Lama Padma Samten fala sobre a importância do não sectarismo e do movimento Rimé
Nesta entrevista exclusiva para a Revista Bodisatva, o Lama Padma Samten explora como o não sectarismo pode contribuir para uma prática budista mais universal e integrada e sobre a importância do movimento Rimé no Budismo contemporâneo, que promove a valorização de diferentes linhagens e ensinamentos. Com uma abordagem acessível e enriquecedora, Lama Samten nos convida a expandir nossa compreensão do Darma para verdadeiramente beneficiar todos os seres.
O que significa o não sectarismo no contexto do budismo?
O tema do não sectarismo está ligado a uma reflexão sobre o Budismo neste tempo de agora. Como o Budismo vai tomar forma nesses tempos de agora, especialmente no Ocidente? Eu não excluo isso também como uma reflexão que vale para a Ásia. Que tipo de Budismo vai sobreviver na Ásia nesse tempo de agora? Essa é a questão.
O que nós vemos? Nós vemos, nesse momento, como se fosse um período de passagem. Ou seja, nós encontramos formas de grupos budistas, alguns como uma experiência étnica também. Eles estão representados em alguns países, mas não em outros. E eles são falados dentro de línguas específicas. Assim, os grupos naturalmente vão tendendo a promover a divulgação dos seus próprios ideais, de suas próprias visões, seus próprios movimentos em outros países. E o Ocidente tem recebido muitos diferentes grupos de vários países. E o que acaba acontecendo? Acontece de as pessoas acessarem o Budismo e começarem a ler e a ouvir de diferentes fontes. Para elas, é um pouco difícil entender as diferenças e o porquê dessas diferenças. Também, eventualmente, elas entram em alguma dessas linhas específicas e elas têm a sensação de que ali tem tudo. E, mais adiante, elas descobrem que ali existem visões específicas de um tipo ou de outro e que algumas, eventualmente, nem mencionam o Buda. Há algumas que mencionam o Buda, considerando o Buda como ultrapassado e que agora é outro tempo, não mais o tempo do Buda.
No Zen, nós vamos encontrar as pessoas mencionando o mestre Dogen e outros mestres mais recentes, mas com uma referência muito escassa ao próprio Buda ou aos ensinamentos originais do Buda. No Budismo tibetano, nós também vamos encontrar menção a muitos diferentes mestres indianos e tibetanos. Mas há uma dificuldade de encontrar essa ênfase nos ensinamentos que o próprio Buda ofereceu e como isso ocorreu. Assim, as pessoas vão preservando linhagens específicas. Surge então um ideal dentro dos grupos que é a própria sustentação do grupo. E esse ideal de sustentação do grupo é apontado por diferentes mestres.
Por exemplo, Patrul Rinpoche considerava isso um obstáculo. Ele dizia que se as pessoas seguissem o seu guru como se fosse um chefe de família, se eles seguissem o grupo como se fosse uma família fechada, isso não seria uma boa ideia — aquilo seria uma falha do Darma. Então, é uma falha da prática da pessoa. A pessoa deveria entender o Darma como universal. Pensar que ela está fazendo prática ao sustentar um grupo específico seria um engano, realmente. Então, o próprio Patrul Rinpoche aponta isso. Eu achei maravilhoso quando eu acessei e encontrei esses ensinamentos.
Nós temos esse desafio nesses tempos de hoje. Para os ocidentais, o aspecto sectário é acolhido por alguns que se tornam muito sectários ao tentar sustentar uma linhagem. Agora, outras pessoas tendem a considerar que aquilo é como se fosse uma fragilidade. Elas têm dificuldade de se conectar a um grupo de um modo fechado e ficar defendendo o grupo.
As pessoas têm uma conexão de um outro tipo. Elas buscam mesmo a compreensão do ensinamento. Eu acho que a maior parte das pessoas está nessa visão de buscar a compreensão dos ensinamentos e ver como os ensinamentos funcionam nas suas próprias vidas.
