Arquivo pessoal da Ven. Tashi Choedup

Uma história de liberdade, queerness e fé | Parte 1

A monja Tashi Choedup fala sobre como a fé e a expressão queer descortinaram, para ela, uma visão aguçada da sociedade e a experiência de se sentir profundamente livre


Por
Edição: Caroline Souza
Tradução: Igor Souto
Entrevista por: Caroline Souza

Uma capacidade inata de acessar a mais radical liberdade foi o que levou a monja Tashi Choedup a questionar, desde muito pequena, o edifício de convenções que nos sustenta enquanto sociedade. Diante de seu olhar perspicaz, todos os grilhões se desfazem. Tashi nunca desejou o que seus amigos desejavam. Nunca aspirou pelo futuro que atribuíram a ela no berço, antes mesmo de abrir os olhos. Tashi queria mais, e não queria nada. Sua sede era uma só: a liberdade total. 

Nesta entrevista, a Bodisatva conversa com  a monja não binária Tashi Choedup sobre sua singular trajetória. Tashi é indiana e pratica o budismo tibetano nas linhagens Drukpa Kagyu e Gelug, e também vem dedicando a vida ao ativismo queer e ao apoio às comunidades trans, sobretudo em seu país natal.


 

Bodisatva: Pensei em começarmos falando um pouco sobre você: sua infância, família, como se conectou com o budismo. 

Ven. Tashi Choedup: Claro! Muitas pessoas não me conhecem [risos]. Eu sou Tashi Choedup. Durante a pandemia, estou residindo com meus pais em Hyderabad, uma cidade no sul da Índia. Nasci e fui criada em uma família hindu; meu pai e minha mãe são hinduístas praticantes. No entanto, cresci com diversas fés, incluindo o hinduísmo e o cristianismo, até eventualmente chegar ao budismo, que me fez sentir mais em casa. Então, é aqui que estou agora: o budismo é a minha casa. 

Ainda que eu dedique muito do meu tempo ao estudo da filosofia budista, também estou muito envolvida com a comunidade queer, LGBT, especialmente em Hyderabad, mas também em outras partes do país, dependendo do que posso fazer e de como posso ajudar. 


Quando você começou a investigar as questões de gênero e sexualidade? Como essa exploração se deu, na sua experiência?

Crescendo, eu sempre me senti diferente dos meus colegas e amigos da escola. Tive um irmão gêmeo: éramos gêmeos idênticos, mas pessoas completamente diferentes. Assim, eu sempre soube que era diferente, porque o que fazia sentido para a maioria das pessoas não fazia sentido para mim, como comida, filmes, música. Essas coisas nunca me atraíram muito. Enquanto meu irmão adorava tudo isso, eu pensava “ok, legal, mas não é grande coisa”.

Passei a maior parte da infância sozinha em casa. Nunca me dei ao trabalho de fazer muitos amigos. A maioria das coisas que as pessoas faziam e gostavam não me interessavam. Eu não as entendia. Além disso, eu tinha um profundo interesse pela fé. Tendo nascido em uma família hindu, meu acesso imediato era ao hinduísmo. Consequentemente, durante toda a minha infância eu estudei e pratiquei o hinduísmo, ao passo que a maioria das outras crianças não estavam interessadas nisso – o que é compreensível, hoje, quando olho para trás [risos]. Portanto, em certo sentido, gosto de pensar que a fé foi a minha primeira expressão queer, antes mesmo de eu conhecer meu gênero e sexualidade, meu queerness.

A fé foi meu primeiro engajamento queer porque ela se dava numa esfera pessoal. Sempre considerei que fé e religião são coisas distintas. Eu me relacionava com a fé no meu âmbito íntimo e privado, sem depender de instituições religiosas e de sua interpretação do que é fé. É nesse sentido, portanto, que sempre considerei que esse foi meu primeiro envolvimento queer. 

Porém, ao mesmo tempo, vivemos em um mundo amplamente binário, onde homens e mulheres são muito claramente distinguidos em vários níveis: expressão de gênero, trabalho, linguagem, todo tipo de coisa. Isso nunca fez sentido para mim. Obviamente, foi só mais tarde, no início da idade adulta, que comecei a aprender sobre essa linguagem, através de uma bolsa de estudos feministas. Mas, antes disso, eu já sentia um estranhamento. Por exemplo: as pessoas se casam, têm filhos, que por sua vez se casam e têm seus filhos, e eu não via sentido nisso. Antes de eu saber que era trans não binário, antes de eu saber que não era atraída sexualmente por mulheres, estava muito claro na minha mente que eu não me casaria. Isso não é para mim, não faz sentido de jeito nenhum. Foi e continua sendo assim.

