Elise Bozzetto

O Grande Desatino: Mudanças climáticas e o impensável

A Bodisatva publica trecho da primeira parte do ensaio surpreendente sobre a crise climática, do escritor indiano Amitav Ghosh


Por
Tradução: Renato Prelorentzou

Confira trecho da primeira parte do ensaio surpreendente sobre a crise climática cedido gentilmente pela editora Quina, do escritor indiano Amitav Ghosh, que concilia reflexões sobre a literatura contemporânea, a história do colonialismo europeu e as relações entre moral e ação política hoje.


A Bodisatva publica trecho da primeira parte do ensaio surpreendente sobre a crise climática cedido gentilmente pela editora Quina, do escritor indiano Amitav Ghosh, que concilia reflexões sobre a literatura contemporânea, a história do colonialismo europeu e as relações entre moral e ação política hoje. Com uma abordagem conceitual incomum, procura repensar a era das mudanças climáticas sob uma perspectiva cultural mais abrangente.

A primeira parte do livro sugere que o gênero literário do romance (por sua forma e formação) mostrou-se até agora incapaz de dar expressão adequada aos eventos climáticos extremos que caracterizam nossa época. Para o autor, essa dificuldade de figuração literária apontaria para uma crise ainda maior das narrativas e da representação estética sobre nosso tempo.
Ghosh defende a urgência de imaginarmos outros modos de existência social, sugerindo que a ficção literária desempenha um papel fundamental na construção desses novos imaginários. O Grande Desatino recebeu em 2018 o Utah Award for the Environmental Humanities.

Amitav Ghosh nasceu em Calcutá, em 1956, e é considerado um dos principais escritores da Índia. Sua obra foi traduzida para mais de 30 línguas. Em 2019, a revista Foreign Policy destacou Ghosh como um dos pensadores mais relevantes da década. Além de romancista, escreve para jornais e revistas como The New Yorker, The New York Times, The Guardian.

Na edição 33 da Revista Bodisatva, publicamos uma entrevista exclusiva com Amitav Ghosh, mas na época o livro ainda não havia sido publicado no Brasil. Agora celebramos a publicação, mais que necessária, na versão disponível em português.

CREDITLINE PHOTO: Ivo van der Bent. 22-01-2019 Amitav Ghosh in Amsterdam.

 

Amitav Ghosh nasceu em Calcutá, em 1956, e é considerado um dos principais autores contemporâneos da Índia. Sua obra de ficção e não ficção foi traduzida para mais de 30 idiomas. Em 2018, recebeu o Prêmio Jnanpith, a premiação literária mais importante da Índia. Em 2019, a revista Foreign Policy destacou Ghosh como um dos pensadores mais relevantes da década. Além de romancista, escreve para publicações como The New Yorker, The New York Times, The Republic, The Guardian, e leciona em universidades indianas e norte-americanas.

 

 

 

 


O Grande Desatino: Mudanças climáticas e o impensável

parte I

Histórias

 

Quem consegue esquecer aqueles momentos em que uma coisa que parecia inanimada se revela viva de uma maneira repentina e até mesmo perigosa? Aquele instante, por exemplo, em que percebemos que o arabesco na trama de um tapete era, na verdade, o rabo de um cachorro e que, se o pisarmos, podemos levar uma mordida no tornozelo? Ou quando tocamos aquilo que parecia uma inocente trepadeira e descobrimos ser uma lagarta ou uma cobra? Ou quando um inofensivo tronco à deriva revela-se um crocodilo?

Foi um choque desse tipo, imagino, que os criadores de O império contra-ataca tinham em mente quando conceberam aquela cena em que Han Solo pousa a Millennium Falcon no que ele acreditava ser um asteroide – para então descobrir que havia passado pela garganta de um monstro espacial adormecido. Recordar essa cena hoje, mais de anos após a realização do filme, é reconhecer que ela deixou de ser possível. Pois, se por acaso existir algum Han Solo em um futuro próximo ou distante, suas ideias sobre objetos interplanetários com certeza serão diferentes daquelas que prevaleciam na Califórnia quando o filme foi feito.

