Na terra das dakinis | Parte 1

Segundo relato de um diário (sem data) de peregrinação


Por
Revisão: Christiane Martins Schardosim

Em algum bordo do que calculamos como o décimo oitavo século no lado poente do mundo, um príncipe ofereceu uma tigela de curd¹ a um eremita. O eremita agradeceu e se alimentou. Depois, regurgitou o líquido e devolveu a tigela ao príncipe. “Beba”, ordenou. Nauseado, o príncipe arremessou o curd e o derramou sobre os pés do homem. 

Foi neste instante que o velho asceta revelou seu disfarce: ele era, na verdade, Gorakhnath, o fundador da tradição Nath — uma antiga linhagem de devotos de Shiva.

Gorakhnath fez a seguinte profecia: “Uma vez que o líquido não caiu no chão, mas sobre os meus pés, teu fado não será de todo ruim. Mas, porque tiveste nojo do meu vômito e se recusaste a bebê-lo, a dinastia de sua família perdurará somente por dez gerações.” O príncipe a que se dirigia era Prithvi Narayan Shah Dev, o fundador da linhagem de monarcas Shah.

Séculos depois, em primeiro de junho de 2001, sucedia-se algo inusitado na história da humanidade: o mundo inteiro voltava sua atenção ao pequeno e quase esquecido reino do Nepal. Manchetes contavam sobre o sangrento massacre executado pelo príncipe Dipendra, que matou seus pais — o rei e a rainha —, seus irmãos mais novos e a si mesmo. Caía, assim, a dinastia Shah. Coincidência ou acaso, esta era a décima geração.

Família real nepalesa (Imagem: Wikipedia)

Estávamos caminhando pelas ruínas de um dos locais mais sagrados de Shiva em todo o Nepal, o templo de Pashupatinath. Foi quando paramos diante de uma imagem de Gorakhnath que meu amigo me contou esta história. Meu corpo foi arrebatado por uma estranha leveza — não soube dizer se era horror ou devoção. Observei a escultura de pedra com cuidado. O cheiro de carne queimada invadia meu campo olfativo e desenhava na minha mente as imagens de corpos inertes enfileirados, esperando à beira do fogo. Estavam envoltos em um tecido branco e guirlandas de flores laranja, tal qual os corpos que se enfileiravam a poucos metros de nós, no terreno de cremação de Pashupatinath. Seguimos caminhando mais um pouco e meu amigo me explicou que, logo adiante, nos depararíamos com um dos pontos mais venerados da geografia hindu-budista: um templo que era considerado o yoni (ou vagina) da deidade — de Parvati ou Sati Devi, para os hinduístas, e de Vajravarahi, para os budistas.

Ao nosso redor, por todos os lados, espalhavam-se representações em pedra da união do lingam (pênis) de Shiva e do yoni (vagina) de Parvati. Nos recantos ocidentais do globo isso seria considerado uma ofensa, até mesmo uma aberração. Mas por aqui, este é o símbolo do que há de mais sublime e derradeiro. O lingam e o yoni, juntos, representam a união de vida e de morte, da matéria primordial e da consciência pura, do masculino e do feminino. Representam a verdade que não pode ser abarcada.

Lingam e yoni em Pashupatinath (Imagem: Flickr)

O templo ao qual nos dirigíamos, Guhyeshwari, é restrito aos praticantes do hinduísmo. Aos olhos da cultura local, isso significa que somente podem adentrar seus portões pessoas indianas e nepalesas. Qualquer outra nacionalidade é barrada. Meu amigo e eu sabíamos disso — ele, inclusive, já tinha tentado entrar despercebido outras vezes, sem sucesso. Mas enquanto os nativos viam nesta restrição uma forma (provavelmente efetiva) de proteger sua fé do turismo predatório, ardia em nós uma forte atração por aquele lugar. Queríamos praticar e fazer oferendas. Não éramos simples turistas.

