No terceiro texto da série Teia da Vida, o monge Emersom Konchog nos mostra como podemos curar a crise ambiental por meio do aprofundamento da lucidez
A atual emergência ambiental está ajudando a relembrar algo tão óbvio que perdemos de vista: nós somos a natureza. Como essa crise ameaça a própria continuidade de nossa civilização, fica difícil não enxergar que ao destruir nosso ambiente estamos nos autodestruindo. Há aí uma lição valiosa: a ideia de que compartilhamos uma identidade mais ampla se torna menos teórica e muito mais palpável. E essa sabedoria além do eu não é necessariamente espiritual, o que amplia seu alcance e benefícios.
Se não estiver familiarizado com o perigo da atual emergência climática e ecológica, o texto anterior desta série contém diversos dados e referências externas. Vale lembrar que a COVID-19 também é uma consequência do intenso desequilíbrio natural em que vivemos. Apesar da gravidade imensa dessa pandemia, 7 milhões de pessoas morrem de doenças relacionadas à poluição atmosférica por ano — quase o triplo do total de mortos por COVID (no final de fevereiro). Apenas em 2018, houve 8,7 milhões de mortes ligadas à poluição da queima de combustíveis fósseis, que são responsáveis não apenas pela emergência climática, sendo assim também “assassinos invisíveis” em massa.
A atual crise ambiental é o maior desafio que enfrentamos como espécie e já está causando destruição massiva, não é algo só para o futuro. A ideia deste texto não é considerar que, de alguma forma, isso seria bom “pois nos fará evoluir”, “é um mal que vem para bem” etc. Muito pelo contrário: somos nós que estamos causando isso, e é algo extremamente maléfico não apenas para nós, mas para a vida em geral.
Todos esses desastres também acabam expondo a insanidade de nossas visões de mundo, como sociedade e indivíduos. Por exemplo: a ideia de que seríamos donos da natureza, podendo explorá-la à vontade. Implícita aí está a estranha noção de que estaríamos separadas(os) do mundo natural, como se ele estivesse lá fora e nós, aqui.
Aprendemos nas aulas de biologia do ensino médio sobre a teoria dos ecossistemas: nenhum ser vivo existe de modo isolado e independente, cada um afeta a todos ao redor. E, no entanto, esse conhecimento elementar não está integrado ao modo como agimos no mundo. Repensar isso não é apenas uma questão ligada à economia ou ao nosso padrão de produção e consumo.
O que realmente significa sermos interdependentes com o mundo natural?
A interdependência é uma questão central na filosofia budista sobre a “vacuidade”, mas na verdade valores espirituais não são necessários para se compreender isso. Geralmente pensamos em nós mesmos como seres autônomos, independentes, donos de nossa vontade: “eu existo, penso e ajo por mim mesmo”. Mas se dependemos do ar, água e comida para existir, de uma linguagem e aprendizado para pensar e de uma cultura e sociedade para agir, onde está a independência? Sobra alguma essência individual em nossa vontade?
É a isso que vacuidade se refere: uma qualidade de ausência de existência independente e intrínseca. Essa qualidade é nossa natureza, assim como a de todas as outras coisas. Ser interdependente, no fundo, significa não ter existência própria. Se tudo está interligado, então a existência individual e isolada é uma ilusão. Não reconhecer isso é como separar um processo longo em diversas etapas menores, rotulá-las e realmente acreditar que esses nomes se referem a algo que existe por si só— não apenas acreditar, mas agir com base nisso. Como são ações que não se baseiam na realidade de fato, inevitavelmente os resultados não serão os esperados. Agimos com esperança de obter contentamento, mas acabamos causando desconforto e sofrimento.
Basicamente, é assim que funcionamos.
Então pode parecer que chegamos a algum lugar mais ou menos definitivo ao reconhecer essa interligação universal: “tudo é uma coisa só”. No entanto, isso é apenas outro rótulo. Tudo o quê? Se procurarmos, não há nada para onde apontar o dedo, isolar e determinar. Assim como não há eu individual, não há um coletivo. É possível sim falar em “identidade maior”, e isso acaba sendo necessário como uma etapa inicial de compreensão, mas é apenas uma figura de linguagem.
A próxima pergunta que costuma vir à mente é: “Como, apesar dessa qualidade de não existência, tudo ainda continua aparecendo?” É exatamente por causa dessa qualidade que há aparências: se as coisas realmente existissem, de modo independente e autônomo, elas não poderiam se interligar ou se transformar (para algo existir de modo absoluto, precisa ser permanente). A aparência de surgimento e fim só é possível em um contexto de ausência de existência inerente.
