“É da natureza livre da nossa mente que as bençãos vêm. Que neste ano consigamos receber e utilizar essas bênçãos”
As passagens de ano são períodos extraordinários, mágicos, na perspectiva budista. Entramos na paisagem ideal: desejamos felicidade, paz, saúde, que tudo prospere e nós fiquemos, enfim, um ano mais jovem, quer dizer, que ninguém note que o tempo vai passando [risos].
Na perspectiva budista, essencialmente, sempre aspiramos o que parece favorável e tentamos escapar do que parece desfavorável. Esse é o tom geral, é o som geral dessas épocas de mudança de milênio, de ano, de década ou alguma outra mudança assim. Olhamos desse modo. Mas a base da lucidez que utilizamos é uma base contaminada, que funciona a partir da operação dos doze elos da originação dependente.
Uma das coisas mais importantes para se entender é que é possível viver bem. Não existe uma contradição entre a nossa felicidade e a lucidez. Porque numa perspectiva de diferentes tradições religiosas é como se a felicidade fosse alguma coisa enganosa, totalmente enganosa. Mas na perspectiva budista a felicidade é possível. E ela pode estar acoplada à sabedoria.
Então, não existe realmente uma contradição. A nossa dificuldade é que, se estamos presos à Roda da Vida, a felicidade é transitória, como vocês já devem ter percebido. Quando estamos presos na Roda da Vida, temos que ouvir as Quatro Nobres Verdades inevitavelmente. O Buda vem com um antídoto para esse obstáculo dos Doze Elos da Roda da Vida. Ele vem apresentar um caminho.
Quando vem a Virada do Ano, começamos: “Quais são as minhas fixações sérias? Eu quero isso, quero aquilo…”: garantia de sofrimento. Segundo o Buda, a fixação dá origem ao sofrimento. Experimentem, mais ou menos, estabelecer fixações. Imediatamente, começamos a tremer um pouco. As fixações não são reais, mas elas produzem uma sensação de realidade que, por sua vez, embasa o estabelecimento do sofrimento inerente àquilo.
Então, vem a Primeira Nobre Verdade do Buda, a Verdade do Sofrimento. Essa, com certeza, não é a verdade mais elevada. Mas é a verdade que nos permite entrar no caminho.
A verdade mais elevada, poderíamos dizer, é aquela que fala da nossa natureza como uma natureza totalmente livre do sofrimento, naturalmente feliz, naturalmente preenchida com energia. Essa é a grande Nobre Verdade do Buda. Mas como não estamos conseguindo propriamente entender isso, o Buda se expressará com essa motivação de nos encontrar onde estamos e falará sobre o ponto do sofrimento. Porque o ponto do sofrimento é aquilo que toca a todos nós. É uma linguagem que nos encontra onde estamos.
Nós temos uma sensação autocentrada que, por sua vez, também é autossurgida pelo conjunto de fixações que temos. Quando, por exemplo, vamos falar coisas muito íntimas uns para os outros, falamos das nossas fixações. Não sei se vocês já perceberam. Não falamos nada verdadeiro nosso. Falamos das nossas fixações. Quanto mais confiança temos em alguém, mais vamos revelar fixações.
Aquilo que pensamos que somos é esse conjunto de fixações. Brotamos assim. Não sabemos de onde surgem as próprias fixações que manifestamos. Se dissermos: “Eu sou isso”, também nos frustramos porque as fixações vão mudando. Você vai mudando e também não entende porque as fixações mudam. “Acho que as coisas estão mudando. Eu gostava disso e agora estou gostando daquilo”. Surgem umas crises de identidade. Para piorar, às vezes, você está em um certo lugar com um conjunto de preferências e, em outros lugares, com outras pessoas, surgem outras preferências. É traumático!
Isso revela o fato de que as nossas mentes não são realmente individuais. As nossas mentes são amplas. Nós temos uma sensibilidade para acessar carmas de outros seres. Acho isso muito comovente e perturbador.