Os humanos do futuro certamente compreenderão, em relação à história de seus antepassados na terra, que apenas por um período muito curto que durou menos de três séculos, um número significativo de seres da sua espécie acreditou que planetas e asteroides eram inertes.

Meus ancestrais foram refugiados climáticos muito antes de o termo ser inventado. Eles vieram do que hoje é Bangladesh e seu vilarejo ficava às margens do Rio Padma, um dos mais importantes da região. A história, como meu pai contava, era mais ou menos assim: um dia, em meados da década de 1850, o grande rio de repente mudou de curso, inundando a aldeia; apenas alguns habitantes conseguiram escapar para uma região mais alta. Essa foi a catástrofe que desterrou nossos antepassados: depois dela, eles começaram a se deslocar para o oeste e não pararam até , quando se estabeleceram mais uma vez às margens de um rio, o Ganges,em Bihar.

A primeira vez que ouvi essa história foi durante uma nostálgica viagem em família, quando estávamos descendo o Rio Padma a bordo de um barco a vapor. Ainda era criança e, olhando para aquelas águas turbulentas, imaginei uma grande tempestade, com coqueiros se curvando até suas folhas tocarem o chão. Vi mulheres e crianças correndo dos ventos uivantes e as águas subindo atrás delas. Pensei nos meus ancestrais amontoados em cima de um afloramento, vendo as águas levando seus lares.

Até hoje, quando penso nas circunstâncias que moldaram minha vida, eu me lembro da força destruidora que arrancou meus ancestrais de sua terra natal e os lançou na série de jornadas que precederam – e possibilitaram – minhas próprias viagens. Quando olho para o passado, o rio parece encontrar meus olhos, me fitando de volta, como se perguntasse: será que você me reconhece, onde quer que você esteja?

Reconhecer é, como se sabe, passar da ignorância ao conhecimento. Não se trata, portanto, de uma iniciação. Nem exige troca de palavras: na maioria das vezes, reconhecemos em silêncio. E reconhecer não é de forma alguma compreender aquilo que os olhos encontram; a compreensão não precisa fazer parte do instante de reconhecimento.

O aspecto mais importante da palavra “reconhecimento”, portanto, está na sua primeira sílaba, que remete a algo anterior, uma consciência já existente que possibilita a passagem da ignorância ao conhecimento: o instante do reconhecimento ocorre quando um saber prévio lampeja diante de nós, promovendo uma mudança instantânea em nossa compreensão daquilo que é contemplado. Mas esse lampejo não aparece espontaneamente; ele não consegue se revelar senão na presença de seu outro perdido.

Assim, o saber que resulta do reconhecimento não é do mesmo tipo que resulta da descoberta de algo novo; ele surge sobretudo de uma confrontação renovada com uma potencialidade que já existe dentro de alguém. Imagino que foi isso que meus antepassados viveram naquele dia em que o rio subiu para invadir sua aldeia: eles despertaram para o reconhecimento de uma presença que tinha moldado suas
vidas de tal modo que eles a consideravam um fato da realidade, como o ar que respiravam.

É claro que o ar também pode ganhar vida com uma violência súbita e mortal – como aconteceu no Congo em 1988 , quando uma imensa nuvem de dióxido de carbono irrompeu do lago Nyos e tomou as aldeias vizinhas, matando 1.700 pessoas e inúmeros animais. No entanto, é mais comum que ele ganhe vida com uma insistência silenciosa – como os habitantes de Nova Délhi e Pequim sabem muito bem –, quando pulmões e seios da face inflamados provam mais uma vez que não existe diferença entre o fora e o dentro, entre usar e ser usado. Esses também são instantes de reconhecimento, nos quais percebemos que a energia que nos rodeia, que flui sob nossos pés e pelos fios internos das nossas paredes, que impulsiona nossos veículos e ilumina nossas salas, é uma presença abrangente que talvez tenha seus propósitos particulares, sobre os quais nada sabemos.

