Arquivo pessoal da Ven. Tashi Choedup

Uma história de liberdade, queerness e fé | Parte 2

A monja não binária Tashi Choedup fala sobre a situação das pessoas trans na Índia e sobre como o amor a ajudou a superar a violência


Por
Revisão: Caroline Souza
Tradução: Igor Souto
Entrevista por: Caroline Souza

Uma capacidade inata de acessar a mais radical liberdade foi o que levou a monja Tashi Choedup a questionar, desde muito pequena, o edifício de convenções que nos sustenta enquanto sociedade. Diante de seu olhar perspicaz, todos os grilhões se desfazem. Tashi nunca desejou o que seus amigos desejavam. Nunca aspirou pelo futuro que atribuíram a ela no berço, antes mesmo de abrir os olhos. Tashi queria mais, e não queria nada. Sua sede era uma só: a liberdade total. 

Nesta entrevista, a Bodisatva conversa com  a monja não binária Tashi Choedup sobre sua singular trajetória. Tashi é indiana e pratica o budismo tibetano nas linhagens Drukpa Kagyu e Gelug, e também vem dedicando a vida ao ativismo queer e ao apoio às comunidades trans, sobretudo em seu país natal.


Bodisatva: Gostaria de ouvi-la comentar sobre as diferenças entre as perspectivas ocidentais/cristãs sobre sexualidade e gênero e as perspectivas indianas tradicionais. Tenho a impressão de que, antes da colonização britânica, havia uma maior fluidez de gênero e sexualidade nas tradições religiosas da Índia. Essas tradições, diferentemente da cristã, eram menos moralistas e pudicas…

Ven. Tashi Choedup: Se você olhar para as sociedades pré e pós-colonial, é evidente que muitas mudanças aconteceram; houve muitas diferentes trajetórias. Para começar, antes do período colonial, não havia a “Índia” como tal. A “Índia” se constituía de quinhentos principados diferentes – não eram nem estados. O Reino Unido foi conquistando um por um, a maioria deles foi colonizada, e a Companhia das Índias Orientais foi estabelecida. Em seguida veio o reinado da Rainha da Inglaterra, naquilo que eventualmente se tornou a Índia. Mesmo na época da independência, havia muitos principados que não eram parte da Índia, mas em certo ponto foram incorporados por diferentes meios. Mas isso é uma outra história. 

No entanto, o ponto é que não havia “uma” Índia como tal. Havia uma variedade de culturas e tradições. Muita gente ainda pensa que o cristianismo veio para cá através dos colonizadores britânicos, ou que o Islã veio pelos mongóis, o que não é verdade. O islamismo e o cristianismo chegaram muito antes de qualquer invasor estrangeiro. Antes disso, chegaram por meio do comércio e da promoção de outras religiões e fés – São Tomás, por exemplo, veio ao Kerala difundir a palavra de Deus e os ensinamentos de Cristo. 

Por isso, visto que a Índia não era um único país, uma nação singular, havia uma abertura para a diversidade. Nesse sentido, cada principado tinha sua própria existência diversa em termos de diferentes identidades, comunidades e pessoas.

Por um longo tempo na história, existiram comunidades chamadas de Hijra e Kinnara. Esses são alguns dos diversos termos que usamos para comunidades socioculturais trans femininas – grupos sociais de mulheres trans que existiram muito tempo atrás.

Isso era algo cultural?

Sim, era cultural. Mas é claro que como elas existiram é questionável. Elas existiram em condições um pouco melhores antes da colonização britânica, pois estavam conectadas às artes, música, dança e eram patrocinadas por reis. Essas eram suas possibilidades. Não era o que faziam todos os grupos, mas muitos operavam desse modo. 

