Memórias ternas de uma vida maravilhosa: relembrando Chökling Rinpoche

No dia 24 de fevereiro de 2023, o kudung de um dos grandes mestres do nosso século foi cremado em Katmandu, no Nepal. Neste relato, Erric Solomon conversa com seus filhos e esposa sobre a excepcional manifestação de Chökling Rinpoche nesta vida


Por
Revisão: Caroline Souza
Edição: Caroline Souza
Tradução: Carol Franchi

Sob a condução de alguns dos maiores mestres atuais do budismo Vajrayana – incluindo Chökyi Nyima Rinpoche, Dzongsar Khyentse Rinpoche e outros – ocorreu em 24 de fevereiro de 2023, em Katmandu, a cremação de Kyabjé Tsikey Chökling Rinpoche. Além de inúmeros professores das diferentes linhagens do budismo tibetano, a cerimônia atraiu centenas de praticantes vindos dos quatro cantos do mundo. Segue, abaixo, uma compilação de recordações sobre este importante mestre e seu impacto na vida de todos que o cercavam. Agradecemos a Buddhistdoor en Español por nos autorizar a traduzir e publicar este texto.


Kyabjé Tsikey Chökling Rinpoche, filho do famoso mestre Dzogchen Kyabjé Tulku Urgyen Rinpoche, foi a quarta encarnação de Terchen Chökgyur Dechen Lingpa, um extraordinário tertön (“descobridor de tesouros”) do século XIX, considerado um dos 108 tertöns profetizados por Padmasambhava. Os incontáveis ​​tesouros escondidos, ou terma, que ele descobriu na forma de escrituras budistas, práticas de sadana e profundos ensinamentos foram meticulosamente preservados para as gerações futuras nos 40 volumes do Chökling Tersar.

Foto: Tsikey Chokling Rinpoche (Fotografia cortesia de Sangyum Dechen Paldron)

Durante sua vida, Chökgyur Lingpa colaborou com dois outros mestres realizados de seu tempo, Jamyang Khyentse Wangpo e Jamgön Kongtrul Lodrö Tayé, a fim de proporcionar abundantes textos sagrados, sadhanas e tratados eruditos amplamente apreciados em mosteiros budistas tibetanos, centros de retiro nas montanhas e centros de Darma tanto da tradição Nyingma como da Kagyu. Além disso, juntos fundaram a não-sectária tradição rimé, cuja poderosa influência revitalizou e preservou muitos ensinamentos e tesouros espirituais indispensáveis. Para o benefício dos seres sencientes, o trabalho desses mestres sublimes encontrou continuidade em uma sucessão de reencarnações.

Conheci Kyabjé Tsikey Chökling Rinpoche décadas atrás, na primeira de minhas muitas viagens anuais para receber os ensinamentos de seu pai. Posso afirmar sem sombra de dúvidas que Chökling Rinpoche foi um dos pouquíssimos mestres budistas que, somente com sua forma de ser, inspirou minha fé e meu desejo de praticar o Buddhadharma.

A triste notícia de sua passagem para o parinirvana em 18 de dezembro de 2020 rapidamente se espalhou pelo mundo. Como sinal de sua realização espiritual, ele permaneceu em estado meditativo (thukdam) por 7 dias. Uma velha amiga, que havia sido enfermeira, escreveu-me sobre uma visita a Rinpoche enquanto ele ainda estava em thukdam. Minha amiga me disse que, mesmo cinco dias depois, não havia sinais de rigor mortis, o rosto de Rinpoche estava suave e relaxado. Também não cheirava mal e não havia sinais de atrofia. Ela definiu isso como uma impossibilidade médica.

Uma ou duas horas após a morte de Rinpoche, recebi a triste notícia. Imediatamente enviei uma mensagem de voz para seu filho mais velho, Phakchok Rinpoche, oferecendo minhas condolências. Quase imediatamente, Rinpoche me respondeu.

Foto: Tsikey Chokling Rinpoche, Sangyum Dechen Paldron, Kyabje Tulku Urgyen Rinpoche (no centro) Dilgo Khyentse Rinpoche (no colo). Fotografia cortesia de Sangyum Dechen Paldron.

É incrível como os grandes praticantes budistas, sem negar a tristeza do momento, são capazes de, simultaneamente, celebrar o sublime iogue que está passando para o parinirvana na hora da morte. Sentado sozinho na sala com o thukdam de seu pai, Phakchok Rinpoche comentou: “Este é realmente um grande dia. Há tanta calma, ele é tão especial. Somos todos membros da mesma família porque fomos reunidos graças a seus esforços. É por isso que temos uma conexão tão forte.”