As fixações surgem como padrões. Mas como as coisas todas oscilam e nós oscilamos também junto disso. Em um certo momento, vemos que essas fixações produzem sensações de sofrimento para nós. É inevitável. Estabelecemos uma fixação, temos esse padrão e as coisas oscilam sem controle. Então, nós oscilamos também e vem a sensação de felicidade e infelicidade. Isso é a nossa própria circunstância.
Para complicar um pouco, quando estamos em situações difíceis ou médias, estamos sempre olhando em volta e vendo como podemos fazer para tudo melhorar. De modo geral, nossa tentativa de fazer as coisas melhorarem é chamada no budismo de transmigração.
É como mudar de cidade, por exemplo. As pessoas transmigram, vão para outra cidade. Aspiram que a vida melhore, então aspiram ir para outros lugares. Outro dia, eu estava em uma reunião e ouvi várias pessoas, gente poderosa, dizendo: “A minha filha diz que é melhor sair do país”. O outro diz: “Pois é, meus filhos também estão dizendo vamos sair do país’”. Isso é transmigração. Eles olham, pensam que as coisas não estão boas e dizem “eu vou para outro lugar”; mas não há lugares bons de fato, porque em todo lugar nós estamos com um conjunto de fixações. E, nesse conjunto de fixações, temos problemas.
Como Tokuda San dizia, aqui começa esse aspecto do Darma: O templo mais elevado nós já estamos tocando com os nossos pés. O lugar onde nós estamos é o lugar da nossa prática. A transmigração não resolve. Nós imaginamos que a transmigração resolve, se fizermos uma reconfiguração. Na perspectiva budista, só estamos montando uma nova bolha de realidade, nada mais.
Qual é a característica mais clara da bolha? A bolha dura um tempo, cessa, e nós transmigramos para outras bolhas. Estamos sempre no centro daquilo. Estar no centro significa que nós estamos em algum lugar e achamos que o mundo inteiro nos circunda, que o mundo poderia ser mais favorável ou mais desfavorável. Não percebemos que o mundo surge inseparável dos nossos próprios olhos. Vemos o mundo e vemos como ele repercute sobre as nossas coisas. Na medida em que repercute sobre as nossas coisas, brotam as sensações de felicidade e infelicidade.
Na perspectiva budista, isso não tem solução. Não tem como arrumar isso, nem dentro da bolha, nem fora da bolha, nem transmigrando para outra bolha. Não tem solução. Isso não nos impede de, na virada do ano, desejarmos que a bolha, neste ano, seja boa para cada um.
“Que vocês tenham bolhas perfumadas, douradas, estáveis, felizes… Que tudo ande bem.” Tudo bem! São votos do bloco zero – no qual acreditamos ser possível obter felicidade a partir de circunstâncias externas.
Mas o Buda já explicou isso. Ele mostrou como o sofrimento é inevitável a partir das fixações, que é a Primeira Nobre Verdade. A Segunda, como dissemos, é que essas fixações brotam pela estrutura da Roda da Vida, surgem dos seis reinos, das emoções perturbadoras. Desse ponto, entendendo que isso é artificial, o Buda oferece essa bênção extraordinária que é a Terceira Nobre Verdade: a liberação é possível, o sofrimento pode cessar. Ele poderia dizer também: a felicidade definitiva é possível.
Quando falo assim, parece super remoto, parece alguma coisa que, talvez, depois que morrermos, dependendo se você recitou direito, se praticou direito, se fez retiros, se contribuiu para a Escola durante a vida, pode ser que chegue a algum lugar. Mas não é. Na visão budista, contribuindo para escola ou não – claro que contribuindo seria melhor –, está resolvido, ou seja, essa base não pode ser retirada de nós.
Estamos vendo isso dentro de uma perspectiva na qual nossa natureza é inatingível. Nossa natureza é a mesma natureza do espaço. Junto com essa natureza do espaço existe essa capacidade luminosa – a capacidade extraordinária que é construir realidades.