Arquivo pessoal da Ven. Tashi Choedup

Eu também cresci dizendo que seria uma monástica. Eu não sabia, na época, em qual tradição específica, mas sentia que era algo que eu queria fazer. Viver como uma monja dedicada ao exercício da fé era algo que eu sentia que precisava fazer, mesmo antes do ensino fundamental. Isso apenas cresceu com o passar do tempo. 

No sul da Índia, cada estado tem sua própria língua: malayalam, kannada e assim por diante. A família em que eu nasci fala o telugu. E nela nós não possuímos termos para gênero e sexualidade como tal. Telugu é a segunda língua mais falada no país, porque somos muitas pessoas [risos], mas não temos uma linguagem clara para elucidar queerness ou qualquer identidade de gênero ou sexualidade que extrapole a lógica binária. Foi uma tarefa desafiadora para mim, enquanto criança, pensar e articular todas essas questões.

Contudo, eu cresci lendo, estudando, escrevendo e praticando inglês, então acabei me tornando hábil em articular [essas pautas] no meu idioma materno. Mas acho que, como a maioria das pessoas queer, eu sempre soube. Sempre soube que não era tipicamente cisgênero, uma pessoa heterossexual. Isso estava muito claro na minha mente.


Estou muito interessada em saber mais sobre como você entende isso que chama de queerness. Você disse que, para você, queerness sempre esteve relacionado à fé. E eu acho que, usualmente, a maioria das pessoas pensa em gênero e sexualidade em termos de desejo. Você pode falar um pouco sobre como vê a relação entre queerness e fé enquanto uma experiência do mundo interno?

Costumo dizer que a fé foi a minha primeira expressão queer porque a prática da fé sempre foi algo muito libertador para mim – começando com o hinduísmo, passando pelo cristianismo e culminando no budismo.  Ela me dava uma sensação de liberdade para me engajar e estar aberto ao aprendizado e às experiências que viriam a se desdobrar.

Atualmente, há departamentos interdisciplinares nas universidades que se dedicam ao estudo das questões queer, de gênero, sexualidade e assim por diante – e, como você disse, a grande maioria das pessoas fora da academia olha para queerness a partir do viés do desejo sexual grosseiro. Ser queer significa que você se identifica com este ou aquele gênero e esta ou aquela sexualidade. Mas penso que queerness, enquanto um fenômeno, é mais do que uma orientação sexual ou de gênero.

Em certo sentido, gosto de pensar que a fé foi a minha primeira expressão queer, antes mesmo de eu conhecer meu gênero e sexualidade, meu queerness.

De onde eu olho, queer é liberdade, em múltiplos sentidos. Liberdade para pensar além dos grilhões dos opressivos condicionamentos humanos. Somos todos condicionados de tantas maneiras a pensar de certo modo, a agir de certa maneira, a ser obrigado a isso ou aquilo, sem jamais investigar racionalmente se está certo, se está errado, se há sentido, se há lógica, se há racionalidade – somos simplesmente condicionados a ser de uma certa maneira, homens e mulheres, e a praticar certas coisas. 

Queerness, para mim, oferece liberdade em relação a esse condicionamento humano opressor. É uma liberdade para Ser; para experienciar e amar. Liberdade para não ser reduzido ao que chamo de “autômatos funcionais” que se encaixam dentro de formatos preexistentes. É viver fora disso, desse lugar onde não conseguimos imaginar a vida para além das configurações estabelecidas. Penso que queerness possibilita vislumbrar a vida fora dessa estrutura rígida que construímos para nós. Queerness aparece como uma bênção que realmente ajuda as pessoas a pensar além, imaginando a vida como uma vasta expansão, e não como algo limitado, como ocorre atualmente. 

Consequentemente, queerness é muito mais do que sexualidade, gênero ou simples desejo sexual. Considero que, em certo sentido, queerness nos ajuda a libertarmo-nos da presença do patriarcalismo, machismo, racismo, preconceito de casta, etc. Contudo, por mais que ele tenha esse efeito, o mundo reage à manifestação queer com medo.

O mundo mainstream se assusta e se sente desconfortável. Não acho que seja apenas desconforto devido ao gênero com o qual nos identificamos ou às pessoas com as quais escolhemos ter relações sexuais: seu medo e desconforto vão muito além. Incluem isso, mas vão além: é um medo relacionado ao fato de que queerness está propondo coisas nada convencionais, está amplamente questionando e desafiando o status quo e as convenções. A maioria das pessoas que estão confortáveis com o status quo se sentem ameaçadas por essa visão. Portanto, penso que se trata de algo muito maior do que expressão de gênero ou desejo sexual.