Embora minhas qualidades e sabedoria não possam ser comparadas nem um pouco com as de Phakchok Rinpoche, eu queria compreender a real significância da vida de seu pai. Como eu poderia de fato entender o significado de nossa conexão com Chökling Rinpoche e sua tradição? Movido por essas questões, pedi a três dos irmãos de Rinpoche, aos seus dois filhos e à sua esposa que compartilhassem suas lembranças desse ser maravilhoso.

Sangyum Dechen Paldon foi esposa de Chökling Rinpoche por mais de quarenta anos. É uma das pessoas mais carinhosas e sábias que já conheci. Ela era a rocha inabalável sobre quem Rinpoche se apoiava e, com uma impecável combinação de experiência em meios hábeis e uma humilde elegância, ela foi a força motriz que conduziu os muitos desejos genuínos e atividades dármicas de Rinpoche. Relembrando o casamento e a vida juntos, ela disse: 

“Eu também conheci o amor de Rinpoche como marido e testemunhei seu amor como pai. Alguns dos momentos preferidos do Rinpoche se passavam sentados no chão da nossa casa, comendo com a família, brincando e demonstrando afeto. Rinpoche adorava companhia, e claramente foi graças às suas bênçãos que seus amados irmãos, filhos e eu pudemos nos reunir e estar junto dele antes de sua morte.”

Foto: Tsikey Chökling Rinpoche e Sangyum Dechen Paldron. Fotografia cortesia de Sangyum Dechen Paldron.

Quando perguntei a Phakchok Rinpoche (o filho mais velho de Chökling Rinpoche) por que ele achava que sua família era tão calorosa e amorosa, ele imediatamente respondeu: “Nunca vi meu pai repreender minha mãe. Ele sempre foi incrivelmente amável com ela e isso teve um efeito positivo em toda a família.”

O calor e o cuidado de Chökling Rinpoche não eram reservados apenas aos familiares e amigos. Seu irmão mais novo, Mingyur Rinpoche, explicou: 

“Se uma pessoa comum precisasse de sua ajuda, por exemplo, para rezar pelos enfermos ou moribundos, ele ajudava sem se importar se era dia ou noite. Muitas vezes, quando as pessoas pediam a ele, especialmente se eram pessoas pobres desprovidas de meios para fazer oferendas, ele aparecia imediatamente na casa delas. Costumava ficar parado na rua conversando com os mendigos, tratando-os como amigos e às vezes levando-os até sua casa para lhes oferecer comida e conversar.”

Foto: Tsoknyi Rinpoche, Chökyi Nyima Rinpoche, Tsikey Chökling Rinpoche, Mingyur Rinpoche. Fotografia cortesia de Sangyum Dechen Paldron.

As pessoas costumam dizer que a conduta de Rinpoche era especial, mas ele era tão diferente de qualquer outra pessoa que já conheci que as palavras parecem faltar, impõem limitações desnecessárias e fracassam toda vez que tento descrevê-lo. Quando perguntei a seu irmão Tsoknyi Rinpoche como descrever as qualidades da presença de Rinpoche, ele respondeu com alegria: 

“Chökling Rinpoche era uma pessoa única e misteriosa. Não posso dizer que alguma vez compreendi plenamente quem ele era. Quando estávamos juntos, muitas vezes eu sentia que, embora ele estivesse totalmente presente comigo, ao mesmo tempo sua mente estava em um reino completamente diferente. Era uma qualidade incrivelmente rara e uma maneira de ser extraordinariamente bela. Não que ele estivesse desconectado ou perdido, estava totalmente presente e atento. Mas também estava em outro lugar. É difícil descrever. Tive a sorte de conhecer muitos grandes seres, praticantes extraordinários. Mas ele era único, sempre dava a impressão de ser completamente humano e ao mesmo tempo de outro mundo… Em uma palavra: é um ser muito especial. Fiquei muito triste quando o perdemos.”

Qual era a fonte dessa qualidade supramundana? Talvez a explicação de Chökyi Nyima Rinpoche, irmão mais velho de Chökling Rinpoche, tenha sido a mais satisfatória: “Rinpoche frequentemente tinha experiências visionárias muito profundas, tão fortes que às vezes o mantinham acordado durante toda a noite.”

Lembrei-me de ter ouvido sobre as visões de Rinpoche de um amigo meu que viajou com ele e seu pai, Kyabjé Tulku Urgyen Rinpoche, para o Butão. Ele disse que quando estavam a caminho de Taktsang Gompa, Chökling Rinpoche foi inundado por tantas visões que teve dificuldade de avançar pelo traiçoeiro caminho ladeado por penhascos. Seu pai, que normalmente nunca admitia qualquer realização devido à sua prática de meditação, deu a Chökling Rinpoche instruções sobre como se relacionar com a experiência.

