Lama Samten explica como surgem todos os Budas e fala sobre a diferença entre compaixão comum e absoluta
No último dia do retiro A prática da visão de Tathagatagarbha, oferecido em fevereiro deste ano, Lama Padma Samten apresentou — numa fala tão poética quanto profunda — a genealogia de todos os budas desde o Buda Primordial. Através de incontáveis e surpreendentes meios hábeis, eles se manifestam dentro do mundo condicionado sem nunca se separar desse coração todo-pervasivo, que é a natureza última sempre presente.
O Lama também explicou a diferença entre compaixão comum e compaixão absoluta, trazendo exemplos que dialogam diretamente com nossa vida cotidiana.
A perspectiva de Dudjom Rinpoche é a perspectiva dos ensinamentos da Grande Perfeição — os ensinamentos de Garab Dorje, que é uma emanação de Vajrasattva, que, por sua vez, é uma emanação do Buda Primordial, que é o gerador de todos os Budas. É como se todos os Budas tivessem feito Guru Yoga para o Buda Primordial. Ele é a união de todos os refúgios. O Buda Primordial, essencialmente, é o coração de cada um dos Budas que surgem em cada tempo.
É melhor não falarmos: “Mas todos nós somos Budas!”, as pessoas podem achar um pouco pretensioso — porque, enfim, nós somos Budas que se perderam e ainda não se acharam. É como um mago que é tão malandro, mas tão malandro, que se enrola e fica preso à própria magia. Nós estamos nessa situação: criamos mundos e ficamos presos aos mundos que criamos. Criamos identidades e ficamos presos às identidades. Dá um trabalhão! No fim, não sabemos mais como escapar disso: saímos de uma identidade para outra, de um mundo para o outro, e ficamos presos. Em meio a isso, não reconhecemos o aspecto último, que é, essencialmente, o Buda Primordial.
Como essa é uma situação bastante antiga, o Buda Primordial, desde uma visão superampla, gera um nível de compaixão e interesse pelos seres — seres que são ele mesmo, mas que estão perdidos no meio da magia e da criação. Assim, ele cria outras emanações que conseguem chegar mais perto dos seres e ajudá-los. Surge, por exemplo, o Buda Amitabha. Eu sempre gosto dessa parte de Amitabha, pois, essencialmente, nós somos naturalmente inseparáveis do Buda Primordial. Não temos uma existência real, somos como uma emanação, somos uma criação. É como um jogador de futebol. Ele surge como jogador de futebol e pode pensar: “Bom, mas eu não sou isso”. Contudo, quando está dentro da cancha, ele é aquilo, está jogando ali, tem ali o seu cotidiano, ele funciona daquele modo. Ainda assim, ele pode dizer: “Um dia eu vou fazer outra coisa”. Isso é a percepção de que ele não é aquilo, de que aquilo é uma emanação. Mas aquela identidade funciona, é superoperacional. Se um dia ele resolver que não é mais aquilo, vai ter problemas. Portanto, as nossas identidades são tais que não conseguimos estalar os dedos e dizer: “Agora eu tô fora!”. Elas nos prendem, nos prendem a mundos específicos, ao mesmo tempo em que surgem junto com os mundos.
Desse modo, surge Amitabha, representado na posição parada, com as mãos posicionadas no mudra da equanimidade. Parado. Se quisermos destruir as identidades, há esse método fácil: é só ficar parado. Interrompemos esse conjunto de pensamentos ou todas essas operações baseadas nas identidades. Paramos assim e pronto, é simples.
Amitabha não constrói nada, ele não tem nenhuma construção, a não ser simplesmente repousar na condição natural que é incessantemente presente. É só isso.
Se interrompermos o processo discursivo, o processo da originação dependente – ou seja, da criação luminosa de novas aparências a partir de aparências anteriores já construídas, que é um processo sequencial sem fim e é a base de todo efluente –, onde é que nós estamos? Estamos diretamente num aspecto primordial, pois o aspecto primordial é não construído, ele está lá. Portanto, os ensinamentos de Amitabha não têm palavra alguma.
Naturalmente, as pessoas olham para Amitabha, pensam “então tá, tudo bem”, e simplesmente seguem com suas coisas. Aquilo não dá certo, ainda que Amitabha seja um ensinamento direto. Os tibetanos dizem que não há nenhuma diferença entre Amitabha e o Buda Primordial. É claro que todos os budas são o mesmo Buda, mas, quando se diz que não há nenhuma diferença entre o Amitabha e o Buda Primordial, é alguma coisa um pouco mais próxima. Ou seja, Amitabha não constrói nada, ele não tem nenhuma construção, a não ser simplesmente repousar na condição natural que é incessantemente presente. É só isso.
Assim, Amitabha, completamente maravilhoso, dá uma olhada e vê que não está adiantando. Então, ele emana Chenrezig como uma manifestação compassiva que aparece diante dos seres e se comunica dentro do mundo deles. Logo, ele é aquele que ouve os sons do mundo. Avalokiteshvara, em sânscrito, significa isso: aquele que ouve os sons do mundo. Chenrezig é o nome em tibetano.
Chenrezig vai se manifestar como todos os mestres, todos os professores, todos os Bodhisattvas em todos os níveis, todos os seres que conseguem de algum modo ajudar uns aos outros através de uma motivação que não está dentro do ambiente do jogo propriamente.
Ele não está parado, ele faz contato com a identidade ilusória dentro daquele mundo ilusório. Ele se apresenta como um ser ilusório dentro daquele mundo. Só que ele não diz: “Eu sou um ser ilusório”. Ele chega com a mesma cara que os outros seres vêm. Nós poderíamos pensar que isso é uma degradação, que Amitabha é melhor. Por outro lado, também podemos pensar que isso é uma super-habilidade do Buda: manifestar-se dentro do mundo condicionado, dentro da multiplicidade de mundos condicionados, para produzir benefício para os seres.
Naturalmente, ele está produzindo benefícios dentro da perspectiva da grande compaixão. Ele vê aqueles seres como seres construídos, ilusórios, delusivos, mas que têm a natureza búdica. Desse modo, eles são capazes de construir mundos e transmigrar, e então construir outros mundos e outras identidades, e assim eles vão se deslocando. Mas eles não têm realidade nem nos mundos, nem nas identidades. Eles têm realidade na capacidade luminosa de construção de mundos e realidades, que é a nossa própria situação. Nós estamos nessa situação. Não só nós, mas todos os seres.
Chenrezig sabe disso. Ele chega àqueles mundos para falar para aqueles seres e produzir essa clareza, de tal modo que aqueles seres delusivos reconheçam o que não é delusivo dentro deles e ultrapassem os sofrimentos, as aflições e as fixações dentro de perspectivas que são construídas, limitadas. Ainda assim, Chenrezig reconhece o fato de que os sofrimentos dentro desses mundos também são ilusórios, também são delusivos. Não só as alegrias, também os sofrimentos, as identidades e a aparência do mundo são todos delusivos. Ainda que pareça muito real, aquilo é delusivo. Esse ponto é também superimportante.
Consequentemente, Chenrezig vai se manifestar como todos os mestres, todos os professores, todos os Bodhisattvas em todos os níveis, todos os seres que conseguem de algum modo ajudar uns aos outros através de uma motivação que não está dentro do ambiente do jogo propriamente. Se voltarmos para dentro de um jogo de tabuleiro, de repente vem uma mãe e diz: “Olha, meu filho, toma esta batida aqui de mamão com leite, ou iogurte com açúcar mascavo”. Isso nada tem a ver com o jogo que está decorrendo dentro do tabuleiro. A pessoa é capaz de entrar no mundo do outro e dar uma ajudinha. Ela não pertence àquele mundo, mas entende o que está acontecendo ali dentro. Assim é o Bodhisattva: parece que ele está no mundo do outro, mas ele está livre, porque olha de forma mais ampla. No entanto, ele é capaz de entrar e falar numa linguagem que faz sentido para o outro, o outro se beneficia e aquilo vai andando. Os Bodhisattvas têm essa capacidade.