Você mencionou que sempre teve uma aspiração monástica, mas como iniciou o seu contato com o budismo, especificamente?

Lembro que, quando era criança, antes ainda de eu saber que era queer em termos de gênero e sexualidade, eu sabia que não me casaria. Esse meu sentimento não dizia respeito apenas a casamentos heterossexuais. Acho que qualquer tipo de casamento carrega a ideia de uma companhia, e então você acumula bens para si e depois tem filhos, ou adota filhos – a própria instituição do casamento não fazia sentido para mim, seja o casamento homossexual ou heterossexual. 

Crescendo na Índia, fui introduzida ao hinduísmo muito cedo, ainda enquanto criança pequena. E, é claro, o budismo também estava disponível [nesse ambiente], não exatamente como algo distinto do hinduísmo, mas era-nos introduzido na forma de histórias sobre o Buda, sobre como o Buda abandonou o palácio para buscar a liberação do sofrimento e encontrar respostas. Portanto, eu não era uma exceção por ter conexão com o budismo. Eu sabia quem era o Buda ou, pelo menos, tinha uma ideia.

Mas, ao mesmo tempo, por estar na Índia, eu sabia que sempre existiram pessoas que não se casam, como sábios e santos, ou andarilhos, que escolhem ter uma vida diferente. Esse era o tipo de vida que fazia mais sentido para mim: era a vida que eu queria ter. Eu costumava dizer à minha mãe e ao meu pai que seria monja, mas é claro que naquele tempo eles não me levavam a sério. Acho que nem eu me levava muito a sério, para ser franca [risos]. Mas foi algo que eu cresci dizendo.

É claro que, naquela época, eu não sabia em que fé ou religião me ordenaria. Tudo o que eu sabia era que não me casaria e levaria uma vida devotada à fé. Praticando o hinduísmo, a ideia que eu tinha, então, era de que fé significava orar, meditar e entoar mantras. E eu pensava que era isso o que faria o resto da vida. Evidentemente, muita coisa mudou ao longo dos anos.

Meu primeiro encontro com o budismo tibetano num sentido mais formal foi logo após eu terminar a graduação. Um monge tibetano veio a Hyderabad oferecer palestra e retiro de meditação. Foi minha primeira introdução ao budismo tibetano e também a primeira vez que encontrei um monge tibetano.

É claro que eu não tomei imediatamente a decisão de que era aquilo que eu queria. Naquele tempo, estava envolvida com o ativismo e trabalhos ligados aos direitos humanos, e era isso o que me ocupava. Entretanto, segui estudando o budismo intermitentemente como autodidata, explorando-o mais profundamente. E aí chegou um momento em que, por mais que eu amasse o trabalho que estava desenvolvendo no ativismo, na relação com comunidades à margem da sociedade – era o tipo de trabalho que eu sempre quis fazer, que me dava uma grande alegria e contentamento –, algo estava faltando. Eu sentia que não era dessa maneira que gostaria de fazê-lo. Queria realizar esse trabalho, mas não estava segura de que estava fazendo-o habilmente.

Alguns anos atrás, perdi meu irmão, que morreu por suicídio. Também já testemunhei muitas(os) companheiras(os) da comunidade se suicidarem. Como eu não estava conseguindo lidar com aquilo, decidi me afastar do trabalho por um tempo. Não antecipei que passaria um ano isolada, longe de todo mundo, mas acabei ficando todo esse tempo na casa dos meus pais, sozinha. E foi nesse período de isolamento e contemplação que eu formalmente decidi me tornar uma monja budista. Era isso o que eu queria fazer: estudar e praticar o Darma. E também usar o estudo e a prática do Darma para me envolver mais habilmente com as comunidades. Foi assim, afinal, que decidi me tornar monja. 

Sempre pensei que isso aconteceria mais tarde na minha vida. Não sabia que seria desse modo, bem mais cedo do que eu esperava [risos].

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Quem foi a professora ou professor com quem você primeiro se conectou?

O primeiro retiro de que participei, que ocorreu em Hyderabad, foi conduzido pelo Ven. Tenzin Priyadarshi. Ele é o diretor do Centro do Dalai Lama para a Ética e Valores Transformadores no MIT (The Dalai Lama Center for Ethics and Transformative Values at MIT). Não tenho nenhuma conexão pessoal com ele além de ter participado desse retiro. Após, eu continuei conectada com os ensinamentos e com o Darma em si, mas não com ele como professor.