Assim, convencidos de que havia certa injustiça na vinculação do conceito de devoto a critérios de nacionalidade, decidimos subir seus degraus com o ar mais casual que nos foi possível encenar. Tentando nos fazer confundir a um grupo de pessoas locais que entravam naquele momento, atravessamos o portão principal e, com uma alegria contida, nos vimos no interior do complexo de Guhyeshwari, o yoni de Sati Devi e de Vajravarahi.

A beleza dos templos hindus é algo da ordem do inexprimível. A devoção aflora da pele, das cordas vocais, dos impulsos involuntários dos músculos. Inscreve-se também nas pedras, com a sensualidade de seus contornos. Uma vez dentro do complexo, fui capturada por um grupo de mulheres que cantavam uma espécie de raga. Seus rostos, em arrebatamento, contorciam-se para cima. Seus corpos animavam-se de uma estranha força. Eram o playground da deusa.

Enquanto as observava, fui abordada por um dos guardas do templo. Meu amigo e eu argumentamos um pouco, mas acabamos sendo expulsos. Tentamos entrar mais uma vez, mas fomos de novo caçados. Insistimos uma terceira — sem sucesso. Àquela altura, as pessoas ao redor já estavam se divertindo. Alguns devotos nos ofereceram um prato de comida em um gesto de amigável consolo. Nos resignamos e, finalmente, fomos embora.

Shiva e Parvati (Imagem: Arquivo pessoal da autora)

Não sei se são as pessoas, os inúmeros locais sagrados ou a geografia (um vale abraçado por montanhas em todas as direções), mas há algo em Kathmandu que me faz sentir como que no colo de uma mãe. Talvez não seja nada disso. Talvez seja alguma coisa que ainda não soube delinear. Talvez seja algo que eu sinto e compreendo, mas que se esconde dos olhos e da mente comum. A bem da verdade, esta é a terra das dakinis. Vendo-as ou não as vendo, estamos todos dançando na sua grande celebração.

Pode ser um sopro de vento que muda a rota das nuvens de chuva e nos faz recorrer ao abrigo de um templo até então despercebido. Pode ser uma série de eventos inexplicáveis que obstruem as mais banais tentativas de se chegar a certo lugar, em certo dia. Pode ser um estranho que nos aborda na rua para dizer que, naquele instante, o mestre que queríamos conhecer está conduzindo um monlam num monastério ali perto. Pode ser uma animada roda de baralho ao lado da pira de cremação, recordando-nos de que o senso de humor nunca foi antagônico à morte. Pode ser um ritual noturno em um antigo charnel ground que nos faz questionar se está mesmo ali aquilo que os olhos parecem ver. Pode ser o tridente de Shiva cravado no solo de um templo que, curiosamente, carimba-se também no céu. Pode ser um corvo que senta conosco à mesa do almoço e nos observa minutos a fio, sem medo, com etnográfico escrutínio. Pode ser um macaco que rouba nosso sorvete e nos deixa abobados a ver navios.

Tridente de Shiva (Imagem: Arquivo pessoal da autora)

Podem ser tantas coisas e pode ser nada disso. Mas ao pisar nesta terra, irremediavelmente caímos na palma da mão de Kali. Ou, melhor dizendo, desperta em nós sua fúria. A mesma que incendeia os olhos da menina-deusa Kumari e anima as labaredas das piras de Pashupatinath — sempre vivas na comunhão com a morte. Mas a fúria de Kali que sacode o solo de Kathmandu e por vezes derruba seus edifícios é um hino brutal de amor. Não é a fúria da violência estéril. A fúria de Kali tem ventre. Seu ventre é a fonte de tudo o que é, o que foi, o que será e aquilo que nunca existiu nem nunca virá a ser. Quando abrimos nosso coração a isso, à sua feroz majestade, caímos curvados com as mãos em prece. E nesse momento já não há uma separação. Tombamos desamparados aos pés de nossa própria grandeza.

¹ Um tipo de coalhada típica da culinária indiana e nepalesa.
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