Os Bodhisattvas também inspiram os seres, e disso surge a compaixão comum. Há a grande compaixão e a compaixão comum – ambas se fundem. Os Bodhisattvas podem praticar a grande compaixão ou a compaixão comum. Na grande compaixão há a compreensão do fato de que os seres são delusivos e construídos luminosamente, as situações são construídas como os tabuleiros, as identidades são construídas como os jogadores dentro da cancha ou do tabuleiro. Da mesma forma, surgem todas as emoções: as felicidades e infelicidades, as vitórias e derrotas. Tudo surge ali dentro, assim é a vida inteira. Os seres surgem com essas identidades e estão presos dentro de mundos que são como tabuleiros. Esses mundos permitem uma inteligência coletiva, eles têm carmas coletivos. Os seres, por conseguinte, se encontram dentro de ambientes e operam delusivamente, como se aquilo fosse totalmente real.
Esse processo decorre e os Bodhisattvas reconhecem que aqueles seres não têm chance alguma, a não ser passar por felicidade e sofrimento, eventualmente serem empurrados para os infernos, para os seres famintos, para os vários ambientes onde os seres podem surgir. O Buda descreve 31 reinos de seres de acordo com a marca mental vigente que fecha a experiência de mundo. No entanto, ele também descreve que a mente que produz isso é livre, ela pode entrar e sair de cada um desses mundos. Isso é Chenrezig. Ele se move no meio disso.
Portanto, tem os Budas, os Bodhisattvas e os seres nos quais também começa a despertar a compaixão, mas que ainda não têm uma compreensão ampla dessa situação. A compaixão que eles exercem, contudo, é sempre muito profunda, pois é uma forma de ação dentro da bolha que não tem a ótica da bolha, não está no formato da bolha. Por exemplo, as pessoas estão indo para a morte no campo de concentração e surge alguém que se compadece e dá um jeito de tirar alguém dali. Isso não vai resolver: a situação é a mesma, tudo é igual. Mas, ao mesmo tempo, não é igual, pois alguém fez alguma coisa que está fora daquele ambiente. Outro exemplo é quando, na decisão do campeonato, o goleiro tem um surto de compaixão: “Eu acho que o outro time merece ganhar, afinal, faz tanto tempo…”. De vez em quando, alguns zagueiros e goleiros têm um surto de compaixão [risos]. Nós olhamos e nos perguntamos: “Como ele errou aquilo?” Foi um surto de compaixão! Houve ali uma expansão de consciência! [risos] Não quero ser rigoroso, mas eu demitiria o cara. Compaixão em jogo de futebol não faz qualquer sentido! Da mesma forma, vamos supor que aparecesse um gato aqui [no centro de retiro] e a pessoa resolvesse cuidar dele, sendo que a regra é não ter gato aqui… A compaixão é uma fraqueza, na verdade [risos]!
A compaixão parece estranha, pois não pertence propriamente ao mundo. Às vezes, as pessoas se dedicam a provar que a compaixão está errada, que tem de fazer outro tipo de coisa. Elas raciocinam: “De que adianta a compaixão? O gato vai morrer em algum lugar”. Ou: “De que adianta compaixão com a pessoa moribunda, se ela vai morrer? Compaixão para quê? Para dizer que o mundo é uma coisa boa? O mundo não é uma boa coisa, o mundo é horrível!” Sempre tem alguém que opera segundo a ótica do reino dos infernos. Outros vão operar sob a ótica do reino dos seres famintos, dos animais, dos humanos, dos deuses, dos semideuses, etc. Cada um vai olhar sob a ótica correspondente ao modo como está vivendo no mundo, ao modo como ele(a) vê aquilo.
Consequentemente, é muito extraordinário que brote a compaixão comum. Por exemplo, os irmãos têm escalas para lavar a louça para a mãe. Daí um dia, por alguma razão, o irmão diz para a irmã: “Eu lavo por ti, hoje tu fica livre!” Isso é uma coisa impensável, algo que não é possível, que não pertence ao mundo! Alguém vai ficar preocupado e pensar: “Ele está com alguma coisa, tem algum desequilíbrio, algo aconteceu!” [risos]
Igualmente, parece que a justiça surge como se fosse um jogo. É como se ela fosse o oposto da compaixão, pois a justiça vem para estabelecer uma ordem. Essa ordem, no entanto, pode não ser compassiva. Sempre pensamos: “Bom, aquela pessoa foi condenada a tanto tempo, mas será que se ela fizesse assim [o Lama estala os dedos], ela não mudaria e poderia passar a fazer algo diferente?” Nós vemos que é possível. A compaixão fica adivinhando, é algo que está sempre roendo a ordem estabelecida, ela fica incomodando. Essa é a compaixão comum.