Na filosofia budista, neste ponto, há um alerta que vale a pena repetir, apesar de este ser um texto puramente secular: essa qualidade ilusória de todas as coisas não significa que “nada existe, tudo é irreal, posso fazer o que quiser, não há consequências”. É justamente o contrário: reconhecer a interdependência de tudo implica um cuidado profundo com todas as nossas ações, já que ficam muito óbvias as consequências dos menores atos e também a experiência subjetiva delas, que inclui dor e sofrimento.
Essa interdependência com o mundo natural, aparentemente, se refere mais ao nível de nossos corpos, ou daquilo que chamamos de “matéria”. Como fica a mente nisso tudo? A divisão entre mente e matéria existe de fato?
Como essa é uma das questões mais vastas e difíceis de todo pensamento humano, vou trazer apenas algumas reflexões ligadas ao tema deste artigo, que é nossa interdependência com a natureza.
Se somos parte da natureza e se temos uma qualidade de não existência inerente, nossa mente também é, tendo assim essa vacuidade. Mas o que é essa mente? Esse é um tópico desafiador pois não há consenso científico ou filosófico sobre o que é a consciência e o que é matéria.
Mas há algumas direções novas que alguns ramos da ciência e filosofia vêm tomando, que concordam razoavelmente com a visão interdependente do “não eu”. Por exemplo, uma das definições mais comuns para “consciência” se refere a um sujeito das experiências, um tipo de centro da mente que recebe os estímulos sensoriais e os vivencia subjetivamente, alguém que pensa os pensamentos.
Para a neurociência, já é consenso que esse tipo de sujeito não existe. Isso porque não há no cérebro nenhuma central de controle, nenhum centro experienciador. E entre os processos eletroquímicos cerebrais também nunca foi observado nada que se assemelhe a essa consciência central. A sensação subjetiva de sermos uma entidade independente, que vivencia o mundo e pensa, do ponto de vista da neurociência, é apenas isso: uma sensação subjetiva, ou seja, é apenas outro processo cerebral.
Um exemplo: em estudos que mediram o intervalo entre um processo de decisão no cérebro e a sensação subjetiva de decidir, foi demonstrado que quando pensamos “estou decidindo agora isso…”, a decisão na verdade já foi tomada automaticamente pelo cérebro, entre 1,5 e 10 segundos antes. Ou seja, não temos consciência das decisões tomadas, apenas temos a impressão subjetiva (ilusória) de estar decidindo algo.
Há diversos outros estudos similares que apontam para a qualidade ilusória da sensação de sermos um “eu” (referências no final do texto). A principal hipótese científica sobre porque isso ocorre diz que a ideia de sermos seres individuais e independentes possibilita diversos comportamentos essenciais para a sobrevivência. Por exemplo, poder distinguir entre um movimento de nosso corpo e movimentos no mundo externo (“sou eu que estou me movendo ou tem algo grande se movendo aqui do meu lado?”), ou a capacidade de nos projetarmos mentalmente como um ser autônomo para planejar estratégias sociais — tais capacidades seriam impossíveis sem a noção de um eu separado. Não é coincidência que todos os animais que possuem um senso de eu individual (conforme um teste científico específico) estão entre as espécies com mais interação social.
Assim, a ideia do “não eu” — ou o “eu” como mera fabricação mental — já está estabelecida cientificamente. Então, poderia ser perguntado: “se não somos nossa consciência, só podemos ser o cérebro (ou seja, o corpo) certo?” Como mencionado anteriormente, a interdependência de todas as coisas, incluindo nossos corpos, demonstra como esse conceito de identidade corporal é fictício no nível absoluto, apesar de ter sua utilidade relativa no dia a dia. Por exemplo, qual é o limite dos nossos corpos? O ar que respiramos faz parte dele? E a água que bebemos? Alimentos, solo, cuidado materno, gravidade, luz solar… Estamos imersos em uma vasta rede que sustenta o corpo, uma rede em que basta um elemento estar ausente para o corpo deixar de existir. Sua existência independente é ilusória.
Se uma consciência individual, um eu mental, for apenas uma função evolutiva do cérebro, haveria uma mente maior, uma base mais profunda da qual percebemos apenas instâncias individuais?
Apesar da inclinação dessa questão em direção a dimensões espirituais, se analisarmos com cuidado, não é preciso entrar em metafísica. Se a hipótese de uma consciência individual foi descartada, a que nos referimos quando dizemos “mente”?
Nesse caso, se refere àquela qualidade de sentir, perceber, saber. É algo que não tem dimensões materiais: não tem cor, forma ou localização. Essa lucidez básica não necessariamente precisa vir com uma ideia de “eu” anexada. Não tem personalidade nem é uma entidade, sendo mais como um tipo de brilho — não no aspecto físico, mas no sentido de que aonde a “luz” apontar, aparece uma experiência. Certamente temos isso. E mesmo pacientes com um distúrbio raro em que eles não formam nenhum conceito de “eu” também têm isso, do contrário não poderiam ter nenhuma experiência sensorial ou mental.