Quando os britânicos vieram, também foi um choque cultural para eles. Os colonizadores não gostaram de muitos dos aspectos culturais desses vários principados, e então começaram lentamente a criminalizar algumas coisas. Por exemplo, naquele tempo os reinos costumavam ter uma enorme e vibrante atmosfera cultural de cortesãs. As cortesãs eram mulheres que lideravam suas próprias cortes e ensinavam dança, poesia e outras formas de arte. Elas eram patrocinadas pelos reis e rainhas de seu tempo. Com a chegada dos britânicos, essas mulheres passaram a ser criminalizadas como trabalhadoras sexuais, pois não fazia sentido [para eles] que essas mulheres promovessem arte e tivessem uma relação tão próxima com os reis e os assuntos dos reinos. (Estou colocando da maneira mais simplista possível.)

Nesses reinos e principados, havia inúmeras tribos, as quais não estavam diretamente sob o domínio da Companhia das Índias Orientais e da colonização britânica. Elas conseguiram, de algum modo, manter suas identidades próprias. Isso também não caiu bem [para os britânicos]. 

As culturas tribais eram bem diferentes: essas pessoas viviam em florestas, dependiam das florestas, cuidavam das florestas e levavam vidas muito, muito diferentes das vidas do restante da sociedade hegemônica. Isso também não agradou os britânicos, e tais tribos foram criminalizadas.

Basicamente, eles criaram leis que criminalizavam as cortesãs, as variadas tribos, a comunidade hijra (a comunidade sociocultural de mulheres trans), etc. “Como podemos ter esse tipo de pessoas?” Não fazia sentido para eles! O ego masculino branco não conseguia entender como podia haver essas mulheres trans livres se movimentando por aí, fazendo coisas livremente, vivendo suas vidas. Não fazia sentido para eles. Então eles as criminalizaram.

Mesmo hoje, ironicamente, muitas das leis de criminalização trazidas por eles naquele ponto da história ainda existem no código penal da Índia, que é a estrutura legal que nós temos. Essas leis ainda são usadas por muitos policiais para nos assediar. É claro que, hoje, várias de nós, várias amigas minhas estão lutando, fazendo petições, indo aos tribunais, desafiando essas leis.

Sim, os britânicos fizeram sua parte – mas nós também tivemos nosso próprio papel nisso tudo.

Portanto, os britânicos certamente tiveram um grande impacto nisso tudo, não há dúvidas. Impactaram de forma adversa; eles empurraram essas pessoas, identidades e comunidades para margens mais distantes. Não estou dizendo que elas eram completamente mainstream antes. As pessoas trans e de outras sexualidades nunca foram mainstream, nem antes de os britânicos chegarem. Existiam, mas nas sombras. Então os britânicos vieram e as criminalizaram, e aí elas já não podiam mais existir nem mesmo nas sombras. 

Tendo dito isso, não quero romantizar o período pré-colonial, pois nele houve dificuldades também. Era uma sociedade amplamente dominada pelo hinduísmo na qual havia castas, que funcionavam como um sistema de opressão. E esse sistema continua até hoje, após 75 anos de uma Índia independente. O sistema de castas ainda é um dos mais opressores que nós temos no nosso país. Pessoas que supostamente pertencem às assim chamadas “castas inferiores” são submetidas a muita violência e não têm acesso à educação, renda, emprego ou qualquer direito digno. Muito mudou, mas muito permanece igual. Dessa forma, sim, os britânicos fizeram sua parte – mas nós também tivemos nosso próprio papel nisso tudo.

Contudo, depois que os britânicos foram embora, no período pós-colonial, eles mesmos revogaram suas próprias leis em seus próprios países. Eles removeram as leis que criminalizavam a homossexualidade e as pessoas trans. Mas na Índia, nós nos recusamos a fazer isso por um longo tempo. Essas coisas só começaram a acontecer recentemente.     

