Foto: Tomoko Uji (Unsplash).

O grande segredo da resiliência

Em palestra durante o evento 108 Horas de Paz, Lama Padma Samten aborda o conceito de resiliência na perspectiva budista


Por
Revisão: Cristiane Schardosim Martins
Transcrição: Igor Souto

O texto abaixo é uma transcrição da palestra do Lama Padma Samten durante o evento do 108 Horas de Paz de 2021. Em seu ensinamento, o Lama fala sobre o tema da resiliência numa perspectiva budista, e diz como podemos ser flores destemidas, brotando de forma improvável no meio do inverno. O ensinamento pode ser assistido aqui


O primeiro ponto com respeito à resiliência é que, ainda que procuremos olhar esse termo de uma forma ampla, na verdade, a vida tem uma habilidade de se manter, a vida tem se defendido super bem. Se vocês olharem, a vida opera num ambiente externo completamente hostil e gélido no nosso planeta. O céu, por exemplo, é gélido, ele é próximo do zero grau Kelvin, do zero grau absoluto. E no interior do planeta temos rocha derretida e temperaturas muito, muito elevadas. A vida então se exerce nessa pequena casca, nessa região delicada, e ela está operando há um tempo muito grande. A vida sabe se defender dentro dessas circunstâncias, então é quase como um exagero dos seres humanos imaginar que nós vamos propiciar, de algum modo, a resiliência da própria vida. 

Quando olhamos desse modo, precisaríamos entender que, se imaginarmos que nós estamos tratando da resiliência dos seres humanos, vamos ver que isso é um pouco arrogante. Os seres humanos têm conseguido se defender bem, em diferentes momentos. Eles geraram muitas diferentes culturas e uma capacidade muito grande de adaptação. Então, a condição humana é uma condição naturalmente resiliente. 

Foto: Tomoko Uji (Unsplash).

Por outro lado, quando olhamos o que estamos querendo dizer com “resiliência”, utilizando esse termo, vamos entender que, na verdade, temos apegos às várias formas de organização social humana presentes hoje, e aspiramos que se mantenham. Na verdade, essa configuração da sociedade humana, como ela se definiu hoje, é o maior adversário que temos, justamente nesse objetivo de resiliência da própria sociedade humana. Os maiores riscos e as maiores ameaças à nossa sociedade é ela própria, o jeito como ela se estabelece e como ela está operando. É uma coisa paradoxal. Estamos dentro de uma sociedade destruidora, dentro de um modo de destruição, aspirando que tudo se preserve, mas ao mesmo tempo aspirando que o modo de destruição seja substituído por um outro modo resiliente. Provavelmente essa contradição é o que tem trazido as dificuldades, se não a quase impossibilidade até agora, de encontrarmos soluções.

O aspecto grosseiro e o aspecto sutil

Na perspectiva budista, o Buda vai falar dos tempos de degenerescência, dos tempos onde os aspectos sutis são corrompidos. Na perspectiva dos ensinamentos, vamos encontrar uma análise no aspecto grosseiro, no aspecto sutil e também no aspecto secreto. De modo geral, quando tratamos as questões de resiliência, falamos no aspecto grosseiro. Ou seja, ficamos pensando qual prática deveríamos fazer, o que  deveríamos plantar, como  deveríamos captar e usar a energia, como deveríamos reciclar os materiais, como  poderíamos melhorar nossa eficiência em vários âmbitos. Isso seria o aspecto grosseiro. 

No aspecto sutil, nos defrontamos com os condicionantes que determinam as formas usuais de operação que exercemos. Por exemplo, se estamos destruindo as florestas, canalizando os rios, afetando o clima como um todo, afetando a vida dos outros seres, perguntamos: mas por que fazemos isso se sabemos que isso é um obstáculo? Olhamos no aspecto sutil e vemos os referenciais que utilizamos para as nossas ações. Esses referenciais podem ser facilmente resumidos por aquilo que nós chamaríamos de paradigma econômico. 

É uma coisa paradoxal. Estamos dentro de uma sociedade destruidora, dentro de um modo de destruição, aspirando que tudo se preserve, mas ao mesmo tempo aspirando que o modo de destruição seja substituído por um outro modo resiliente

 

Por exemplo, quando pensamos que nossa vida humana pode melhorar, sempre pensamos em aumento de renda, imediatamente. Ninguém vai pensar que as coisas podem melhorar se interrompermos a expansão do processo econômico. Os governos de direita e os governos de esquerda tratam sempre da mesma forma. Estão sempre procurando meios hábeis para a expansão da atividade econômica. Quando olhamos o que seria essa atividade econômica, ela é quase um referencial em si mesma. Ela não tem um objetivo de produzir benefícios aos seres, de produzir felicidade e que os seres ultrapassem o sofrimento. É como se fosse uma marcha numérica que precisa estar em constante expansão. 