Foi assim que também eu tomei consciência da premente proximidade de presenças não humanas, ou seja, por meio de instantes de reconhecimento que me foram impostos pelo ambiente. Na época, eu estava escrevendo sobre Sundarbans, o vasto manguezal da Baía de Bengala, onde o fluxo de água e lodo é tão grande que processos geológicos que geralmente se desenvolvem no “tempo profundo” parecem ocorrer a uma velocidade na qual é possível acompanhá-los semana a semana, mês a mês. Trechos inteiros das margens do rio desaparecem da noite para o dia, às vezes levando consigo casas e pessoas. Mas, em outros lugares, surgem bancos de areia e, dentro de semanas, a costa se alarga vários metros. É claro que muitos desses processos são cíclicos.

Porém, já naquela época, nos primeiros anos do século 21, era possível ver sinais de uma mudança acumulativa e irreversível no recuo das linhas costeiras e na constante intrusão da água do mar em terras que até então eram cultivadas. Trata-se de uma paisagem tão dinâmica que sua própria mutabilidade proporciona inúmeros instantes de reconhecimento.

Capturei alguns deles em minhas anotações daquela época, como nestas linhas escritas em maio de 2002 : “Acredito que seja verdade que a terra aqui está viva; que ela não existe apenas, nem mesmo incidentalmente, como palco para a encenação da história humana; que ela é [ela mesma] protagonista”. Em outro lugar e em outra anotação, escrevi: “Aqui até uma criança começa a contar uma história sobre sua avó com as palavras: ‘naquela época o rio não passava aqui e a aldeia não estava onde está…”’.

Ainda assim, não conseguiria falar desses encontros como episódios de reconhecimento se eu já não tivesse alguma consciência prévia do que estava testemunhando, talvez por experiências de infância (como sair em busca da aldeia ancestral de minha família), por memórias pessoais (como a de um ciclone em Dhaka, quando o pequeno açude que ficava atrás de onde morávamos de repente se transformou em um lago e invadiu nossa casa), pelas histórias que minha avó contava sobre crescer às margens de um rio importante ou simplesmente pela insistência com que a paisagem de Bengala se impõe aos artistas, escritores e cineastas da região.

Entretanto, quando chegou a hora de traduzir essas percepções para o âmbito da minha vida imaginativa – isto é, para a ficção –, me vi enfrentando desafios de uma ordem totalmente diferente daqueles com os quais tinha lidado nos meus trabalhos anteriores. Naquela época, esses desafios pareciam se referir ao livro que eu estava escrevendo, Maré voraz, mas agora, muitos anos depois, quando os impactos acelerados do aquecimento global começam a ameaçar a própria existência de áreas baixas como Sundarbans, parece que esses problemas têm implicações muito mais vastas. Acabei reconhecendo que os desafios que as mudanças climáticas impõem ao escritor contemporâneo, embora específicos em alguns aspectos, se originam de um fenômeno mais abrangente e antigo: em última análise, derivam das formas e convenções literárias que moldaram a imaginação narrativa precisamente naquele período em que o acúmulo de carbono na atmosfera estava reescrevendo o destino da Terra.

Não é difícil demonstrar que as mudanças climáticas lançam uma sombra muito menor no cenário da ficção literária do que na discussão pública. Basta dar uma olhada nas páginas de algumas resenhas de livros e periódicos literários conceituados – por exemplo, London Review of Books, !e New York Review of Books, Los Angeles Review of Books, Literary Journal e !e New York Times Review of Books. Quando o tema das mudanças climáticas surge nessas publicações, quase sempre está ligado à não ficção; romances e contos raramente aparecem nesse horizonte. Na verdade, pode-se até mesmo dizer que a ficção que trata das mudanças climáticas não é, quase por definição, do tipo que os periódicos literários respeitados levam a sério: a simples referência ao assunto muitas vezes é suficiente para relegar um conto ou romance ao gênero da ficção científica.