Em 2018, a seção 377 do Código Penal Indiano, que criminalizava a homossexualidade, atos homossexuais ou relacionamentos homossexuais foi basicamente revogada em um julgamento do tribunal superior. Isso só aconteceu agora, três anos atrás! E apenas em 2019 um projeto de lei para a Proteção às Pessoas Transgênero foi promulgado no Parlamento, garantindo efetivamente direitos às pessoas transgênero.

Portanto, por mais que os britânicos tenham feito o que fizeram, demorou 75 anos para o nosso país realmente descriminalizar a homossexualidade e pessoas transgênero. E ainda temos um longo caminho pela frente. 

Frequentemente, me pego duvidando: “nós realmente deixamos de ser colonizados?” Continuamos a ser colonizados de muitas formas. Após cerca de sete décadas, a minha geração e mesmo as posteriores ainda acreditam que o inglês é a língua que devemos falar. Atualmente, a maioria das pessoas, sobretudo das classes média e alta, sentem grande orgulho de falar inglês e muita vergonha de falar sua língua nativa. E o que é isso senão efeito da colonização?

 

Você pode falar um pouco sobre o movimento queer e LGBT na Índia atualmente e sobre a situação das pessoas trans?

O movimento queer por direitos políticos, na Índia, existe há cerca de duas ou três décadas, no sentido ativo de ir aos tribunais, realizar manifestações e assim por diante. Mas, evidentemente, como eu disse, pessoas trans sempre existiram, ainda bastante invisibilizadas socialmente, sobretudo as mulheres trans. Não necessariamente todas as pessoas trans, mas mulheres trans, enquanto grupo sociocultural – a exemplo das comunidades hijra, kinnara e aravani – sempre existiram na sociedade. Quero dizer, as pessoas sempre souberam que havia outras identidades de gênero, certo? 

Mas é claro que sempre foram demonizadas, tratadas violentamente, sem respeito, sem dignidade. Mesmo hoje, a fonte de renda da maioria desses grupos socioculturais de mulheres trans é a mendicância e a prostituição. Não há outra fonte de renda para elas.

Apesar disso, em termos legais, nós tivemos um pequeno progresso. Um exemplo é que a seção 377 do Código Penal Indiano, que criminalizava o sexo consensual praticado por dois homens adultos ou duas mulheres adultas, ou todo ato sexual considerado “não natural”. O primeiro julgamento aconteceu em 2009.  A Alta Corte de Déli julgou que a seção 377 não é constitucional, pois viola direitos fundamentais. Logo após, muitos grupos religiosos fundamentalistas – cristãos, hindus, islâmicos e outros – se uniram para levar o caso à Suprema Corte, alegando que aquele julgamento estava equivocado e não deveria ser permitido.

Então, em 2013, a Suprema Corte na Índia julgou o caso e considerou que não seria possível aceitar o julgamento de 2009, e desse modo recriminalizou as pessoas transgênero e homossexuais. Basicamente, ela trouxe a seção 377 de volta, conferindo-lhe validade. Em seguida, muitos grupos e pessoas apelaram à Suprema Corte e, finalmente, o caso foi aceito. Em 2018, por fim, veio a decisão de que a seção 377 era inconstitucional: qualquer pessoa adulta, de qualquer gênero e sexo, está permitida a praticar sexo consensual, pois isso é um direito fundamental. Inclusive, um dos juízes pediu perdão, afirmando que a Índia devia desculpas históricas à comunidade LGBT. Esse julgamento foi muito positivo, em muitos sentidos.

Em 2014, a Suprema Corte julgou um outro caso, reconhecendo as pessoas transgênero como terceiro gênero, bem como reconhecendo seus direitos como fundamentais e comunicando aos governos que eles deveriam adotar todas as medidas para assegurar que esses direitos fossem efetivadas. Contudo, após 2014, ainda nenhum governo fez nada de relevante, à exceção de alguns estados.

