Não podemos nos contentar com o mundo que nos é dado!

O florescimento do saneamento ecológico comunitário.


Por
Revisão: Sandra Knoll
Edição: Elen Cezar

Victor Eduardo Cury Silva é praticante budista há 10 anos. Facilitador no CEBB Floripa, encontrou nas Terras Puras do CEBB a possibilidade de iniciar um movimento que colabora com a saúde e permanência da humanidade através das wetlands, ou sistemas de saneamento ecológico.



NOSSA RELAÇÃO COM A NATUREZA

Buscando escrever uma história diferente sobre a nossa relação com a natureza, observei a quantidade de incoerências ambientais que fazemos todos os dias para manter nossa vida no ritmo da normose social. Alguns exemplos que me impactavam e ainda me impactam muito, são: a forma como manejamos a água da chuva em solo concretado e canais de concreto, os resíduos orgânicos misturados com plásticos e outros materiais não compostáveis, os combustíveis fósseis utilizados de forma inconsequente (a energia fóssil que representa centenas de milhares de anos de fotossíntese das algas), a forma como tratamos as plantas e os animais (como se eles tivessem que se adaptar a nossa cultura), aos nossos fios elétricos, nossas estradas e, por fim,  a forma que tratamos os elementos: O fogo exagerado de nossos automóveis e fábricas, o ar poluído de nossas metrópoles, a terra que recebe diariamente milhares de toneladas de resíduo não reciclado – além de agrotóxicos, e, ainda, o nosso esgoto sanitário. São questões sociais e amplas, mas que atingem também nossa coletividade próxima e, para uma pessoa que nasceu nos anos 80, essas questões geraram uma distância no cotidiano de nossas vidas com os recursos essenciais a nossa saúde, como a água pura, o ar puro e a disponibilidade de terra pura para plantar, bem como a energia do fogo brando que aquece sem danos.

Posso dizer que disso surgiu e ainda surge um sentimento de que não podemos nos contentar com o mundo que nos é dado, a realidade atual é distópica, tal qual se apresenta nos córregos urbanos, nos campos de soja, nas barragens de rejeito das mineradoras, nas praias poluídas, nas aulas de geografia, história, sociologia, ou mesmo a que vemos noticiadas pela grande mídia ou pelas mídias sociais. Essa realidade precisa mudar, precisamos desconstruir o mundo tal qual ele se apresenta e construir um mundo mais favorável para nós e para os outros seres e elementos da natureza. Nossa relação, no âmbito da energia com todos os outros seres, pode ser mais favorável e está em nossas mãos a possibilidade de fazer acontecer! Muitos cientistas dizem, e é verdade, que nesta crise climática inquestionável que vivemos hoje, a Terra certamente seguirá seu curso e sua história, contudo, depende de nós se a humanidade vai ou não fazer parte dessa continuidade. Eu gostaria de colaborar de alguma maneira com nossa saúde e permanência.

SITUAÇÃO DO TRATAMENTO DE ESGOTO NO BRASIL

Falando de saneamento, temos no Brasil uma situação muito grave. Nosso país apresenta um cenário no mínimo espantoso: do total de 214 milhões de habitantes, cerca de 35 milhões não possuem acesso à água potável e mais de 100 milhões estão sem coleta de esgoto. O índice de brasileiros que possuíam sistema de tratamento de esgoto em 2014 era de 40,00% e em 2022 passou para 52,2% segundo levantamento do SNIS. (Serviço Nacional de Informação sobre Saneamento) (https://www.gov.br/cidades/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/saneamentosnis/painel/es). Ou seja, em 2022 apenas metade da população brasileira possuía tratamento de esgoto, a outra metade lançava seu esgoto sem nenhum tratamento no ambiente. Além disso, os sistemas convencionais de tratamento de esgoto das grandes cidades não estão preparados para tratar mais do que 70% da matéria orgânica biodegradável e, em geral, não tratam nitrogênio, fósforo e muito menos os contaminantes emergentes.

Segundo o Instituto Trata Brasil, cerca de 400 mil internações por ano acontecem por diarreia causada pela falta de saneamento básico. Além disso, hoje assistimos ao declínio da qualidade dos nossos rios, lagos, lagunas e praias devido à  falta de saneamento. Esquistossomose, malária, hepatite e cólera são apenas algumas das doenças veiculadas pela falta de saneamento. Segundo a Organização Mundial de Saúde, o investimento em saneamento básico está intrinsecamente vinculado às questões de saúde pública. No âmbito mundial, um dólar gasto em saneamento básico gera uma economia de quase seis dólares em saúde pública.

