamos verdadeiramente imersos carmicamente. Eu fico brincando com esses modelos artificiais de jogos porque essa vastidão de mundo virtual – que é bem claro que é virtual – oferece sofrimentos virtuais que são mais fáceis de ver, mais fáceis de trabalhar. Temos essa perspectiva, que é superimportante.
Não pertence propriamente ao ensinamento do Buda ficar consertando o nosso sofrimento, isso pertenceria ao bloco 0. Se nós estamos em bloco 1 ou bloco 2, já estamos usando outros recursos. O primeiro deles é entender o carma, entender que é natural que o carma surja, entender como nós nos engajamos carmicamente, como nos prendemos, e como evitar isso. No segundo ponto, já estamos no caminho. Vamos olhar com compaixão a vastidão de seres que estão em sofrimento, em vez de ficar olhando o sofrimento próprio. A pessoa não está ali para resolver seus próprios sofrimentos, está ali para olhar aquilo profundamente, entendendo os seres todos. Quando ela vai entendendo de forma profunda, vai liberando a si mesma e aos outros.
Depois há a perspectiva da natural perfeição das coisas, que eu acho que é uma perspectiva libertadora, a culminância da maturidade do caminho. É quando nós temos uma compreensão da vacuidade, do prajnaparamita, compreensão mais profunda dos ensinamentos de Dudjom Rinpoche, Dudjom Lingpa, e também do Buda Shakyamuni, de Guru Rinpoche. Nós entendemos que, por exemplo, quando o sofrimento aparece, tem uma qualidade na nossa mente que propicia aquela compreensão de sofrimento, que produz aquela sensação de sofrimento, que produz a visão do outro, a visão do mundo, a visão das pessoas ao redor. Ela propicia e sustenta. É uma visão mágica.
É uma visão, como nós diríamos no Surangama (a palavra que o mestre Hsuan Hua usa em inglês é wondrous; miao em chinês), espantosa. Então, quando nós estamos nesse sofrimento, é interessante ver que ele surge em um certo momento, sob condições, sob o poder da bolha. Da mesma forma que estamos aqui vendo o templo, vemos nosso sofrimento de modo totalmente palpável, muito claro. Mas quando nós olhamos por dentro disso, vemos que tem uma natureza luminosa da nossa mente que sustenta todos aqueles aspectos, sustenta a bolha, a nossa sensação de identidade. Ela sustenta aquilo tudo e dá esse vigor – relativo à vitalidade –, dá vida a toda essa compreensão. Então, quando nós olhamos isso, giramos nossa mente sobre a própria mente que está produzindo isso e reconhecemos que essa mente é luminosa, vazia, incessantemente presente. Nós entendemos isso. Entendemos que essa compreensão já é a manifestação de Guru Rinpoche em nós e tomamos refúgio nessa visão e na base que produz essa visão. Isso é tomar refúgio em Guru Rinpoche. Não é que vamos escapar, neutralizar ou lutar contra o sofrimento; vamos iluminar o sofrimento. Esse é o processo dentro da natural perfeição.
Eu queria trazer isso porque, aparentemente, precisamos da compreensão desses vários caminhos e precisamos compreender que não vamos lutar contra as aparências, não vamos lutar contra os sentimentos e as dificuldades. Nós vamos utilizar todas as aparências que surgem como uma clareza da operação da mente. Mente essa que não surge e não cessa, incessantemente presente, dia e noite, no meio dos sonhos, no meio de todas as experiências que a gente tenha, felizes ou infelizes.
Não podemos negar o fato de que as nossas identidades surgem por dentro de bolhas e segundo os referenciais de Kama-Loka. A nossa mente está aí. Essa mente pode desaparecer e nós surgimos com outra mente em outro lugar, a tal ponto que a gente nem se reconhece mais. Olhamos e dizemos: “Uau, eu manifestei isso, mas eu não sou mais isso”. A pessoa pode dizer isso.
Mas, neste momento, nós olhamos para as nossas marcas e dizemos: “Eu sou isso”. Não precisamos rejeitar essa forma ilusória de ser, nós precisamos iluminar essa forma. Se não aproveitarmos a própria forma para iluminá-la, estaremos desperdiçando uma oportunidade, o que de modo geral é o que fazemos. Nós olhamos para aquilo e dizemos: “Isto aqui eu não quero, eu quero fazer outra coisa, quero que tudo seja diferente”. Essa busca por alguma outra coisa diferente é o que nos coloca dentro de um processo dinâmico que sempre busca acessar outra coisa, que é uma transmigração. Eu vou transmigrando de uma coisa para outra, como se eu pudesse encontrar uma coisa final, mas não há uma coisa final. A coisa final é quando eu paro no lugar onde estou e ilumino aquilo. E quando aquilo se ilumina, ilumina o mundo inteiro. Este é o ponto!
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1 Comentário
“algo” em mim compreende, e agradece profundamente a transmissão que recebo dessas palavras. São claras, simples e profundas.
Lamentavelmente, continuo mergulhado na escuridão e na ignorância.
Mas espero e observo.
Entretanto, obrigado pela luz que acendeu…