Então, eventualmente o atual governo propôs o projeto de lei Pessoas Transgênero (Proteção dos Direitos). Na sua forma inicial, era um projeto muito regressivo, basicamente porque previa a checagem física das pessoas para verificar se eram trans. Era extremamente invasivo. Assim, nós realizamos muitos protestos ao longo de alguns anos para finalmente alterar de novo esse projeto, até um ponto em que ele finalmente concordasse que a autoidentidade era legítima. Finalmente isso aconteceu, e o projeto também incorporou a decisão da Suprema Corte de 2014.

Mas mesmo assim, esse projeto continua, de muitas maneiras, regressivo. O projeto Pessoas Transgênero (Proteção de Direitos) foi aprovado e se tornou uma lei em 2019. No entanto, apesar de alguns aspectos terem avançado, como a questão da autoidentificação, outros aspectos não foram contemplados. Por exemplo, a lei somente reconhece a autoidentidade transgênero, mas se você quer ser reconhecido como mulher trans ou homem trans, precisa realizar a cirurgia médica oferecer documentos comprovando que fez a cirurgia, e somente aí poderá ser reconhecido como mulher ou homem trans; do contrário, não será.

O interessante é que esse projeto de lei diz que, se você atacar sexualmente uma pessoa trans, terá uma determinada punição, que é menor do que se atacasse uma mulher cis. Logo, se você estuprar uma mulher cis ou violentá-la de alguma maneira, a sua punição é de 20 anos; e se atacar uma pessoa trans, a punição é ¾ menor. O projeto quase fala que é melhor atacar pessoas trans do que atacar pessoas cis; esses aspectos estão presentes no projeto.

Então, é um movimento em andamento. Claro que há muito mais visibilidade agora, muito mais diálogo e conversas acontecendo, na grande mídia e em outras comunidades. A famosa Bollywood, por exemplo, está produzindo alguns filmes queer. Por um lado, eles estão se propondo a fazer filmes sobre essas questões, o que é bom. Mas ainda há muito trabalho a ser feito, sobretudo educativo, até para produzirem filmes melhores, eu penso. Por mais que estejam tentando, ainda não chegaram lá. 

Então, é um processo em andamento para a comunidade LGBT como um todo. Por outro lado, também penso que, após a decisão judicial de 2008 que derrubou a proibição ao casamento de pessoas do mesmo sexo na Califórnia, várias comunidades gay masculinas cis, no Ocidente, estão concentrando todos os seus esforços em conquistar esse mesmo direito. Enquanto isso, muitos de nós na comunidade trans pensamos: “Há tanto mais a fazer antes de pular direto para o casamento. Há tanto mais pelo que lutar, reivindicar, conquistar antes disso.”

Desse modo, quando eu falo “comunidade LGBT na Índia”, na verdade estou dizendo comunidades LGBTQIA+. Por mais que haja muitos pontos de convergência, gosto sempre de reconhecer que são comunidades bastante diversas. Comunidades trans são bem diferentes das comunidades masculinas gays cis, geralmente pertencentes às classes mais altas e falantes de inglês. A comunidade lésbica, do mesmo modo, é muito diferente. Logo, ainda há tanto trabalho a ser feito internamente entre as comunidades, penso, quanto fora delas.

Arquivo pessoal da Ven. Tashi Choedup

Outra curiosidade que tenho é em relação aos seus professores. Como eles olham para o seu ativismo e identificação com o movimento queer?

A primeira vez que encontrei a Jetsunma e contei um pouco sobre mim para ela, e pedi para ser ordenada, ela absolutamente não olhou para isso como se fosse uma grande coisa.

Ela é maravilhosa.

Sim, ela é maravilhosa, certo? Eu não me surpreendi. Quero dizer, qualquer outra pessoa ficaria surpresa, entusiasmada, agiria como se fosse algo muito grande. Mas a reação dela foi: “ok, legal”. Ela não fez nenhum estardalhaço [com o fato de eu me identificar como queer].