Quando eu me pergunto sobre o que vai sobreviver no Ocidente e mesmo o que vai sobreviver na Ásia, em meio a esse encontro de muitas linhagens e muitas visões, a ideia que me vem é que o que vai sobreviver vai ser aquilo que for efetivo para as pessoas; aquilo que for bom na vida das pessoas. E que é muito difícil nós sustentarmos grupos específicos presos a ensinamentos particulares, e as pessoas tornarem-se fiéis à sustentação de ensinamentos particulares. Eu acho isso muito difícil.
Então, quando eu olho assim a uma distância maior, me parece que efetivamente nós temos uma tendência à universalidade. Por exemplo, a ciência é universal. O conhecimento e a filosofia são universais. Os conhecimentos, especialmente na visão do Ocidente, não são conhecimentos que pertencem a um grupo e que não seriam universais. Eles são conhecimentos universais. Eu acredito que o Budismo tende a esse aspecto de universalidade do benefício do conhecimento. E os diferentes grupos representam diferentes ensinamentos. Esses diferentes grupos vão terminar dentro de classificações. Como hoje nós olhamos, existem vários tipos de classificações. Vamos descrever, por exemplo, o caminho Sravaka, o caminho Pratiakabuda, o caminho Mahayana. Vamos descrever coisas assim. E dentro do caminho de meditação, nós também vamos classificando os vários tipos de meditação. Nós damos nomes aos mestres que ensinaram várias formas de descrição da vacuidade, como o Khenpo Tsültrim Gyamtso descreve magnificamente no seu livro “O sol da Sabedoria”, publicado pela editora Bodisatva. Nós encontramos esse tipo de análise que classifica os ensinamentos.
Eu acredito que esse tipo de visão é a vencedora. É a visão que vai se consolidar com o tempo. Então, quando eu vejo isso, eu sinto a importância do movimento Rimé. O movimento Rimé, eu já vejo desse modo. É um movimento que vai olhando os diferentes ensinamentos, vai classificando os pressupostos, o alcance, o tipo de aluno, o tipo de discípulo que pode acessar aquele ensinamento e se beneficiar com ele. Nós olhamos de uma forma positiva todos os ensinamentos. Classificamos e entendemos os benefícios de cada um de um modo apreciativo.
Desse modo, não temos a sensação de que a gente deveria olhar apenas um tipo de visão e não olhar as outras. Nós olhamos todas. O movimento Rimé não é um movimento sectário; é um movimento aberto que integra as múltiplas visões. Ele não se opõe às visões particulares, mas, num certo sentido, ele acolhe e enriquece as múltiplas visões particulares, porque ele integra as outras visões.
Como o CEBB tem trabalhado para promover essa visão?
Quando o CEBB foi fundado, o primeiro estatuto já especificava isso. Ele propunha o CEBB como uma instituição para o diálogo entre as tradições budistas e não budistas. Nós, do CEBB, seguimos durante muito tempo a prática do Zen e, ao mesmo tempo, estudávamos outras formas de Budismo.
Nós estudávamos os nossos retiros do Zen e também os textos de Longchenpa, ainda nos anos 1980. Eu acho que a perspectiva foi essa. Organizamos vários debates dentro da própria universidade, convidando filósofos, o mestre Tokuda San, outros professores budistas como Alex Berzin, José Inácio Cabezon e Lya Dyskin para debaterem com professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Também trouxemos professores de outras universidades brasileiras, que vieram nos visitar especialmente para eventos organizados na universidade.
Quando Sua Santidade Dalai Lama veio ao Brasil, privilegiamos um debate com professores universitários sobre o tema da Ética. Eu vejo que Sua Santidade tem a tendência de apresentar o Budismo desse modo. Nos encontros dentro do CEBB, recebemos muitos mestres de diferentes linhagens. Presentemente, temos estudado também o Budismo proveniente de diferentes origens.
Estudamos textos Kagyü, Nyingma, textos do Zen e textos do Budismo antigo, especialmente a partir das traduções do Bhikkhu Bodhi e dos estudos que ele organizou nos livros dele. Temos essa visão e ficamos muito felizes de receber outros grupos. Favorecemos a Mandala de Tara e recebemos os líderes principais do grupo Zen Peacemakers. No prédio do CEBB, na sala de meditação, tivemos muitos retiros do Soto Zen a partir do mestre Moriyama Roshi, além da Heila Downey, que fez a ordenação de monjas na nossa sala de meditação.