Desigualdades estruturais

Por outro lado, as desigualdades dentro da estrutura política e econômica fazem com que esse processo seja acelerado. Por quê? Porque a grande disparidade que há no acesso aos recursos e no acesso aos benefícios disso, que nós chamamos de atividade econômica, faz com que as pessoas que têm menos aspirem desesperadamente a avançar. E é sempre apontado que o desenvolvimento econômico – a expansão do próprio processo econômico – terminará por oferecer melhores recursos para as pessoas que estão em condição difícil. Não olhamos, por exemplo, a gigantesca disparidade. Também não olhamos de uma forma igualitária os seres humanos, nem buscamos isso. Olhamos sempre para a expansão sem limite. 

Já estamos, agora, há quase 50 anos dos primeiros estudos acadêmicos e científicos usando projeções de computadores que tratavam da impossibilidade de mantermos um crescimento econômico indefinido dentro de um planeta finito. Estamos hoje verificando que justamente essas teses, essas visões, elas se configuram como completamente verdadeiras. Não temos como sustentar um crescimento populacional e cada pessoa dentro do planeta demandando e manobrando recursos em várias áreas. Não temos essa possibilidade. 

Foto: Tomoko Uji (Unsplash).

Assim começamos a cruzar caminhos muito perigosos. Por exemplo, começamos a aceitar que podemos comer veneno. Acho que todo supermercado deveria ter uma placa na entrada apontado que de um lado estão os alimentos orgânicos e do outro lado, alimentos envenenados. Deveria ter uma setinha para ver o que as pessoas escolheriam. Acho completamente sintomático da nossa situação o fato de que não conseguimos que haja uma etiquetagem do tipo de veneno que estamos comendo, dos hormônios a que estamos submetidos. Não conseguimos trazer essa informação direta. Se soubéssemos disso, haveria uma alteração muito importante no nosso comportamento. Somos deixados sem essa informação. Também estamos utilizando venenos que são proibidos em outros países. Vamos cruzando naturalmente, calmamente, todas essas barreiras. Desde que sigamos ativando o processo econômico, está tudo perfeito. 

Um tempo adoecedor

É como se os governos, em nome de uma governabilidade e de uma estabilidade, ultrapassassem as fronteiras que não deveriam ser ultrapassadas. Os sinais estão visíveis: temos uma expansão muito grande de várias doenças que estão efetivamente associadas a venenos, à poluição da água e do ar. Nesses dias se diz que a água de Porto Alegre está com um cheiro inadequado. Por quê? Porque estamos com um problema de captação. A água está imprópria, mas ela “está própria”, porque é o que nós temos. Desse modo, vamos cruzando todas as fronteiras e vamos avançando em direção às doenças. Por outro lado, o processo econômico não tem nenhuma perspectiva maior, mais elevada dentro da sociedade. Nós estamos sem rumo.

Estamos, também, num tempo em que os jovens, quando olham para o futuro, eles só veem um futuro distópico, ou seja, eles veem um futuro que talvez não exista. É um tempo adoecedor sob o ponto de vista psicológico. As pessoas podem perguntar: “eu vou estudar por quê? Eu vou fazer esforços por quê? Será que eu quero assumir esses empregos? Será que eu quero trabalhar dentro de um banco, quero trabalhar no serviço público, eu quero expandir a atividade econômica? É isso que eu estou querendo?” Então os jovens ficam sem um referencial adequado. 

É como se os governos, em nome de uma governabilidade e de uma estabilidade, ultrapassassem as fronteiras que não deveriam ser ultrapassadas

 

As famílias precisam se sustentar, e elas pagam os preços que precisam ser pagos. E elas vão andando, mas vão andando sem alma. Isso vai trazendo um adoecimento no nível psíquico. Esse adoecimento no nível psi é, essencialmente, uma epidemia. Temos uma quantidade muito grande de pessoas que toma remédios para poder se manter, para poder dormir, para poder acordar, para poder trabalhar, para ter algum nível de estabilidade, para não ter uma depressão hoje nem amanhã. E elas vão indo como podem.  

Regenerar a grande estupa

Quando essas doenças são tratadas, elas são tratadas como a doença de uma pessoa, ou de outra pessoa, ou de outra pessoa. Para nós fica oculto, não fica claro o aspecto epidêmico disso, o aspecto das estatísticas correspondentes. Se olharmos ainda a violência que se torna completamente natural nas ruas, em todo lugar, as pessoas se sentem efetivamente inseguras. Quando nossos familiares saem para trabalhar, saem para se deslocar, sabemos que há um perigo real. Estamos atravessando totalmente essas barreiras como se nada estivesse acontecendo, como se isso fosse totalmente natural. Essas questões se somam às questões do ambiente: elas não se separam na verdade, elas são todas a mesma questão, que é uma falta de ordenação no nível sutil, interno.