Quanto aos meus outros professores, que encontrei posteriormente, e meus companheiros de sanga, no caso de muitos deles eu fui a primeira pessoa queer que conheceram. E também a primeira pessoa monástica queer, eu acho. Embora eles estivessem ainda tentando entender o que eu sou, quem eu sou e etc., posso dizer que quase todos que conheci foram extremamente gentis e muito generosos – generosos no sentido de me darem espaço, reconhecendo que não sabem do que estou falando, mas ao mesmo permanecendo abertos ao que compartilho. Acho isso maravilhoso, sabe? 

A maioria de nós, pessoas queer, nem sequer espera por uma aceitação “em branco” e imediata, num piscar de olhos. Simplesmente esperamos que as outras pessoas reconheçam: “oh, eu não sei pelo que você está passando”, “não sei o que você está experienciando”, “quero entender, me esforço para oferecer espaço para aprender, para te escutar, para te ouvir” – isso tem sido uma bênção para mim, desde sempre.

Todas as pessoas budistas que conheci – meus professores, membros da sanga – sempre foram gentis em relação a isso. Porém, como eu disse, o budismo, ao longo do tempo, acumulou várias crenças e práticas patriarcais. Lembro-me da primeira vez que fui ao Root Institute, em Bodhgaya, onde fiquei por mais de três anos. No primeiro dia, quando adentrei o salão de oração, havia monjas muito mais experientes do que eu, com 30 ou 40 anos de ordenação, enquanto eu ainda era uma monja Rabjung.

Eu admirava todas elas, pois eram professoras pra mim. Eu era muito novata, jovem e ainda não sabia de nada. E elas me olhavam – porque eu tenho um corpo percebido como masculino – e diziam: “você é um monge, tem que sentar lá na frente, antes de todas nós”. Eu respondia que: “não, não, isso não vai acontecer, não é assim que funciona, eu pareço ter um corpo masculino, mas sou uma pessoa trans não binária; deveria me sentar no cantinho lá trás, e não lá na frente dos estandartes”. Mas elas não me ouviam. Sempre tínhamos essas discussões [risos].

Elas diziam: “Você tem um corpo de homem, deve sentar lá”, pois elas estavam aderindo estritamente aos protocolos, segundo os quais um monge homem deve sempre sentar-se à frente, independentemente de ser um monge novato e de as monjas presentes serem muito mais experientes. Elas consideravam isso a coisa certa a fazer, não pensavam “fora” [dessa lógica], o que é compreensível. No entanto, continuei a ter esses diálogos vez ou outra. 

Também, quando fazíamos preces, frequentemente recitávamos “os filhos de Buda”. Usávamos o pronome “ele(s)” e outros termos com conotação de gênero. E eu, frequentemente, perguntava: “Podemos usar um gênero neutro? Podemos dizer: ‘the children of’ Buda em vez de ‘filhos (sons)’ ou ‘filhas (daughters)’? Podemos usar ‘they’ em vez de ‘he’ e ‘she’?” 

Às vezes, há as orações em que se aspira renascer em um corpo de homem na próxima vida. Nessas situações, eu intencionalmente orava: “que eu nasça num corpo de mulher na próxima vida”. Então, nós conversávamos muito. Elas eram relutantes, e eu, obstinada. 

Mas, por mais diferenças que tivéssemos nesses pontos, o que eu realmente apreciava é que havia um senso de amizade nessa relação com opiniões diferentes. Não havia hostilidade, do tipo: “quem é você para dizer isso? Você é tão jovem e não sabe de nada, nós somos sêniores”. Elas me davam espaço. Estavam completamente em paz com isso e ouviam o que eu tinha a dizer. É claro que deveria ser sempre assim, idealmente. Mas não é o que ocorre na maioria dos espaços no mundo. Então, quanto tenho essas experiências, sou extremamente grato. Tenho imensa gratidão pelas pessoas mais experientes da sanga que já conheci, tanto homens quanto mulheres, sobretudo por algumas monjas tão inspiradoras, como a Jetsunma e tantas outras. Sabe, ter nascido neste mundo patriarcal como mulher e ter escolhido virar monja, e ter essa devoção pelo Darma a despeito dos valores e crenças patriarcais que os sistemas religiosos carregam, é algo incrível, certo? Demanda tanta coragem e desapego do próprio ego, penso. 