É como se, na imaginação literária, as mudanças climáticas fossem de alguma forma semelhantes a extraterrestres ou viagens espaciais. Há algo confuso nesse peculiar ciclo de retroalimentação. Pois, sem dúvida, é muito difícil imaginar uma concepção de seriedade que não consiga enxergar as ameaças que têm o potencial de mudar nossa vida. E, se a urgência de determinado tema realmente fosse critério para sua seriedade, então, considerando o que as mudanças climáticas de fato pressagiam para o futuro da Terra, elas com certeza deveriam ser a maior preocupação dos escritores do mundo todo – e creio que estamos muito longe disso.

Mas por quê? Será que as correntes do aquecimento global são violentas demais para que possamos navegá-las nas barcas habituais da narração? A verdade, como agora se sabe muito bem, é que entramos em uma época na qual esses extremos se tornaram a norma: se certas formas literárias não conseguem enfrentar essas torrentes, então elas estão fracassando – e seus fracassos terão de ser tomados como um aspecto do fracasso mais amplo da cultura e da imaginação em geral, que está no cerne da crise climática. É claro que o problema não surge da falta de informação.

Nos dias de hoje, decerto são pouquíssimos os escritores que continuam alheios aos atuais distúrbios nos sistemas climáticos de todo o mundo. Ainda assim, não deixa de ser curioso que, quando os romancistas decidem escrever sobre as mudanças climáticas, quase sempre o fazem fora da ficção. Um bom exemplo é a obra de Arundhati Roy, que além de possuir um dos melhores estilos da prosa de nossos tempos, também é muito interessada e profundamente esclarecida sobre o tema das mudanças climáticas.

Todos os seus escritos sobre o assunto se encontram, porém, em várias formas de não ficção. Ou pensemos no exemplo ainda mais notável de Paul Kingsnorth, autor de The Wake [O despertar], um romance histórico muito admirado que se passa na Inglaterra do século 11. Kingsnorth dedicou vários anos de sua vida ao ativismo das mudanças climáticas antes de fundar o influente The Dark Mountain Project, “uma rede de escritores, artistas e pensadores que pararam de acreditar nas histórias que nossa civilização conta a si mesma”.

Embora Kingsnorth tenha produzido um poderoso relato não ficcional sobre movimentos de resistência globais, até a escrita deste livro, pelo menos, ele ainda não publicou um romance no qual as mudanças climáticas desempenhem um papel importante.Também venho me preocupando com as mudanças climáticas há um bom tempo, mas é verdade que, em meu próprio trabalho, o tema aparece na minha ficção apenas indiretamente. Ao pensar sobre o descompasso entre minhas preocupações pessoais e o conteúdo de minhas obras publicadas, acabei me convencendo de que a discrepância não resulta de predileções pessoais: ela surge das formas peculiares de resistência que as mudanças climáticas impõem àquilo que hoje se considera ficção séria.

Em seu ensaio seminal “O clima da história”, Dipesh Chakrabarty observa que os historiadores terão de revisar muitos de seus pressupostos e procedimentos fundamentais nesta era de mudanças climáticas induzidas pelo homem, na qual “os seres humanos se tornaram agentes geológicos, mudando os mais básicos processos físicos da terra”. Eu iria mais longe e acrescentaria que o Antropoceno traz um desafio não apenas para as artes e humanidades, mas também para os hábitos de nosso senso comum e, mais do que isso, para a cultura contemporânea em geral.

 

Acesse aqui o livro: https://quinaeditora.com.br/autores/amitav-ghosh/

Apoiadores

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *