Em prefácio a seu mais recente livro publicado no Brasil, o mestre budista Alan Wallace fala do início dos estudos científicos ocidentais sobre a mente e sobre a investigação contemplativa em práticas como shamatha e vipashyana, e de como ainda há muito a caminhar para integrar essas duas perspectivas
Em seu livro Olhando de perto: as quatro aplicações de mindfulness, que acaba de receber edição no Brasil, o mestre budista Alan Wallace nos abre a visão sobre o início dos estudos científicos sobre a mente e sobre os avanços da ciência contemplativa. O texto abaixo é o prefácio da obra, escrito pelo próprio Alan Wallace, e foi gentilmente cedido para publicação no site da Bodisatva pela editora Paz & Mente, responsável pela edição.
O estudo científico da mente e sua relação com o corpo começou há cerca de 140 anos, e, nos primeiros trinta anos, vários pioneiros da psicologia, incluindo Wilhelm Wundt, William James e Edward B. Titchener, enfatizaram a importância da introspecção – observando estados e processos mentais a partir de uma perspectiva em primeira pessoa. A princípio, essa ênfase na observação rigorosa do fenômeno em análise tem sido a marca da ciência desde a época de Galileu. Mas, enquanto todos os outros ramos das ciências naturais foram direcionados para fora na busca de entender fenômenos objetivos, físicos e quantificáveis, esse movimento inicial da psicologia estava voltado para dentro, para os fenômenos subjetivos, imateriais e qualitativos da mente.
Por um lado, essa abordagem estava alinhada com toda a história das ciências empíricas, mas, por outro, era um ponto de partida radical, pois observações introspectivas não se prestam facilmente à corroboração ou repúdio de uma terceira pessoa. Edward Titchener, que fundou e dirigiu um departamento proeminente de psicologia na Universidade de Cornell, concluiu que as principais dificuldades da introspecção são “manter atenção constante”, “evitar ideias preconcebidas” e “saber o que procurar”.
Mas havia, é claro, muitos outros desafios sem precedentes a serem enfrentados. Alguns críticos concluíram que as observações introspectivas eram instáveis, impossíveis de verificar e sujeitas à contaminação pela teoria. Outros insistiram que qualquer coisa observada introspectivamente consistia em ilusões fenomenológicas enganosas, de modo que não forneciam dados confiáveis sobre a natureza e o funcionamento da mente. Outros, ainda, objetaram que tais observações em primeira pessoa estavam sujeitas à ocultação e deturpação por processos e motivações mentais inconscientes; e outra preocupação intuitiva era que tais observações estivessem sujeitas às influências distorcidas de observação sobre os processos mentais observados.
Enquanto todos os outros ramos das ciências naturais foram direcionados para fora na busca de entender fenômenos objetivos, físicos e quantificáveis, esse movimento inicial da psicologia estava voltado para dentro, para os fenômenos subjetivos, imateriais e qualitativos da mente
Embora todas tenham sido dúvidas legítimas em relação a essa nova disciplina – que poderiam muito bem ter sido resolvidas ao longo do tempo, se tivesse sido dada a chance –, o papel da introspecção no estudo científico da mente encontrou seu rápido desaparecimento no início do século vinte, com o surgimento do behaviorismo. Enraizada nos princípios do materialismo – a crença de que todos os fenômenos naturais consistem apenas em matéria e suas propriedades emergentes – e em suas metodologias correspondentes, que valorizam apenas evidências físicas que podem ser corroboradas pela investigação de uma terceira pessoa, o estudo objetivo do comportamento substituiu inteiramente a introspecção.
Ao longo do século passado, primeiro a psicologia comportamental, depois a psicologia cognitiva e, nos últimos sessenta anos, a neurociência cognitiva abordaram o estudo da mente indiretamente por meio de pesquisas baseadas no comportamento e na atividade cerebral. A introspecção desempenha, na melhor das hipóteses, um papel marginal, e os relatos em primeira pessoa das próprias experiências subjetivas são comumente considerados apenas como dados objetivos, mas não como relatos realistas do funcionamento real da mente.
Embora muitos avanços tenham sido feitos nos ramos proeminentes das ciências cognitivas, questões fundamentais permanecem sem solução. Enquanto a maioria dos cientistas cognitivos concorda que a mente nada mais é do que uma função do cérebro, a natureza real das correlações mente-cérebro permanece tão desconhecida agora como era há 140 anos. A crença generalizada de que “a mente é o que o cérebro faz” é uma suposição não corroborada que oculta o “difícil problema” de como a atividade cerebral gera ou mesmo influencia estados mentais subjetivos. E ofusca ainda mais as maneiras pelas quais os estados mentais influenciam o cérebro, como no caso do efeito placebo, para citar apenas um exemplo.
Enquanto a maioria dos cientistas cognitivos concorda que a mente nada mais é do que uma função do cérebro, a natureza real das correlações mente-cérebro permanece tão desconhecida agora como era há 140 anos
A neurociência cognitiva revelou muitas correlações entre atividades cerebrais específicas e seus estados mentais subjetivos associados, o que fornece fortes evidências para a afirmação de que a mente humana não existe independentemente do cérebro humano. Portanto, a crença religiosa de que uma alma humana parte do corpo na morte é seriamente posta em questão. Mas nenhum progresso comparável tem sido alcançado em termos de definição de consciência, e muito menos de detectar seus correlatos neurais.
Embora tenham sido feitos grandes esforços para identificar os correlatos neurais da consciência – ou seja, a quantidade mínima de atividade neural necessária para gerar consciência –, eles tiveram pouco sucesso. Portanto, os cientistas falharam em identificar as causas necessárias da consciência, as origens da mente humana e como o cérebro influencia e, por sua vez, é influenciado pela mente. Embora existam suposições sobre as origens da consciência e o que acontece com ela na morte, essas são de fato “ilusões de conhecimento” que, com efeito, ocultam a profundidade da ignorância sobre essas questões da vida ou da morte.
A situação é muito semelhante quando se trata de suposições científicas – há muito tempo mantidas – em relação à natureza e origem das doenças mentais. Desde a sua criação, na década de 1960, a neurociência buscou fornecer um conjunto de explicações intelectualmente satisfatórias em termos celulares e moleculares da mentação normal: percepção, coordenação motora, sentimento, pensamento e memória. Em consonância com esse reducionismo materialista, a neuropsiquiatria assumiu que os transtornos mentais são de natureza exclusivamente biológica.
Acredita-se que o cérebro, e não a mente humana, construa nossa experiência sensorial, regule nossos pensamentos e emoções e controle nossas ações; e é o único responsável por atos complexos, como pensar, falar e criar obras de arte. Os transtornos mentais, portanto, são considerados nada mais que distúrbios cerebrais, pelos quais os seres humanos não são, de forma alguma, responsáveis.
Se essas crenças – amplamente deturpadas como fatos científicos bem estabelecidos – fossem verdadeiras, os últimos sessenta anos de avanços exponenciais no conhecimento do cérebro e no desenvolvimento e comercialização de drogas psicofarmacêuticas teriam produzido uma infinidade de medicamentos que curariam uma variedade cada vez maior de transtornos mentais. Mas o fato é que até hoje não existe um único medicamento psicofarmacêutico que realmente cure qualquer doença mental. No máximo, esses medicamentos simplesmente suprimem os sintomas de doenças mentais, assim como os analgésicos suprimem os sintomas de doenças físicas e lesões.
Por mais que isso possa aliviar o sofrimento mental, assim como ninguém em sã consciência acredita que os opioides, por exemplo, “tratam” qualquer doença física, também é irracional sugerir que os medicamentos farmacêuticos “tratam” qualquer doença mental. Em suma, a dominação materialista das ciências cognitivas e da psiquiatria, ao longo do século passado, deixou a humanidade no escuro sobre as origens e a natureza da mente, como ela se relaciona com o corpo, a essência da consciência e seu papel na natureza, as verdadeiras origens da doença mental e do bem-estar genuíno.