Mas, ao mesmo tempo, entendo que essas são as coisas com que precisamos lidar e nos engajar. Enquanto crescia, ao longo da minha infância e adolescência, sentia que minha fé me ajudava com meu aspecto queerness. O tipo de conceito de fé que eu tinha, o sistema de crenças que eu tinha, realmente me ajudaram a fazer as pazes com esse meu aspecto de queerness, estar bem com isso, acolher meu gênero e sexualidade: minha fé me ajudou enormemente.

Atualmente, quando olho para o fato de integrar comunidades espirituais, digo: “ei, é hora do meu queerness me ajudar a tornar minhas comunidades de fé mais inclusivas”. Então, por mais que eu pense que a fé tenha muito a oferecer a queerness, também penso que queerness tem muito a oferecer às atuais e contemporâneas comunidades espirituais, incluindo as budistas.

Considerando a visão budista sobre compaixão e meios hábeis, se algum dia você tivesse a chance de conversar com alguém que cometeu violência contra uma pessoa LGBT, o que gostaria de dizer ou perguntar?

Acho que, antes de eu dizer qualquer coisa, seria legal perguntar, pois honestamente gostaria de ouvir o que a pessoa tem a dizer. A agressão é sempre algo superficial – agressão, raiva, violência são manifestações resultantes de muitas outras coisas subjacentes. Penso que, primeiro, minha abordagem seria compreender o que é isso que está subjacente. Então, antes de oferecer ou falar o que quer que seja à pessoa, eu gostaria de saber desde que lugar ela está [olhando].

É claro que, na maioria das vezes, pessoas trans não têm o privilégio de poder fazer isso com seus agressores, mas devido à fé, à prática e aos ensinamentos, pelo menos pessoas como eu deveriam estar aptas a fazê-lo. Óbvio que não vou dizer que qualquer pessoa trans deveria ter essa conversa com alguém que perpetrou violência diretamente contra ela. Mas, em outras circunstâncias em que isso é possível, penso que essa é uma maneira de proceder: perguntar de onde essa pessoa vem, descobrir por que nos odeia, por que há tanto ódio em relação a nós.

Queremos saber. Quero dizer, nós vemos o seu ódio. Temos visto seu ódio e raiva por tanto tempo que não há nada de novo nisso, não há nada de surpreendente para a maioria das pessoas trans. Desde a mais tenra infância, quase todas as pessoas trans sabem que boa parte do mundo as odeia, que a maior parte do mundo tem raiva delas e as trata com violência. Começando com a família, nas ruas, na vizinhança, comunidades religiosas, em todo lugar. Há tanta violência. Toda pessoa trans sabe disso. Eu não acho que possa haver surpresas porque esse é o triste mundo que nós habitamos.

Penso que para nós, pessoas trans, seria realmente muito interessante saber de onde vem esse ódio, mas também acho que, em certo sentido, nós já sabemos as respostas em função das nossas próprias experiências. Na minha experiência, quando olho para várias pessoas, vejo que o ódio provém de sua própria insegurança, sua masculinidade sente-se ameaçada. A forma de masculinidade que existe de modo hegemônico, hoje, é uma masculinidade constantemente ameaçada: pelas mulheres saindo para ensinar, estudar, pessoas trans lutando por seus direitos ou simplesmente existindo, vivendo, respirando. 

