Imagem: Plum Village

O planeta que temos

Uma visão de Thich Nhat Hanh


Por
Revisão: Cláudia Laux
Tradução: Laura Dal-Toé

Apenas quando combinarmos nossa preocupação pelo planeta com nossa prática espiritual é que teremos as ferramentas para fazer as profundas transformações pessoais necessárias para lidar com a crise ambiental que está por vir. Thich Nhat Hanh nos oferece princípios-guia para uma nova ecoespiritualidade de viver no presente.


Somos como sonâmbulos, sem saber o que estamos fazendo ou para onde estamos indo. Se iremos acordar, ou não, depende da nossa capacidade em caminhar com atenção plena pela nossa Mãe Terra. O futuro de toda a vida, incluindo nossa vida, depende de nossos passos atentos. Precisamos ouvir os sinos da atenção plena que tocam ao redor do nosso planeta. Nós precisamos começar a aprender como viver de forma a garantir que um futuro seja possível para os nossos filhos e netos. 

Eu me sentei com o Buda por um longo tempo, e consultei-o sobre a questão do aquecimento global, e o seu ensinamento é muito claro. Se continuarmos a viver como temos feito, consumindo sem pensar no futuro, destruindo nossas florestas e emitindo gases de efeito estufa, então uma crise climática devastadora será inevitável. A maior parte do nosso ecossistema será destruído. Os níveis do mar irão subir e as cidades litorâneas serão inundadas, forçando centenas de milhares de refugiados a sair de suas casas, causando guerras e surtos de doenças infecciosas.

Precisamos de um despertar coletivo. A maioria das pessoas ainda está dormindo. Não consegue ouvir o tocar dos sinos.

Precisamos de um despertar coletivo. Existem entre nós homens e mulheres despertos, mas não é o suficiente; a maioria das pessoas ainda está dormindo. Elas não conseguem ouvir o tocar dos sinos. Construímos um sistema que não conseguimos controlar. Esse sistema se impõe a nós, e nos tornamos seus escravos e vítimas. A maioria de nós, para ter uma casa, um carro, uma geladeira, TV e assim por diante, precisa sacrificar o seu tempo e vida. Somos constantemente pressionados pelo tempo. Antigamente, podíamos dispor de três horas do nosso dia para tomar uma xícara de chá, aproveitando a companhia de nossos amigos em uma atmosfera serena e espiritual. 

Podíamos organizar uma festa para celebrar o florescer de uma orquídea em nosso jardim. Mas hoje não podemos mais fazer essas coisas. Dizemos que tempo é dinheiro. Criamos uma sociedade em que os ricos se tornam mais ricos e os pobres mais pobres, e em que estamos tão envolvidos com nossos próprios problemas imediatos que não podemos nos dar ao luxo de ter consciência do que está acontecendo com o resto da família humana ou com nosso planeta Terra. Na minha mente, vejo um grupo de galinhas presas em uma jaula, disputando grãos, sem saber que em poucas horas serão mortas. 

Os chineses, indianos e vietnamitas ainda devaneiam com o “sonho americano”, como se este fosse o maior propósito da humanidade – todo mundo precisa ter um carro próprio, conta no banco, celular, televisão. Em 25 anos a população da China será de 1,5 bilhão, e se cada uma dessas pessoas quiser dirigir seu próprio carro, o país precisará de 99 milhões de barris de petróleo por dia. Mas a produção de petróleo é hoje de apenas 84 milhões de barris/dia; então o sonho americano já não é mais possível para os chineses, nem para indianos ou vietnamitas. O sonho americano não é mais possível para os americanos. Não podemos continuar vivendo dessa forma. Essa não é uma economia sustentável. 

Precisamos de outro sonho: o sonho da fraternidade e da irmandade, da bondade amorosa e da compaixão, e esse sonho é possível aqui e agora. Temos o Dharma; nós temos os meios; temos sabedoria suficiente para poder viver esse sonho. A atenção plena está no cerne do despertar, da iluminação. Praticamos a respiração para estarmos presentes no momento presente, para que possamos reconhecer o que está acontecendo em nós e ao nosso redor. Se o que está ocorrendo dentro de nós é desespero, temos que reconhecê-lo e agir imediatamente. Podemos não querer nos confrontar a  tal formação mental, mas ela é  real e temos que vê-la para transformá-la.

Não precisamos cair no desespero com o aquecimento global; podemos agir. Se simplesmente assinarmos uma petição e nos esquecermos dela, nada vai mudar, obviamente. Medidas urgentes precisam ser tomadas, a nível individual e coletivo. Todos nós temos um imenso desejo de viver em paz e com sustentabilidade ambiental. O que a maioria ainda não tem são formas concretas de tornar nosso compromisso com uma vida sustentável uma realidade na nossa vida quotidiana. Não nos organizamos. Dificilmente podemos culpar nossos líderes pelos produtos químicos que poluem nossa água potável, pela violência em nossos bairros, pelas guerras que destroem tantas vidas. É hora de cada um de nós acordar e tomar iniciativas em nossas próprias vidas.

Violência, corrupção, abuso de poder e auto destruição acontecem ao nosso redor, mesmo entre os líderes, tanto espirituais quanto sociais. Todos nós sabemos que as leis do nosso país não têm força suficiente para lidar com a corrupção, superstição e crueldade. Apenas a fé, a determinação, o despertar e um grande sonho podem criar uma energia suficientemente forte para ajudar nossa sociedade a superar tais obstáculos e atingir as margens da paz e da esperança.

O budismo é a forma mais íntegra que temos de humanismo. Ele veio ao mundo para que pudéssemos aprender a viver com responsabilidade, compaixão e bondade amorosa. Cada praticante budista deveria ser um protetor da natureza. Temos o poder de decidir o destino do nosso planeta. Se despertarmos para nossa real situação, haverá uma mudança coletiva em nossa consciência. Devemos fazer algo para acordar as pessoas. Precisamos ajudar o Buda a despertar as pessoas que estão vivendo em um sonho. 

No entanto, tudo, até mesmo o Buda, está sempre mudando e evoluindo. Graças à nossa prática de olhar profundamente, percebemos que os sofrimentos deste tempo são diferentes dos sofrimentos dos tempos de Siddhartha, e por isso os métodos de prática também devem ser diferentes. É por esse motivo que o Buda dentro de nós também deve evoluir de muitas formas, para que o Buda seja relevante para o nosso tempo.

O Buda do nosso tempo pode usar telefones, até mesmo um celular, mas ele está livre desse celular. O Buda do nosso tempo sabe como ajudar a prevenir o desastre ecológico e o aquecimento global; ele não destruirá a beleza do nosso planeta e nos fará perder tempo competindo uns com os outros. O Buda do nosso tempo quer oferecer ao mundo uma ética global, para que todos concordem sobre o bom caminho a seguir. Ele quer restaurar a harmonia, cultivar a confraternidade, proteger todas as espécies do planeta, impedir o desmatamento, e reduzir a emissão de gases de efeito estufa. 

Ao praticar os Cinco Treinamentos da Atenção Plena, você se torna um bodhisattva ajudando a criar harmonia, proteger o meio ambiente, amparar a paz e cultivar a confraternidade.

Como você é a continuação do Buda, deve ajudá-lo a oferecer ao mundo um caminho que impeça a destruição do ecossistema, um caminho que possa reduzir tanta violência e desespero. Seria muito positivo você ajudar o Buda a continuar a realizar o que ele começou há 2.600 anos.

Nosso planeta Terra tem uma grande variedade de vida, e cada espécie depende das outras para se manifestar e continuar a viver. Nós não estamos apenas do lado de fora uns dos outros, mas dentro uns dos outros. É muito importante abraçar a Terra, e colocá-la em nosso coração para preservar esse lindo planeta e proteger todas as espécies. 

O Sutra do Lótus menciona uma bodhisattva especial: Dharani Dhara, a Guardiã da Terra, alguém que preserva e protege a Terra.  A Guardiã da Terra, é a energia que está nos mantendo juntos como um organismo. Ela é um tipo de engenheira ou arquiteta, encarregada de criar o espaço onde vivemos, pontes para cruzarmos de um lado para outro, construir estradas para chegarmos até as pessoas que amamos. Sua missão é promover a comunicação entre seres humanos e outras espécies, e proteger a Terra e o meio ambiente. É dito que, quando o Buda tentou visitar sua mãe, Mahamaya, foi Dharani Dhara que construiu a estrada pela qual o Buda viajou. Embora a Bodisatva Guardiã da Terra seja mencionada no Sutra do Lótus, não há um capítulo dedicado a ela. Deveríamos manifestar reconhecimento por essa Bodisatva para colaborar com ela. Deveríamos, todos, ajudar a elaborar um novo capítulo para ela,  porque a Guardiã da Terra é extremamente necessária nessa era de globalização. 

Quando você contempla uma laranja, vê que tudo na laranja participa em sua criação. Não é apenas a polpa que pertence à laranja; a casca e as sementes também fazem parte dela. É o que chamamos de o aspecto universal da laranja. Tudo na laranja é laranja, mas sua casca permanece sendo a casca, as sementes permanecem sendo sementes, o sumo permanece sendo o sumo. O mesmo é verdadeiro para o nosso planeta. Embora tenhamos nos tornado uma comunidade global, os franceses continuam sendo os franceses, os japoneses, japoneses, os budistas permanecem budistas e os cristãos, cristãos. A casca da laranja permanece sendo a casca, e a polpa permanece sendo a polpa. A polpa não precisa se tornar casca para que haja harmonia. 