Essas questões se somam às questões do ambiente: elas não se separam na verdade, elas são todas a mesma questão, que é uma falta de ordenação no nível sutil, internoe

 

O Buda tem uma visão acerca disso. As múltiplas tradições religiosas têm visões sobre essa situação e o que nós deveríamos fazer efetivamente. Nesse ponto, podemos, no aspecto sutil, pensar que quando organizamos isso no budismo, por vezes, se fala na grande estupa. A estupa representa a ordenação, a beleza, a harmonia, a lucidez. Diz-se que a grande estupa está adernada, ela está ferida, ela está machucada. Nós precisaríamos recuperar a grande estupa. Eu acho que diferentes tradições têm diferentes imagens sobre isso, mas todas vão concordar que nós estamos vivendo aquilo que chamamos de tempos de degenerescência.

Das emoções perturbadoras às cinco sabedorias

 Nesse ponto, as pessoas, por vezes, se dividem. Algumas podem imaginar que nós vamos encontrar soluções e outras que nós estamos nos aproximando de um tempo de uma grande ruptura. Na perspectiva budista, esse aspecto sutil deveria nos levar das emoções perturbadoras para as habilidades que nós chamamos de cinco sabedorias. Vamos descobrir a nossa natureza mais profunda, que é capaz de entender os outros no mundo deles, de entender a vida, de se alegrar com a vida dos outros seres, não apenas com a nossa própria vida, que é capaz de se solidarizar, de manifestar compaixão, de manifestar amor pelos outros seres. 

crise e auto-organização

Lama Padma Samten. Foto: Cristiano Ramalho

Descobrimos, paulatinamente, que nós nos reequilibramos internamente. A nossa doença interna é potencializada, e acaba se manifestando como os movimentos dentro de um paradigma econômico. O paradigma econômico é frio e seco. Ele não tem uma dimensão afetiva. Quando nós vemos esse fato, percebemos como esse processo todo é adoecedor e essa doença que se manifesta dentro de nós termina sendo sacudida apenas por objetivos que também potencializam o aspecto econômico. 

Essa visão é a base da resiliência: nós recuperarmos a compreensão do aspecto sagrado, do aspecto profundo, do aspecto secreto, do aspecto milagroso e luminoso de toda a vida

 

Acho muito comovente que as pessoas com muitos recursos também estejam mal. As pessoas com muitos recursos, com médios e poucos recursos, podem estar mal. Mas as pessoas que têm compaixão e amor no coração, elas têm uma alegria pelo que fazem, pela capacidade de ser solidárias com a vida, com os outros seres e de olhar de uma forma mais ampla. Essas pessoas se equilibram e elas sentem que há um sentido na vida, sim. 

Quando as pessoas localizam a dimensão das sabedorias que ultrapassam as sabedorias humanas, as sabedorias maiores, as pessoas passam a ter uma sensação de que a vida é sagrada, de que a vida é extraordinária. Essa visão é a base da resiliência: nós recuperarmos a compreensão do aspecto sagrado, do aspecto profundo, do aspecto secreto, do aspecto milagroso e luminoso de toda a vida, de todas as manifestações. Então vamos nessa direção. 

As flores destemidas

No CEBB, tomamos isso por base e vamos estabelecendo as várias aldeias e os vários lugares que são como pequenas gotas de orvalho no meio de uma região seca e difícil. Frágeis, mas é o que nós podemos fazer. Nós acreditamos no poder da revolução das flores, ou seja, a primavera começa com a primeira flor que desabrocha. Então, se formos capazes de desabrochar as nossas flores, onde nós estivermos, por pequenas que sejam, elas vão compor essa grande primavera porque o nosso coração aspira à felicidade no sentido amplo. Nós todos, ainda que confusos, aspiramos direções elevadas. Esse potencial livre dentro de nós é justamente o que nós temos: esse potencial luminoso e livre. 

Foto: Tomoko Uji (Unsplash).

Nós não precisamos fazer as mesmas coisas que vemos serem feitas, nós podemos criar outras realidades. Assim, as flores do CEBB são isso: são flores destemidas. Acho interessante que no inverno algumas flores apareçam. No meio do gelo, no meio da neve, as primeiras flores podem aparecer. Elas são completamente improváveis. Quando elas surgem todos vão criticar. “Mas como? Não é tempo!” Mas é o tempo. E assim, essa capacidade, não de alguém resolver os problemas, mas de todos nós florescermos, esse é o grande segredo da resiliência. 

Eu agradeço a atenção de vocês. Acho muito bonito ver esse número grande de pessoas que se ocupa desses temas, que é capaz de se mover, aspirar e fazer o impossível, e de ter esse destemor delicado das flores que surgem em tempos difíceis. Obrigado, pessoal. 

Apoiadores

2 Comentários

  1. Osanete Oliveira disse:

    Que fala preciosa do Lama Sentem! Refletir sobre esses pontos e contrapontos é essencial! Um olhar mais cuidadoso sobre nossas escolhas, esse adoecimento coletivo e sutil… Há tempos não encontro algo com tanta lucidez e leveza juntos! Gratidão ao Lama!

  2. Alano Alexandre Umbelino de Barros disse:

    Gratidão, pelas palavras do Lama e por compreender os saberes que o texto traz.

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