Na época em que eu estava estudando e considerando a ordenação monástica, um dia repentinamente me lembrei de que um amigo, muitos anos atrás, havia me falado de uma monja que estava fazendo um trabalho maravilhoso pela equidade e educação das mulheres monásticas no estado indiano de Himachal Pradesh. Fiz uma busca no Google e encontrei Jetsunma Tenzin Palmo. Então, fui ao seu encontro e pedi para ser ordenada. É claro que, na minha ingenuidade, pedi que ela mesma me ordenasse. Mas por mais que eu seja uma pessoa trans, me encontro num corpo identificado como masculino. Assim, por ser uma monja [mulher], ela disse que não poderia me ordenar e me encaminhou para o seu professor, o 9º Khamtrul Rinpoche.


É injusto que monges possam ordenar praticantes mulheres, mas monjas não possam ordenar homens.


Eu sei, eu sei! Por mais que eu tenha muito amor e gratidão pelo budismo, sei que no curso de seus 2600 anos de história, ele se apropriou de muitas práticas e sistemas de crença patriarcais. 

Enfim, ela me enviou ao seu mestre e ele me conferiu minha primeira ordenação, Rabjung. Depois disso, recebi a ordenação Getsul de meu outro professor imediato, Geshe Ngawang Rabga, em Bodhgaya. 

Sou praticante Drukpa Kagyu e também Gelug. Geshe-la pertence à linhagem Gelug e Khamtrul Rinpoche à Drukpa Kagyu. Então, posso me deleitar com o fato de que tenho um pé em cada uma das tradições [risos].


Você poderia falar um pouco sobre a sua visão pessoal acerca da história dos estereótipos de gênero, e como essas concepções padronizadas de mulher e homem formataram nossa mentalidade, relações, instituições, etc. ao longo do tempo?

Penso que todos – homens, mulheres, pessoas trans – experienciam em vários níveis essas noções rigidamente estritas de gênero e sexualidade, do que é natural e do que não é natural. Considero que isso afeta o cotidiano de todos nós. Imagino que antropólogos e estudiosos de gênero tenham uma abordagem bastante acadêmica dessa história. Mas, para mim, seja qual for o momento histórico, por mais que o binarismo homem/mulher enquanto as identidades masculino/feminino perfeitas, e a heterossexualidade enquanto a única manifestação natural da sexualidade, sejam consideradas a “única” realidade no mundo, as pessoas queer sempre existiram. Quando olhamos para a história, voltando milhares de anos, vemos que pessoas com diferentes identidades de gênero e sexualidades variadas sempre existiram, sempre estiveram lá. Mas penso que, em razão da dominação exercida pela sociedade hétero e cisgênero, as histórias e narrativas dessas pessoas nunca ganharam nenhum espaço.

Para começar, em muitas culturas não era permitido nem mesmo que a linguagem acerca de diferentes sexualidades e identidades de gênero existisse. Isso significa que não há escritos, documentação histórica ou mesmo histórias a contar. Além disso, há tantos tabus atrelados a qualquer coisa que vá além da heterossexualidade e do binarismo de gênero, que ninguém fala a respeito. E, se alguém fala alguma coisa, é de uma maneira bastante depreciativa – especialmente na Índia, ainda hoje.

Por isso, penso que, embora pessoas queer sempre tenham existido, suas vidas e histórias sempre foram e continuam sendo apagadas, na Índia e em todas as partes do mundo, a despeito de todo o progresso e mudanças de que falamos. Esse apagamento acontece ainda hoje, de várias formas. Pode ser tão simples como, por exemplo, em países ocidentais que são considerados desenvolvidos, existir famílias que não querem falar sobre suas filhas e filhos queer. Ao não falar, elas estão simplesmente apagando-as de certos espaços, vidas e histórias. 

Historicamente, ninguém se interessa em investigar há quanto tempo as pessoas heterossexuais existem, certo? Ninguém olha para isso em relação às pessoas cisgênero, porque, de certa forma, a ideia é que elas sempre existiram. E eu diria que, igualmente, pessoas queer sempre existiram. Como elas existiram é outra história. Elas existiram sofrendo violência, discriminação. Independentemente disso, acredito que elas sempre existiram. A humanidade sempre foi diversa. Nunca houve apenas um tipo de ser humano, um tipo de macho, um tipo de fêmea, um tipo de sexualidade. Essa nunca foi a realidade. Quero dizer, olhem para o nosso mundo! Acho que jamais houve, nem poderia ter havido, um único tipo de gênero e sexualidade. A diversidade sempre existiu.