Querendo saber mais sobre as visões de Chökling Rinpoche, pedi a Phakchok Rinpoche que contasse uma história que o ouvi relatar brevemente no Nepal, quando estávamos trabalhando juntos em nosso livro. “Quando meu pai foi para o Tibete, ele visitou o mosteiro Samye, onde conheceu um velho khenpo. Embora nunca tenha me contado sobre o que conversaram, ele me disse que foi um momento muito especial. Meu pai me disse que na manhã seguinte, muito cedo, teve um sonho semi-acordado no qual o khenpo se transformava em Vimalamitra. Vimalamitra atingiu meu pai na cabeça com uma cópia do Tesouro do Dharmadhatu, de Longchenpa. Meu pai disse que, daquele momento em diante, passou a saber todo o texto de cor. Quando voltou do Tibete e me contou a história, tenho vergonha de dizer que não tinha certeza se acreditava ou não. Então pedi a ele que recitasse o texto e ele imediatamente o fez de uma só vez, sem hesitar ou parar.”

Essas visões também informaram a atividade do Darma de Rinpoche, como sua esposa Sangyum Dechen Paldon explicou: 

“O papel oficial de Rinpoche no Monastério Ka-Nying Shedrub Ling era o de mestre-vajra, e ele executou essa tarefa com máxima seriedade. Sentado em seu trono, o Rinpoche tinha uma dignidade e uma majestade ao presidir a assembleia. Sua presença intensificava a experiência do ritual para todos os presentes na sala. Todo ano, antes do Losar tibetano, Rinpoche performava sua dança espetacular como parte das práticas de Vajrakilaya para remoção de obstáculos. Externamente, o Rinpoche dançava sozinho, mas era acompanhado por um séquito de dakinis invisíveis. Todos que assistiram à sua dança ficaram encantados com a forma como Rinpoche manifestou, por movimentos físicos livres de esforço, as profundezas de sua realização interior.
Rinpoche também revelou suas experiências visionárias ao iniciar a construção de um templo Zangdok Palri ao sul de Kathmandu. Seguindo em frente, vamos dedicar nossas energias para finalmente tornar realidade a visão de Rinpoche.”

Embora muitas décadas tenham se passado, ainda me recordo da experiência de conhecer os grandes mestres que atingiram a maturidade espiritual antes da revolução cultural e da subsequente viagem de fuga do Tibete. Era difícil imaginar que um humano pudesse ser como Kyabjé Dudjom Rinpoche, Kyabjé Dilgo Khyentse Rinpoche, Kyabjé Tulku Urgyen Rinpoche e muitos outros. Simplesmente por esses mestres serem como eram, isso me deu fé no Darma. 

Enquanto quase todo mundo esteja agora atingido pela hiper-racionalidade do mundo moderno, o poder da extraordinária tradição Vajrayana ainda consegue brilhar. Acho que isso é muito bem resumido pelo atual Dilgo Khyentse Rinpoche, o filho mais novo de Tsikey Chökling Rinpoche: 

“Meu pai, Tsikey Chökling Rinpoche, foi a emanação do maravilhoso terton Chökgyur Dechen Lingpa. Em meu pai, vi as qualidades de um iogue autêntico e exemplar. Quando a sabedoria é plenamente realizada, ela não tem limites, as fronteiras entre a percepção mental interna e os fenômenos externos desaparecem, tudo se torna uma mesma expressão de vacuidade e sabedoria. Quando alguém atinge esse estado, ele se torna um iogue realizado. Meu pai era muito humilde, viveu de forma bem simples e era amável com todo mundo, independente de classe social, raça, ser homem ou mulher. Seu amor e carinho não conheciam limites.
Atualmente, muitas pessoas dizem que é praticamente impossível encontrar praticantes genuínos e professores autênticos do Darma. Felizmente, como tive a oportunidade de observar meu pai de perto e me relacionar pessoalmente com ele, devo dizer que ele é uma prova de que esta crença é equivocada. Ele abriu meus olhos para o fato de que existem seres maravilhosos ainda vivendo entre nós. Se você pode reconhecer isso, você é uma pessoa de sorte. É assim mesmo.”
Sobre o tradutor: Erric Solomon é um iogue e professor budista que trabalhou por muitos anos como engenheiro no Vale do Silício. Erric estudou sob a orientação de alguns dos principais professores espirituais tibetanos e com alguns dos melhores pesquisadores de Inteligência Artificial. Mais tarde, passou anos em retiro, amadurecendo o que havia aprendido. Ele é co-autor do livro Radially Happy: A User’s Guide to a Full Mind.
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