A compaixão comum, portanto, é um dó, um sentimento de pena. Então ficamos questionando e sentindo que deveríamos fazer uma coisa melhor, aliviar o sofrimento. Por outro lado, sempre vem alguém e diz: “Não adianta aliviar o sofrimento, porque o sofrimento é a face do mundo”. Ainda assim, nós aliviamos o sofrimento, e isso é bonito.
Por vezes, a compaixão comum está representada por deidades de grande poder pisando sobre a ignorância. A ignorância aparece, por exemplo, em um casal se abraçando. Enquanto um pé amassa aquilo, tem dois seres pequenininhos tentando erguê-lo um pouco para que não aperte tanto. Eu acho tão bonito, porque o pé que pisa é o pé de Manjushri – ele está vendo a coisa como ela é. Mas tem uma compaixãozinha levantando um pouco aquele pé para não apertar demais. Acho isso superlindo.
Então, mesmo dentro da perfeição da ação da visão, que às vezes é cortante, dolorida, tem uma compaixão que desafia aquilo e traz um alívio perante as dificuldades. Chenrezig se move nesse âmbito da compaixão estrutural, que está ligada a Manjushri. Se não descobrirmos, por exemplo, que esse jogo de tabuleiro é totalmente inútil, que é uma construção, se seguirmos sofrendo e não ouvirmos isso, não estamos ouvindo Manjushri, que é quem clarifica. Mas, ao mesmo tempo, vem uma compaixãozinha e diz: “Tudo bem, jogue um pouco”. A compaixão comum alivia, mas não resolve.
As pessoas estão numa fila de execução e vem alguém e diz: “Alguém está precisando de água, está com sede, quer um sanduíche, está com fome? Bota um chapéu que está muito sol!” É mais ou menos isso. Ela não altera a fila de execução.
Também tem uma imagem que é assim: os seres são como o gado sendo conduzido por pastagens verdejantes, sombras aguadas, em direção ao abatedouro. Então, quando as pessoas estão dentro do mundo ilusório, por vezes são descritas como se estivessem nessa circunstância. Os pastos verdejantes, as sombras, os arroios murmurantes de água pura pelos quais o gado vai passando são uma boa coisa, mas não resolve.
A compaixão absoluta é interromper o processo de vida e morte, ultrapassar isso, esse é o ponto. Os ensinamentos que tratam da compaixão num nível absoluto são os que apontam Tathagatagarbha, por exemplo, que apontam a natureza última. Todos os ensinamentos da Grande Perfeição tratam disso. Eles estão num ponto em que a própria compaixão não é mencionada, simplesmente a lucidez é mencionada, é apontada. Essa linha de ensinamentos que brota de Vajrasattva é que vai clarificar a lucidez.
Olhar diretamente para a natureza última é o caminho para encontrar a natureza última.
Então o Buda emana, por um lado, Amitabha e os cinco Dhyani Budas, e também emana Vajrasattva. Vajrasattva emana Garab Dorje. Garab Dorje é o primeiro guru humano desses ensinamentos que apontam diretamente para a natureza última, sem nenhum ensinamento preliminar. Olhar diretamente para a natureza última é o caminho para encontrar a natureza última, não é olhar para qualquer outra coisa.
Diz-se que os ensinamentos da Grande Perfeição são falados dentro do âmbito de Akanishta, que é o reino dos seres que purificaram a aparência das formas. Eles ultrapassaram totalmente o reino do desejo, ou seja, quando olham as aparências de olhos, ouvidos, nariz, língua e tato, eles não são movidos por gostar ou não gostar, por atração ou aversão. No entanto, eles ainda veem as formas, ainda têm uma sensação de existência com relação às formas. Essa sensação de existência vai sendo purificada através dos quatro primeiros jhanas, sendo que no quarto jhana eles purificam isso a ponto de então aparecer Akanishta; surge o aspecto ilusório e não dual das aparências. O ensinamento para os seres que têm essa compreensão é diretamente o aspecto último da realidade, que é o descortinar do Buda Primordial. Ele vem para os seres que purificaram a esse nível essas experiências.
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1 Comentário
Muito lindo os ensinamentos.
Gratidão