Embora pessoas queer sempre tenham existido, suas vidas e histórias sempre foram e continuam sendo apagadas, na Índia e em todas as partes do mundo, a despeito de todo o progresso e mudanças de que falamos. Esse apagamento acontece ainda hoje, de várias formas.

Mas os grupos majoritários sempre conseguiram apagar, oprimir e discriminar grupos minoritários de gênero e sexualidade, o que continua acontecendo atualmente. Como isso afeta nosso cotidiano? Penso que começa muito cedo, no próprio âmbito doméstico. Uma criança nasce, na Índia ou em outro lugar qualquer, e é decidido: “ah, é um menino” ou “ah, é uma menina”. Certo? Eles decidem olhando para a genitália da criança, e assim o menino deve gostar de azul, a menina deve gostar de rosa; o garoto deve brincar com tais e tais brinquedos, a garota deve brincar com tais e tais brinquedos; se é garota, deve aspirar a ter determinada carreira ou simplesmente se casar e ter filhos (como é comum na Índia), se é garoto, deve aspirar somente a carreiras consideradas masculinas. Desse modo, tudo está pré-decidido. Infelizmente, no instante em que, com base na sua genitália, um gênero é atribuído a você no seu nascimento, o resto da sua trajetória de vida acaba de ser decidido. Não há nada que você possa fazer a respeito.

Os brinquedos com que você brinca, a maneira como fala, o modo como anda, os tipos de estudos que realizará, a carreira que seguirá, os amigos que fará, a pessoa com quem casará: todas essas coisas foram pré-decididas naquele momento específico, o que soa muito ironicamente desastroso se olharmos para como os seres humano se consideram tão civilizados e avançados, e no entanto agem assim. Nesse sentido, essa é a mais brutal das civilizações.

Evidente que não há escopo para outras sexualidades: alguém nasce e já se espera que seja heterossexual. Não há outra opção. Já está decidido. Quando você olha desde a perspectiva budista, percebe que isso vai contra tantas das coisas sobre as quais o budismo fala. A vida está sempre mudando, ela não pode ser fixada. Se a fixamos, não há a possibilidade da mudança, de nos tornarmos as pessoas que poderíamos nos tornar.

Portanto, penso que não ter vidas queer e queerness ao nosso redor, e ser cercado por essa sociedade patriarcal, binária e heteronormativa restringe a vida, limita a vida de todo mundo, não apenas das pessoas queer. É claro que as pessoas queer são afetadas sobremaneira por manifestar sexualidades e identidades de gênero diferentes. Elas são impactadas bem mais adversamente. Mas as pessoas cisgênero também são bastante afetadas, uma vez que se espera de todas que nos encaixemos nessas narrativas. E qualquer uma que não se encaixe na narrativa, mesmo não sendo queer – por exemplo, uma mulher solteira ou um homem cis heterossexual que escolhe não se casar não é vista com bons olhos na Índia e em países do sul da Ásia. Isso não é “permitido”; todo mundo deve casar e ter filhos, certo?

Essa ausência de queerness e essa rigidez em torno do binarismo de gênero e da heteronormatividade afetam a vida de todas as pessoas, começando com algo tão simples como os brinquedos com que você brinca, e culminando no próprio tipo de vida que leva. Portanto, é tudo decidido nos limites desse padrão. E eu considero isso muito violento. Exclui tantas possibilidades na vida de todo mundo! Do contrário, imagine o que as pessoas poderiam fazer! O quão mais maravilhosa a vida poderia ser! Imagine se pudéssemos nos libertar dessas noções, dessas restrições segundo as quais só se pode ser isso e aquilo, enquanto todo o resto é uma aberração, um problema. Toda essa liberdade assusta, não é? Mas já estamos todos vivendo uma vida bem assustadora, eu acho.


Parte 1 de 2

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3 Comentários

  1. Maria Cecilia disse:

    Muito interessante esta entrevista e realidade… Quando sairá a 2ª parte?

  2. Túlio Buffe disse:

    Que incrível!!!! Muito bom existir alguém falando abertamente sobre a transexulidade e as questões de gênero mais como uma “expressão/movimento” do que uma “identidade”. Quando ela fala sobre a “ausência de queerness” prejudicar todas as pessoas, abre o debate pra vários campos, pra além da sexualidade, como estamos acostumades à associar. Que maravilha!!! Vida longa Tashi!!! Um movimento que contribuirá muito com os estudos e práticas budistas, já que é tão fácil de observar os fenômenos de gênero em nossa vida! a realidade aberta, a impermanência, a criatividade espontânea… Viva viva viva viva! Obrigado por compartilhar isso com a gente Revista Bodisatva!!!

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