Isso ameaça a própria noção de masculinidade “pura” em que as pessoas estão fixadas. E também penso que ameaça o binarismo de masculinidade e feminilidade. Pessoas trans desafiam isso. Portanto, reconhecendo esse lugar de uma sensação de ameaça, gostaria de ser bondoso e compassivo com essas pessoas.

Por exemplo, eu sempre amei saris. Então, eventualmente decidi: “ei, eu amo saris, por que não posso vesti-los? Gênero não tem roupa”. E aí comecei a usá-los. E como eu nunca barbeava meus pelos faciais naquele tempo, minhas próprias amigas trans não entendiam. Porque a maioria das minhas amigas trans estavam em um dos polos: ou eram homens trans ou mulheres trans. Eu era um dos poucos membros não binários da comunidade que estava falando e se identificando como não binário. Não havia muitos, especialmente na minha cidade, eu era o único. Muitas das minhas amigas sentiram-se muito desconfortáveis e, na verdade, ameaçadas. Disseram que não conseguiriam se sentir bem com o fato de eu não me barbear ao usar um sari.

Por mais ferido e mal que tenha me sentido naquela época, também podia ver de onde isso estava vindo. Depois de chorar e sentir a dor, consegui olhar para a situação e dizer: “ei, estas ainda são as minhas amigas! Elas não estão com raiva de mim. Estão do que eu sou e se sentindo incapazes de entender”. 

Todo mundo tem uma visão de mundo, e as pessoas trans também. Pessoas como eu não se encaixam nessa visão de mundo. Eu sou sua amiga, mas elas não conseguem compreender quem ou o que é essa amiga. Então, considero que isso também vem desse lugar, além de ameaçar as suas identidades. Logo, quando olho para outras pessoas cis que nos odeiam, na maioria das vezes sinto que isso se deve às suas próprias inseguranças. Portanto, a única maneira de se engajar com tais pessoas é por meio da compaixão e bondade. 

Eu me recordo que, quando era criança, li em um livro escolar na minha língua materna, telugu, duas frases que podem ser traduzidas como: “Violência resulta em violência. Ódio resulta em ódio”. Não há maneira de resolver ódio com ódio, ou raiva com raiva, não fará nenhum bem.

Assim, acredito que é importante se engajar até mesmo com gente que tem muito ódio e é violenta com as comunidades trans. Mas, ao mesmo tempo, sempre gosto de dizer às minhas amigas: “vamos cuidar de nós mesmas. Vamos estar seguras e bem, e depois nos engajamos!” Ambos precisam acontecer; do contrário, não há sentido em arriscar nossas vidas. Mas ambos precisam acontecer. 

Lembro de uma vez que participei de um programa televisivo em um canal de notícias telugu. Estávamos debatendo sobre pessoas transgênero, e havia uma pessoa de extrema direita presente. Ele recorria a escrituras e as citava, e eu também conheço algumas escrituras e as estava citando. Então, ele ficou com muita raiva e começou a afirmar que eu não poderia citar escrituras hindus. E eu perguntava: “como assim, não posso? Claro que posso”. Eventualmente, ele quase me ameaçou de morte, no programa ao vivo, dizendo que me mataria se eu seguisse fazendo esse tipo de coisa. Curiosamente, quando o programa acabou, o pessoal da produção organizou um transporte para nos levar de volta para casa e nos colocou no mesmo carro! [risos]

No começo, eu estava muito hesitante, sem entender o que essas pessoas estavam fazendo. Mas eu também não queria ter de pedir um carro privado para mim. Então, permaneci quieto. O carro deu partida e comecei a conversar com o homem com quem havia discutido e, para minha surpresa, descobri que ele era uma pessoa normal. Há ódio, mas há muito mais do que ódio. Eu conseguia ver isso, mas também queria reconhecer e elucidar os outros aspectos dessa pessoa, ver de onde vinha o seu ódio, e se havia uma outra forma de nos relacionarmos, se havia outras linguagens possíveis. Portanto, essa viagem de carro acabou abrindo espaço para isso. Foi legal.