Animais teriam isso também? Talvez uma pergunta melhor seja: como seria possível animais não terem essa qualidade de sentir e perceber? Vale lembrar que não estou falando aqui de “consciência”, mas de um aspecto mais básico da mente, o aspecto que possibilita perceber e sentir.
E as plantas?
Nos últimos 20 anos, cada vez mais estudos vêm sugerindo que plantas têm certa inteligência. Não como a de animais, mas uma capacidade num ritmo muito mais lento para interagir entre si, se ajudar e sentir o mundo ao redor, incluindo conforto e desconforto. Por exemplo, padrões no movimento da seiva se alteram drasticamente em situações de lesão, do mesmo modo como isso ocorre em animais.
Se isso realmente for o caso, e plantas tiverem uma maneira de sentir, fica difícil descartar uma mente vegetal. É isso o que afirma uma antiga corrente filosófica, defendida por diversos pensadores brilhantes ao longo da história, que voltou a ganhar atenção nos últimos anos devido ao debate sobre a natureza da consciência. Trata-se do pan-psiquismo. Nessa corrente de pensamento, o problema insolúvel de como matéria e mente podem se relacionar (já que suas naturezas são incompatíveis) não existe: consciência e matéria seriam apenas dois aspectos de uma mesma realidade, cuja natureza é essencial e primordialmente mental.
Nessa hipótese, a experiência mental estaria distribuída praticamente entre tudo que existe, incluindo plantas e até subpartículas — isso não significa que elas pensam, mas sim que teriam um nível mínimo de experiência, de processar informações ao redor, ou “sentir”.
Não é exatamente a mesma coisa que o idealismo, que costuma enfatizar a mente mais individual como sendo a origem da realidade. No pan-psiquismo, uma dimensão mental é inseparável de toda realidade. Nesse caso, toda a natureza compartilharia uma realidade mental, em diferentes níveis.
Natureza ou vida é outra coisa difícil de definir, mesmo para a ciência. Mas dentro da hipótese pan-psiquista, que tem muito em comum com o budismo Mahayana e outras filosofias orientais, conjuntos de organismos vivos, uns dentro dos outros, compartilham pelo menos o nível mais básico do processo de sentir e perceber. Como a consciência, a vida também não é uma entidade, mas um processo.
Inspirado pelos insights proporcionados pela física quântica, que questionam as definições tradicionais sobre a matéria, já vem sendo ressuscitado, há várias décadas, também em meios científicos o idealismo filosófico, em que a consciência é o aspecto-chave para entendermos a realidade. Nessa linha, por exemplo, está a série de livros voltada para o público em geral sobre biocentrismo, do biólogo Robert Lanza.
Tanto no pan-psiquismo quanto no idealismo, o velho dilema do dualismo mente-matéria — sobre como seria possível a emergência da consciência a partir do cérebro — nem existe, já que consciência acaba se tornando sinônimo de realidade.
As descobertas científicas sobre a ausência de um “eu” e as visões filosóficas sobre a onipresença da consciência, por si mesmas, em um nível apenas intelectual, não trazem grandes mudanças. Mas como se tratam de visões sobre níveis mais profundos da realidade, caso isso seja consistentemente vivenciado — e diversas tradições contemplativas mostram que isso é plenamente possível — há um potencial de nos abrirmos não apenas para uma realidade mais ampla, com menos egoísmo e menos sofrimento para nós e os outros, mas também para uma nova ética.
A capacidade de perceber e viver nossa interexistência com todos as outras pessoas e seres vivos implica uma compaixão espontânea, profunda e universal em todas as direções.
Isso pode soar espiritual ou até sobrenatural, mas não é. Compaixão e bondade amorosa, em um nível mais genuíno, surgem exatamente daí: de nos reconhecermos em tudo e em todos, especialmente em tudo o que vive.
Assim, a sabedoria além do eu pode vir a se somar às qualidades a serem cultivadas em uma ética secular, que por não depender de nenhuma tradição espiritual, tem muito mais chance de se disseminar como uma verdadeira cultura universal de bondade e altruísmo, a mudança interna de que tanto precisamos.
E isso pode ter uma papel-chave para a possibilidade de efetivamente evitarmos a autodestruição da civilização humana como a conhecemos. Curiosamente, o remédio em potencial vem embutido nos próprios sintomas da doença.
Livros sobre a ciência do “não eu”:
Ego Tunnel, Thomas Metzinger
The Self-Illusion, Bruce Hood
Pan-psiquismo:
Conscious: A Brief Guide to the Fundamental Mystery of the Mind, Annaka Harris
For Love of Matter, Freya Mathews
Idealismo:
Biocentrism, Robert Lanza
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