Suas suposições reducionistas permanecem não corroboradas por ciências metafísicas, e sua marginalização da introspecção rigorosa provou ser um debilitante desvio do padrão de excelência científico de observar diretamente, com todo o rigor e sofisticação possíveis, os fenômenos naturais que se procura entender.
A dominação materialista das ciências cognitivas e da psiquiatria, ao longo do século passado, deixou a humanidade no escuro sobre as origens e a natureza da mente
Se os psicólogos pioneiros do introspeccionismo tivessem aberto suas mentes para replicar as descobertas relativas à natureza, às origens e potenciais da mente criados pelos grandes contemplativos do Oriente e do Ocidente nos últimos três milênios, o século passado do estudo científico da mente poderia ter integrado os pontos fortes da ciência contemplativa, modos de investigação em primeira pessoa sobre a natureza da experiência subjetiva, com os pontos fortes da investigação científica por uma terceira pessoa nos correlatos comportamentais e neurológicos da mente e de suas funções. Porém, o final do século dezenove marcou o ápice do triunfalismo eurocêntrico, que supunha que o Ocidente não tinha nada a aprender com o Oriente a respeito de nenhum aspecto do mundo natural. Era evidente que, se algo era um mistério para os cientistas, era um mistério para todos. O chauvinismo cultural e o racismo implícito nessa atitude eram flagrantes.
Infelizmente, tal etnocentrismo ocidental, preconceito cultural e arrogância em relação às civilizações asiáticas mudaram muito pouco desde a era vitoriana. Ao longo de várias décadas, muitos estudos científicos de meditação foram conduzidos, primeiramente sobre Meditação Transcendental e depois sobre o que passou a ser popularmente conhecido como “Meditação Mindfulness” (meditação com atenção plena/meditação de atenção focada). Como isso tem sido erroneamente equacionado com a prática budista de “Vipassana”, ou “meditação de insight”, é ainda mais decepcionante que a grande maioria desses estudos científicos negligencie até mesmo considerar se tal meditação realmente produz insights (discernimentos) em primeira pessoa sobre a natureza da mente que não podem ser obtidos por meio do estudo do cérebro e comportamento separados.
Os meditadores são rotineiramente considerados simplesmente como sujeitos desses estudos, sem nenhuma perspectiva ou insights próprios. Assim, o chauvinismo cultural domina a maioria dos estudos de meditação, que estão focados em revelar seus benefícios fisiológicos e psicológicos, sem qualquer consideração ao rico contexto ético, psicológico, filosófico e espiritual em que essas práticas foram desenvolvidas e praticadas ao longo da história do budismo na Ásia.
Este livro foi escrito para revelar a extraordinária sofisticação e rigor das práticas tradicionais de shamatha e vipashyana, conforme apresentado nas tradições Theravada, Mahayana e Dzogchen do budismo, em particular como elas são apresentadas dentro do contexto fundacional das quatro aplicações diretas da mindfulness (atenção plena). Não obstante os muitos aspectos religiosos e filosóficos de todas as escolas do budismo desde os tempos do próprio Buda, as teorias e métodos apresentados neste livro representam a ciência contemplativa budista em sua forma empírica mais radical. Nenhuma afirmação nesta disciplina de investigação precisa ser tomada unicamente com base na fé. Toda hipótese pode ser, e tem sido, testada por meio da experiência em primeira pessoa. A “tecnologia contemplativa” de shamatha – como um meio para desenvolver as faculdades de atenção, concentração, mindfulness e introspecção – é complementada pela “ciência contemplativa” de vipashyana, a qual é caracterizada por rigorosa investigação experiencial e analítica, resultando em descobertas que podem ser replicadas por qualquer buscador da verdade suficientemente treinado e de mente aberta.
No mundo de hoje, quando o impacto destrutivo da tríade disfuncional do materialismo-hedonismo-consumismo se revelou por intermédio da degradação massiva do ambiente natural e da degeneração da civilização humana, a necessidade de integrar os pontos fortes da investigação científica e da investigação contemplativa nunca foi tão grande. É hora de revolucionar nossa maneira de ver a natureza humana e o universo como um todo, se quisermos não apenas sobreviver como espécie, mas florescer de maneiras que nunca experimentamos antes.
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