Por mais que tenham me machucado e me feito sentir raiva, eu também amo essas pessoas. Não concordo com elas e com o que fazem, posso ter raiva delas, mas também as amo. Assim, como posso abrir mais espaço para esse amor e usar esse amor para relacionar com a raiva?

Penso que é uma questão de tempo. Todos nós precisamos dar um passo para trás de tempos em tempos para nos recuperar, e depois voltar e conversar novamente. Às vezes, deveríamos ser tão capazes de dizer e perguntar coisas quanto de simplesmente escutar um ao outro, ao que estamos dizendo. Às vezes sinto como se a comunidade falasse uma coisa, a sociedade dominante falasse outra, e não houvesse verdadeiramente uma comunicação. Ninguém está prestando atenção ao que está sendo dito e por quem. E eu penso que seria melhor se pudéssemos prestar atenção e dizer “ok, quais são suas preocupações? O que está te incomodando?” 

Evidente que não podemos culpar as pessoas trans, pois elas sofreram demais e por muito tempo. É difícil se manter aberto à escuta, pois toda vez que elas se colocam nesse lugar, se deparam com ainda mais violência. Nesse sentido, sinto que é a vez das pessoas um pouco mais privilegiadas e com uma segurança um pouco maior de oferecer mais espaço e tempo para escutar, conhecer, aprender.

Mas, sim, as pessoas que perpetram violência contra a comunidade trans sempre existiram. Minha própria família já foi violenta comigo em alguns momentos, não vou negá-lo. Tanto a família imediata quanto a estendida, além de muitos dos meus amigos. E estou certo de que pensam a mesma coisa em relação a outras pessoas trans. É claro que eles estavam machucados e havia raiva em vários níveis. Mas graças a meus professores(as) e ao Darma, também aprendi que a dor e o ódio não vão me levar a lugar nenhum.

Por mais que tenham me machucado e me feito sentir raiva, eu também amo essas pessoas. Não concordo com elas e com o que fazem, posso ter raiva delas, mas também as amo. Assim, como posso abrir mais espaço para esse amor e usar esse amor para me relacionar com a raiva? Em vez de usar a raiva para lidar com tudo isso, quero usar esse amor, reconhecê-lo, acolhê-lo e, então, olhar para essa dor e essa ferida a partir daí, e me engajar com as pessoas com esse mesmo amor.

Similarmente, quando vejo um estranho que é violento com pessoas trans, tento reconhecer que essa pessoa manifesta ódio em relação a mim, mas ela provavelmente ama sua família. Elas amam alguma coisa, alguém na vida. Não é possível que odeiem, literalmente, todo mundo, ninguém é capaz disso, eu acho. Acho que nem Hitler era capaz disso: de odiar todo mundo no universo. Certo? Não dá! Portanto, existe uma noção de amor, ainda que limitada e estranha, em todo mundo. É isso que eu adoraria ver e é isso com o que eu gostaria de me relacionar sempre que possível: com esse amor.

De maneira análoga, os budistas falam de reconhecer a natureza búdica, reconhecer que todos nós a temos. Nem todo mundo é budista, mas todo mundo tem amor em si, de várias maneiras. Então se trata simplesmente de ver o amor, reconhecê-lo e agir a partir daí. Também podemos nos lembrar de que eles têm ódio de mim, mas não significa que têm ódio do mundo inteiro, e isso significa que eles também podem me amar em algum momento. Isso pode ser solucionado.


É incrível ouvir você, pois estamos constantemente escutando e falando sobre compaixão e sobre reconhecer que as pessoas são mais do que aquilo que estamos vendo, mas não é tão fácil colocar isso em prática. Por isso, é muito bonito ouvir esse seu relato a partir da sua própria experiência. Muito obrigada!

Eu é que agradeço!


Parte 2 de 2 – Confira a parte 1 da entrevista aqui!

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