Então surge essa perspectiva: nossa mente é plástica e constrói realidades. Nós treinamos isso. Curiosamente, quando estamos treinando, em um certo momento, descobrimos que isso pode ser muito útil para ajudar as pessoas. Voltamos ao mundo e dizemos: “O mundo é um lugar perfeito para tentarmos construir coisas positivas.” As coisas positivas são um caminho favorável. Não só para que tenhamos uma vida individual melhor, que preservemos a saúde, mas que, em grupo, consigamos construir realidades coletivas melhores. Que consigamos construir veículos coletivos que funcionem melhor.
Tudo isso para, enfim, desejar feliz Ano Novo! Uma longa explicação… Feliz 2018! Dentro dessa perspectiva, que possamos construir mundos melhores. Que encontremos essas capacidades reais que nós temos. Que não fiquemos limitados a objetivos menores que não têm solução. Que não fiquemos preso a algum jogo ou a algum campeonato. Que não fiquemos presos a algum aspecto sectário, imaginando que nós, presos naquilo, melhoramos e os outros afundam. Isso é pura perda de tempo. Então, que nós, em diferentes níveis, consigamos pacificar e elevar a nossa visão, que tenhamos bons referenciais.
Especialmente, que nós entendamos que, por exemplo, estamos dentro de um templo. Esse templo, podemos dizer, é feito por paredes que as pessoas pintaram, mas não é! Há uma energia sutil e nós recebemos as bênçãos disso. É inacreditável que existam pessoas desde sempre, existem seres desde sempre que emanam essa aspiração de trazer benefícios aos seres, que são manifestações do Buda Primordial, que vêm por Cherenzig. Eles surgem como inteligências e vão imantando, vêm surgindo, geração após geração. Os templos surgem por si mesmos. Eles não surgem pelas pessoas. É a energia que faz aparecer os templos, que faz aparecer as imagens.
Acho muito comovente o fato de que as coisas existem no aspecto grosseiro e no aspecto sutil. O aspecto grosseiro vai espelhando esse aspecto sutil. E o aspecto sutil espelha o aspecto livre da mente. O aspecto livre da mente não pode ser corrompido. É como se fosse a verdade última, como se fosse a religião última, que está estampada no céu externo e no céu da nossa mente. Está estampada ali. É incorruptível, não tem como derrubar isso.
Então, nós estamos constantemente sob o efeito desse benefício. Está certo que podemos ver nossa vida inteira. Nos tempos em que estamos vivendo agora, olhamos pouco para o céu. O céu não quer dizer muita coisa para nós. Nas grandes cidades, o céu vai ficando pálido, vai ficando sem estrelas… Nós deveríamos refletir por que é que, quanto mais artificial nossa vida, menos estrelas existem?
Deveríamos considerar isso um fator alarmante. Do mesmo modo, quanto mais civilizada nossa vida, menos árvores, menos animais, menos cursos d’água livres e limpos, menos paz, também menos estrelas. Deveríamos tentar entender por que tem menos estrelas, menos azul no céu. Tudo vai ficando cinza e com menos ar puro.
Na medida em que a poluição da artificialidade da nossa mente se expande, ela afeta a ecologia no nível grosseiro e sutil. Nós não podíamos imaginar, por exemplo, que a poluição chegaria a afetar o azul do céu e as estrelas, mas afeta. Deveríamos entender isso e reverter esse processo. Mas ainda que isso se estabeleça, a natureza livre da nossa mente não é afetada. E é da natureza livre da nossa mente que as bençãos vêm e vão purificando todos esses aspectos. Nós estamos no meio disso.
Então, que 2018 seja um tempo em que nós vamos recebendo essas bênçãos. Essas bênçãos estão presentes. Elas são nosso direito. Elas estão disponíveis para nós e podemos acessar isso diretamente. Que esse seja um ano em que consigamos acessar, receber, se apropriar e utilizar essas bênçãos.
Transcrevemos trechos da palestra realizada na abertura de ano de 2017, em Viamão (RS), para contemplarmos a mensagem sobre os períodos mágicos das passagens de ano.
Acesse a palestra completa aqui:
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3 Comentários
O budismo, através do Lama padma Samten nos trás outra perspectiva de pensar o minuto que se vive. Eu agradeço estar fazendo parte desta .
Perfeito! ^^
Gratidão pelas palavras, pelos ensinamentos.