Em eventos especiais do Zen, da linhagem de Hsuan Hua, estamos publicando o Surangama Sutra, de uma linhagem do Zen chinês radicada nos Estados Unidos. O próprio Henrique [Lemes] está estudando os textos do Zen, especialmente do Soto Zen e do Rinzai, estudando com grupos. Isso é superbonito e superinteressante! Recentemente, tivemos contato com a Casa do Tibete e estamos elaborando possibilidades de estabelecer uma parceria para receber Geshes e outros mestres. Recebemos o Ponlop Rinpoche e uma variedade de mestres aqui.
Essa é uma visão Rimé, uma visão aberta, onde nos sentimos enriquecidos por visões diferentes e de origens variadas, que enriquecem nossas vidas.
Quais são os principais desafios que os praticantes e instituições enfrentam ao tentar promover o não sectarismo?
O não sectarismo não é um novo sectarismo, porque ao olharmos o não sectarismo, poderíamos pensar: “Bom, esse é um movimento”. O não sectarismo é uma abertura, então é fácil, porque se as pessoas são sectárias, nós não temos nenhum problema; nós estamos aqui para ajudar a enriquecer as visões das pessoas.
Não temos propriamente um problema com isso, mas eventualmente as pessoas que são sectárias podem considerar que nós não somos eles e isso é um fato.
Isso não chega a ser um problema. Se nós temos uma visão aberta, é mais difícil que a gente venha a ter uma visão fechada. Se as pessoas exigem que a gente tenha uma visão fechada dentro dos seus grupos, não iremos pertencer. Nós não temos problema, porque podemos ter boas relações com as pessoas que têm visões específicas.
Eu vejo que as pessoas que têm visões específicas estão exercendo uma identidade importante dentro dessas instituições, mas elas mesmas têm visões amplas porque todos os seres têm a natureza de Buda. Todos nós podemos nos entender uns aos outros.
Lama, qual mensagem o senhor gostaria de deixar para aqueles que estão explorando o Budismo e para as comunidades que buscam praticar o não sectarismo?
Eu não colocaria o não sectarismo como se fosse uma nova abordagem. Eu diria que a linguagem correta seria praticar de modo não sectário. Quando falamos em não sectarismo, parece que há um movimento ou algo específico. No entanto, o que é novo é praticar o que vivemos de uma maneira não sectária. Trata-se de uma abordagem não sectária, mais do que um movimento que promove uma ideia de não sectarismo. É uma abordagem, é uma visão mais ampla.
A visão não sectária é inspirada pela Sabedoria do Espelho, que é capaz de entender os outros dentro dos seus próprios mundos. Ela não é contra os outros que estão em seus mundos, mas a favor deles. Assim, podemos ampliar nossas visões. Também representa a Sabedoria da Igualdade, pois nos sentimos representados dentro das múltiplas visões.
É muito útil e interessante. Então, o que podemos fazer para ajudar as pessoas que aspiram a operar de uma maneira mais ampla? Acredito que o centro disso está em sempre ampliar nossa prática. Ampliar o nosso refúgio no Buda, no Darma e na Sanga. Entender melhor o que é o refúgio e a nossa prática. Aspirar que a nossa prática seja útil e benéfica para os outros seres. Essa aspiração naturalmente resulta na Sabedoria do Espelho.
Quando tentamos beneficiar os seres, precisamos entendê-los. Se não entendermos os seres, logo descobriremos que não temos a capacidade de ajudá-los. Ao tentar expandir nossa capacidade de ajudar, estamos ampliando a Sabedoria do Espelho. Ou seja, estamos integrando e entendendo a visão das pessoas e incorporando essa visão na nossa própria. Quando entendemos e apreciamos as qualidades, também conseguimos compreender os obstáculos. Essa compreensão nos permite ajudar de alguma forma.
Ajudar com o Darma e trazer o Darma como uma forma de benefício é a Sabedoria do Espelho. De certo modo, é a abordagem que integra diferentes visões, classificando e ajudando os seres a entender. Isso ajuda a entender a própria abordagem de uma forma mais ampla.