O fato é que neste ritmo, o saneamento convencional vai atender toda população brasileira (universalização do saneamento) aproximadamente daqui a 60 anos ou mais. É uma projeção muito lenta e, além disso, os desafios das regiões mais pobres, rurais e aquelas mais afastadas dos centros urbanos (que representam grande parte dessa estatística de esgoto não tratado) não são lucrativas para as empresas de saneamento convencional, já que as taxas pagas pelas pessoas não compensam os altos valores investidos para fazer redes e sistemas centralizados.

FLORESCIMENTO DO SANEAMENTO ECOLÓGICO 

Neste contexto, floresce o saneamento ecológico e descentralizado, proporcionando uma opção economicamente viável, social e ambientalmente justa, trazendo dignidade e  autonomia para as pessoas poderem tratar seus efluentes sem poluir os rios e a água subterrânea, garantindo qualidade de água às novas e futuras gerações e, ainda, gerando emprego e renda para muitas pessoas que trabalham nessas obras. É de fato outro paradigma de saneamento, no qual os sistemas precisam se adaptar às formas de habitação, ao clima local e aos materiais disponíveis. São sistemas que trazem essa autonomia para as pessoas e suas comunidades, e uma alternativa palpável de interação mais positiva.

Infelizmente, no meio técnico, as alternativas de saneamento ecológico nem sempre são bem vindas, já que a cultura do saneamento convencional beneficia empresas de grande porte e lobbies políticos por todo o Brasil. Além disso, existe muita desinformação no meio regulatório, sendo que ainda faltam normas específicas para muitos desses sistemas no Brasil, o que torna a aprovação dessa nova tecnologia  sempre um caso analisado um a um pelos órgãos ambientais. Isso faz com que sejamos ainda mais exigentes com a técnica, o que garante tratamentos ótimos e que atendem muito mais do que os padrões mínimos das leis ambientais (Conama 430, leis estaduais e municipais).

MOTIVAÇÃO ELEVADA

Tendo essa motivação, não sabendo quase nada do budismo mas buscando tradições que ancorassem essa sensação, esse pertencimento e essa interconexão entre todos os seres, encontrei o Lama Padma Santem e com ele o CEBB e as três jóias. Vi no CEBB e na sanga a possibilidade de criar redes, praticar e estudar o Darma em grupo e, a partir de visões mais elevadas, construir novas histórias em contextos mais favoráveis ao florescimento de uma vida humana preciosa, mais conectada com seus princípios e sua origem.

Lama Padma Santem, em seus sonhos com a sanga do CEBB, vem criando o movimento dos CEBBs rurais. Esse movimento é conhecido por nós por movimento Terra Pura, no sentido de afirmar que, onde os pés tocam a terra, esse é o nosso templo. De fato, praticando constantemente surge essa compreensão silenciosa da rede natural de interconexões que sustenta nossa vida. Então, na relação com todas as questões que me tocavam lá no início deste texto (outros seres da natureza e com os elementos), não seria diferente.

CEBB MENDJILA


Meu trabalho com os efluentes sanitários surgiu mais ou menos ao mesmo tempo que essa visão foi se ampliando. Ainda quando estava na faculdade de engenharia (2012 e 2013) fiz dois anos de estágio em uma empresa que trabalhava com o conceito de saneamento focado em recursos. Foi libertador sair da faculdade com essa possibilidade de aplicar meus conhecimentos dessa forma. Ainda em 2013, fizemos o primeiro sistema wetland no CEBB Mendjila, sistema que atende o tratamento de um banheiro adaptado e do refeitório, um sistema que tem as bananeiras como destino final do esgoto. Depois fizemos muitas bacias de evapotranspiração para tratar os esgotos das casas. Com o tempo a sanga foi se apropriando da forma construtiva e hoje muitos sistemas são feitos pelos moradores do CEBB Mendjila, sendo que é sempre uma alegria poder colaborar com a sanga.

CEBB SUKHAVATI


Em 2015 fui convidado pela sanga do CEBB Sukhavati para fazer um sistema de tratamento para o refeitório/templo/alojamento. Um sistema que receberia uma carga de esgoto um pouco maior devido a capacidade de atendimento do espaço. Então fizemos um sistema Ercole, que conectou dois sistemas wetlands em série e um sistema de reuso. Desde então (2016 até 2024) tenho ido muitas vezes até lá praticar, estudar e trabalhar nas wetlands coletivas. Fizemos um planejamento a partir da topografia e das possibilidades de áreas existentes na área dos moradores; o planejamento foi muito bem sucedido e os sistemas estão sendo implantados de forma gradativa, à medida que a sanga vai se estabelecendo no CEBB.

