Monge Emersom Karma Kontchog fala sobre o darma na vida cotidiana, na edição 34 da Revista Bodisatva
Emersom Karma Konchog é monge budista brasileiro e ex-jornalista. Entre 2013 e 2020, estudou língua tibetana e filosofia budista na Índia e Nepal, e completou o tradicional retiro de três anos Karma Kagyu nos EUA. Além do Darma e da propagação secular de valores humanos, ajuda na causa ambiental. A Bodisatva convidou o monge Emerson para participar da edição 34 da Bodisatva e, abaixo, você confere o artigo que ele escreveu para a revista.
Como o cuidado com o meio ambiente é uma consequência natural do Buda Dharma, é difícil encontrar algum praticante que desconsidere essa questão. No entanto, essa conexão pode ser muito mais profunda do que uma mera apreciação, se desdobrando em benefícios tanto individuais quanto coletivos.
Pessoalmente, comecei a me envolver mais profundamente com o budismo e com o que chamamos de “natureza” (não é estranho que usemos essa palavra assim, como se fosse algo lá fora?) simultaneamente, quando iniciei a prática formal do budismo tibetano e também me dei conta da gravidade extrema de nossa crise ambiental, há 16 anos. Isso coincidiu também com o momento em que passei de agnóstico (ou quase ateu) para “crente”, no sentido de que reconheci como crucial a dimensão mais espiritual da vida — aquela que se contrapõe aos objetivos materiais mais imediatos e egoístas.
Não sei dizer se o gatilho foi a natureza ou a espiritualidade. Vieram juntas, basicamente, após um tipo de abertura ou melhor entendimento e visão. Desde a adolescência, sentia uma atração por isso, um chamado, mas ia negligenciando, até que não foi mais possível. Então, decidi me dedicar ao caminho espiritual com o qual me identificava — até então, apenas como filosofia – já há muitos anos: o budismo.
Para mim, a prática do Dharma sempre proporcionou diversos insights sobre a realidade mais profunda da vida ou natureza, e a contemplação do esplendor natural também enriqueceu muito o cultivo da visão budista, já que esses dois contextos implicam uma visão interconectada, sem separações naquilo que chamamos de realidade.
Por exemplo, visualizar a interdependência que sustenta ecossistemas pode expandir bastante a prática de incorporarmos a visão budista no dia-a-dia. Podemos estudar, refletir e meditar sobre os ensinamentos sobre interdependência e vacuidade, mas não é incomum esse entendimento se tornar algo árido, que não se reflete no modo como vivemos e interagimos com outras pessoas ou formas de vida.
Mas vivenciar essa realidade diretamente, mesmo por um curto período — por exemplo em contato íntimo e completamente dependente de elementos naturais — costuma trazer uma compreensão mais vívida e direta sobre esta teia interligada de fenômenos, tendo consequências no modo como nos comportamos.
Um exemplo a considerar: o plasma de nosso sangue é salgado por causa do mar, a origem da biosfera terrestre. Assim, o mar pulsa e flui em nosso corpo da mesma forma como sua água salgada constituiu a substância dos primeiros organismos vivos, que dispararam um processo de divisão celular que, por 3,5 bilhões de anos, nunca foi interrompido, e que bem aqui e agora pode se desdobrar em pensamentos, palavras e frases.
Ou então, bem à nossa frente, há todo esse mundo multicolorido, que só pode aparecer assim devido à evolução combinada de árvores e os animais que vivem de seus frutos, pois a percepção das cores das frutas, em contraste com o fundo verde, foi uma das vantagens evolutivas que herdamos de outros seres, e que hoje permite ver como vemos.
Se não somos donos de nossas faculdades de percepção, de nossa capacidade imaginativa ou da própria linguagem em que ela se expressa, se não produzimos aquilo de que dependemos para viver — como ar, luz solar, água, comida etc — cadê a independência de nossa identidade? Onde termina a fronteira que nos separaria de tudo mais? Um organismo assim dependente de tantos fatores tem existência própria?
Contemplando assim nossa identidade natural maior, chegamos ao mesmo insight que Nagarjuna expressou, há muitos séculos, nos Versos-raiz Madhyamaka:
Não há nenhum fenômeno que não se origine dependentemente,
portanto, não há nenhum fenômeno que não seja vazio.
Já que nós mesmos somos uma expressão interligada da vida, não podemos dizer que temos independência ou singularidade. Somos compostos de múltiplos elementos, sobre os quais não temos controle — basta um deles ser interrompido, como ar ou alimento, para deixarmos de existir. Tem sentido chamar de “eu” algo que se ramifica em dependências virtualmente infinitas em todas as direções?