O Buda ajuda as pessoas dessa forma. Ele encontra aqueles que estão fazendo ações negativas e explica como essas ações resultarão em situações difíceis. Mas não diz simplesmente para não fazer. Ele aponta que isso não é interessante. As pessoas vão entendendo e ampliando sua visão, passando para outras visões.
O Buda acolhe os seres dos infernos, os seres dos mundos famintos, os animais, o mundo humano, os semideuses e os deuses. Ele explica como cada um desses ambientes funciona, os problemas e obstáculos que ocorrem e como superá-los.
Essa é uma posição muito compassiva: integrar, refletir e ajudar os outros a ampliar suas próprias visões. Em relação ao Darma, observamos os pressupostos, crenças, habilidades, métodos e resultados das práticas, assim como onde as práticas apresentam obstáculos.
O Buda descreve seu próprio caminho, como entrou em cada um dos mundos e seções desses mundos, a exemplo do mundo da forma e do mundo da não forma. Ele descreve o que ocorria em sua mente, como viu as situações, as dificuldades que encontrou e como as superou. Isso é interessante, pois o Buda fornece uma cartografia das possibilidades da consciência.
Essa abordagem não é uma rejeição, mas uma clarificação dos estados mentais e das possibilidades de manifestação da liberdade natural da mente dos seres. Acredito que o método de apreciar, olhar, entender e aprofundar, sem julgar ou condenar, mas integrando comparativamente outras possibilidades, é a melhor forma de ajudar as pessoas a manifestar sua própria prática dentro de uma visão não sectária.
Minha proposta não seria um movimento ou um novo formato, mas observar o movimento de ampliação das visões como a base do que poderíamos chamar de abordagem não sectária. É uma ampliação natural da visão.
É como se fosse necessário uma espécie de não adesão a um caminho, a um método e isso pode deixar as coisas meio complicadas…
Eu acho que tem que ser a partir de uma perspectiva mais ampla. É mais ou menos assim: eu sou fisioterapeuta, então esquecemos a Medicina; eu sou ortopedista, sou médico do coração, cardiologista… e a pessoa pegar isso como se fosse tudo. Não é o caso. Precisamos olhar de uma forma ampla. Eles vão ficar mais eficientes, porque eles estão trabalhando de modo integrado. É um enriquecimento, na verdade. Eu vejo que é assim.
Nós promovermos grupos ou promovermos a liberação das pessoas? É uma diferença. Isso é legal. É como se a abordagem não sectária estivesse buscando a liberação das pessoas, independente da promoção e sustentação dos grupos. Mas ela não se opõe à sustentação dos grupos. É preciso entender que a sustentação dos grupos não necessariamente está voltada a promover a liberação e a redução do sofrimento.
Às vezes, fica misturado com o próprio sofrimento. O sofrimento no sentido amplo, é avidya. Se eu estou fixado em alguma coisa, quando nós nos movemos para a liberação das pessoas, não estamos fixados em alguma coisa. Nós estamos ajudando as pessoas a abandonar as fixações. A gente pode se enganar, pode tomar o instrumento como objetivo.
Eu acho que se colocarmos o Buda como campeão do não sectarismo, aquele que venceu tudo e, portanto, o mais não sectário, o verdadeiro movimento não sectário, o melhor dos nossos não sectários, não há nenhum outro não sectário que possa disputar com o não sectarismo do Buda. Aí estamos liquidados. Enfim, isso é um problema de fato. Mas acho interessante esse aspecto de colocar o não sectarismo no fim. Ele surge como a visão que o Buda vai expressar como extinção, porque a extinção da identidade é a extinção do sectarismo também. No entanto, essa extinção não é o fim. É uma extinção que permite ver a não morte, ou seja, aquilo que não é construído. Todo o processo de criação sectária é uma criação que sobrevive por um tempo e depois desaparece. Acho que essa é uma ligação dessa reflexão com o tema do próprio Darma.
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1 Comentário
Excelente! Ter uma visão compassiva, acolher as diferentes visões será um grande passo que contribuirá para o caminho da evolução de todos os seres…