Aqui em Florianópolis, em minha base temporária, sigo trabalhando com as Wetlands, atendendo restaurantes, residências e pousadas. Além disso, concluí meu doutorado em engenharia sanitária e ambiental (estudo da hidrodinâmica e dos ciclos biogeoquímicos da Lagoa da Conceição e suas alterações funcionais frente ao avanço do antropoceno). Junto a tudo isso,  sigo na docência como professor universitário.

CEBB RECÔNCAVO

Em 2024 o plano é levar essa atividade a outras localidades em formato de projeto/obra e curso. Nessa modalidade, as inscrições nos cursos podem custear parte das despesas com as obras; e o conhecimento das wetlands pode se expandir para outras pessoas, criando redes de colaboração para atender o maior número de pessoas. Estamos planejando um curso que deve acontecer de 22 a 24 de março no CEBB Recôncavo e outro no CEBB Akanishta – Bacupari, que ainda não tem data confirmada mas deve acontecer ainda no primeiro semestre deste ano de 2024. Inscreva-se aqui.

Já se passaram mais de dez anos desde que tudo começou e sigo ainda aprendendo, fazendo projetos, colaborando com a sanga na execução desses sistemas de tratamento de esgoto e reconhecendo que é uma pequena contribuição dentro de toda esta vasta expansão da sabedoria que se espalha em todas as direções e que é a manifestação da sanga budista no Brasil.

* Sobre as wetlands


As primeiras pesquisas envolvendo a tecnologia começaram na década de 60 com a Dra. Käthe Seidel (1907-1990), bióloga limnóloga do Instituto Max Planck, que demonstrou o potencial da vegetação em ambientes lênticos (locais de águas quase paradas ou lentamente renovadas) em degradar diversos compostos. A pesquisadora nominou este mecanismo de degradação pelas plantas como sistema hidrobotânico. Desde então, as wetlands são pesquisadas em todo o mundo, sobretudo na Europa (até os anos 2000) e mais recentemente nos países do Cone Sul. As aplicações das wetlands são as mais variadas, sendo utilizado com alternativa de tratamento industrial, lodo de esgoto, esgoto doméstico, águas de drenagem urbana, fitorremediação em rios urbanos, esgotos rurais e produção animal, dentre  outros.

As wetlands são sistemas de tratamento de esgoto que utilizam areia e pedras como elemento filtrante, além de plantas que purificam a água removendo a matéria orgânica e removendo também os nutrientes e microorganismos patogênicos e dando oxigênio para água. O processo é físico-químico-biológico, podendo listar os seguintes processos de purificação: filtração, adsorção, oxirredução, biodegradação aeróbia e anaeróbia por bactérias e aeração pela rizosfera das plantas. As principais plantas utilizadas são: Typha (taboa); Cyperus papirus (papiro); Chrysopogon zizanioides (capim vetiver); Hedychium coronarium (lírio do brejo); Kniphofia uvaria (lírio-tocha); Heliconia (bananeira do mato).

As wetlands imitam os pântanos e áreas alagadas, então parecem um jardim. Depois de passar pela wetland, a água já tratada pode ser conduzida para uma lagoa com macrofitas e peixes, ou ser utilizada para irrigação de árvores e outras plantas. Caso você esteja pensando em reuso da água para, por exemplo: lavar o carro, lavar a calçada, dar descarga novamente, é importante fazer a desinfecção da água com cloro ou ozônio e também verificar se existe a necessidade de uma segunda wetland, como um estágio de polimento da água antes de formas de reuso que tenham contato primário da água com a pele ou mucosas.


ANÁLISE DE QUALIDADE DA ÁGUA

Em todos esses anos, realizamos algumas análises da qualidade da água após o tratamento e os resultados foram excelentes. Os valores em termos de ‘taxas de remoção’ indicam a eficiência do sistema em tratar os contaminantes da água. Em geral, esses valores são bastante elevados nas wetlands, desde que estas sejam bem dimensionadas e estejam em boas condições operacionais. Os resultados que já obtivemos estão bem acima do exigido pela legislação do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente). Em média, temos taxas de remoção de matéria orgânica carbonácea acima de 90% (chegando até a 98% de remoção da demanda biológica de oxigênio nas wetlands de fluxo vertical). A remoção de sólidos é de 99%, tanto nas wetlands de fluxo vertical quanto horizontal. O decréscimo dos coliformes é de ordens de grandeza (acima de 99% e, algumas vezes, chega a ser ausente nas amostras). O nitrogênio amoniacal e o fósforo apresentam remoção acima de 80%, enquanto a remoção de surfactantes é superior a 90%. O oxigênio dissolvido geralmente fica acima de 6mg/l e, nas wetlands verticais, alcançamos até 8mg/l, um valor bem semelhante ao de um rio bem limpo.

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