Aquilo que somos é muito mais profundo e vasto do que imaginamos. Não é por acaso que a principal escritura budista sobre a natureza buda seja chamada de Sublime Contínuo (sânscrito: uttaratantra). No budismo Mahayana Yogatchara e no Vajrayana, a natureza buda é esse contínuo, onipresente, perfeito, jamais sendo interrompido. “Contínuo” também é o significado de “tantra”, pois no Vajrayana, essa natureza é o coração da prática.
Fazendo um paralelo em contexto laico, essa continuidade é a própria vida. E poderia ser dito que ela vai ainda além. Quando “surgiu” a vida, como ocorreu a transição de matéria inanimada para orgânica? Esse enigma parece insolúvel porque implica uma transição, ou ruptura de continuidade. Mas a matéria “inanimada” tem aspectos de auto-organização como os que definem a vida. Por exemplo, elementos dentro de um elétron reagem conforme estímulos exteriores. Isso poderia ser interpretado como uma forma extremamente básica de cognição, ou seja, a capacidade de “sentir” o exterior (se algo reage ou sente um outro elemento, ele se torna o sujeito de uma experiência), conforme uma das correntes da tradição filosófica do pampsiquismo — que inclui luminares como Platão, Spinoza e Bertrand Russel.
Assim, a vida seria uma forma mais complexa da auto-organização “cognitiva” onipresente na matéria. Aí, não há quebra de continuidade e, no final, o que somos é uma expressão da própria totalidade da realidade ou existência, em continuidade inseparável.
A contemplação desse tipo de interdependência natural pode enriquecer a prática do Dharma, pois sua mensagem básica também é que há uma realidade maior e perfeita, onde a existência individual é relativa.
Hoje, tragicamente, não é preciso fazer muito esforço para reconhecer nossa identidade maior. Ela está batendo à nossa porta, na forma de eventos climáticos extremos, da contaminação daquilo que ingerimos ou respiramos, da morte dos ecossistemas que dependemos para existir etc. A destruição da natureza é a nossa própria.
No entanto, ao reconhecer isso e nos abrir para “a natureza chorando dentro de nós” — como dizia o mestre Thich Nhat Hanh — também surge uma reconexão valiosa. Esta própria crise é um chamado de despertar individual e coletivo. O reconhecimento agudo da doença de nossa relação destrutiva com o mundo natural, que chega a romper as barreiras que erguemos em torno de nós, também traz uma abertura de espírito revigorante.
Do mesmo modo como o mutualismo e dependência observados na natureza podem informar a contemplação da vacuidade, o mesmo vale para a compaixão. Termos a capacidade de reconhecer nossa identidade maior na biosfera do planeta ativa uma apreciação intensa e um cuidado espontâneo, sem esforço; como dizia Shantideva há mais de 1.200 anos, em Engajamento na Ação Bodisatva:
Assim como aceitamos que as mãos
e outras partes são membros do corpo,
por que não aceitar que os seres
são membros do mundo vivo?Assim como a habituação trouxe a ideia
de que sou este corpo sem eu, por que
— com o hábito — não surgiria a ideia
de que sou os outros seres sencientes?
É essa própria compaixão que repousa na essência da realização da qualidade vazia da individualidade dos fenômenos, incluindo a nós. Ao realizar que não existimos da forma como imaginávamos — como seres autônomos, independentes, singulares e (relativamente) permanentes — ainda há o “sublime contínuo” de uma natureza perfeita, e nada mais. Assim, ao olhar outros seres, podemos trazer esse entendimento, nem que seja apenas conceitual. Somos todas e todos meras expressões dessa natureza. Vale a pena cultivar alguma coisa que não seja uma devoção infinita, um amor extremamente cuidadoso?
Assim, o urgente trabalho de regeneração de nossa existência como pessoas e sociedades pode surgir como uma expressão natural de nossa essência verdadeira, da mesma maneira como às vezes ajudamos quem precisa, de modo completamente desinibido e natural, sem esperar nada, apenas dando livre passagem para a atividade da mente do despertar (boditchita). Como diz Shantideva, novamente:
Do mesmo modo que, em meio às nuvens escuras da noite,
um relâmpago por um instante torna tudo claramente visível,
pelo poder dos budas, em circunstâncias raras,
intenções meritórias às vezes surgem no mundo.
Devido à gravidade da situação onde chegamos, a regeneração necessária não se refere mais a simplesmente mudanças individuais de hábitos. Precisaremos nos unir como sociedade e exigir as medidas governamentais e corporativas que podem mitigar a destruição ainda maior que se encaminha. Como praticantes do Dharma podemos também demonstrar o que é viver e agir de acordo com os valores necessários — como sabedoria e compaixão — para nos curarmos, alinhando-nos com a sabedoria maior da própria vida ou realidade.
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