Harmonia, no entanto, é impossível se não tivermos uma ética global, e a ética global que o Buda concebeu são os Cinco Treinamentos da Atenção Plena. Os Cinco Treinamentos da Atenção Plena são o caminho que deveríamos seguir nessa era de crise global, porque constituem a prática da fraternidade, compreensão e amor, a prática de protegermos a nós mesmos e ao planeta. Os treinamentos de mindfulness são realizações completas da atenção plena. São não sectários.

Não carregam a marca de nenhuma religião, raça, ou ideologia; a sua natureza é universal. 

Decida-se e atue para salvar nosso belo planeta Terra. Mudar seu modo de vida lhe trará muita alegria imediata.

Quando você pratica Os Cinco Treinamentos da Atenção Plena, torna-se um bodhisattva ajudando a criar harmonia, proteger o meio ambiente, salvaguardar a paz e cultivar fraternidade e irmandade. Não apenas você protege as belezas da sua própria cultura, mas as de outras culturas também, e todas as belezas da Terra. Com os Cinco Treinamentos da Atenção Plena no seu coração, você estará no caminho da transformação e cura. 

No Primeiro Treinamento, fazemos o voto de valorizar toda a vida na Terra e não aprovar nenhuma morte. No Segundo Treinamento fazemos o voto de praticar generosidade e não aprovar injustiça e opressão social. No Terceiro Treinamento nos comprometemos a nos comportar de forma responsável nas nossas relações e não nos envolvermos em conduta sexual imprópria. O Quarto Treinamento nos convida a praticar fala amorosa e escuta profunda para aliviar o sofrimento dos outros. 

A prática do consumo e alimentação conscientes são os objetos do Quinto Treinamento da Atenção Plena. 

Conscientes do sofrimento causado pelo consumo desatento, eu faço o voto de cultivar uma boa saúde física e mental, por mim mesmo, pela minha família e por minha sociedade, através da Atenção Plena na alimentação, bebida e consumo. Eu faço o voto de ingerir apenas itens que preservem a paz, o bem estar e a alegria no meu corpo e mente, e no corpo e mente coletivo da minha família e sociedade. 

Estou determinado a não usar álcool ou qualquer outro intoxicante, nem ingerir alimentos ou qualquer coisa que seja intoxicante, como alguns programas de TV, revistas, livros, filmes e conversas. Estou ciente que prejudicar meu corpo e minha mente com esses venenos é trair meus ancestrais, meus pais, minha sociedade e as futuras gerações. Eu vou trabalhar para transformar violência, medo, raiva e confusão tanto em mim mesmo como na sociedade, praticando uma dieta para mim mesmo e para a sociedade. Entendo que uma dieta correta é crucial para a autotransformação e a transformação da sociedade. 

O Quinto Treinamento da Atenção Plena é a saída para a situação difícil em que nosso planeta se encontra. Quando praticamos o Quinto Treinamento, reconhecemos exatamente o que consumir e o que evitar para manter nossos corpos, mentes e a Terra saudáveis, e não causar sofrimento para nós mesmos e para os outros. O consumo atento é o caminho para nos curarmos e curarmos o mundo. Como uma família espiritual e humana,  seguindo essa prática, todos nós podemos ajudar a evitar o aquecimento global. Deveríamos  nos tornar a mão e os braços da Guardiã da Terra para agirmos rápido. 

Você deve ter ouvido que Deus está em nós, Buda está em nós. Mas ainda temos uma vaga noção do que isso significa. Na tradição budista, isso é muito claro. Buda reside dentro de nós como energia – a energia da atenção plena, a energia da concentração e a energia do insight – que trará compaixão, amor, alegria, união e não discriminação. Nossos amigos da tradição cristã falam do Espírito Santo como a energia do Buda. Onde quer que o Espírito Santo esteja, há cura e amor. Podemos falar da mesma forma sobre atenção plena, concentração e insight. A energia da atenção plena, da concentração e do insight dá origem à compaixão, ao perdão, à alegria, à transformação e à cura. Essa é a energia de um Buda. Se você é habitado por essa energia, você é um Buda. E essa energia pode ser cultivada e se manifestar plenamente em você.

É maravilhoso perceber que estamos todos em uma família, somos todos filhos da Terra. Devemos cuidar uns dos outros e do nosso meio ambiente, e isso é possível com a prática da união. Uma mudança positiva na consciência individual trará uma mudança positiva na consciência coletiva. A proteção do planeta deve ser a primeira prioridade. Espero que vocês reservem um tempo para se sentarem juntos, tomarem chá com seus amigos e familiares e discutirem o tema. Convide a bodhisattva Guardiã da Terra para sentar-se e colaborar com você. Tome sua decisão e depois aja para salvar nosso lindo planeta Terra. Mudar seu modo de vida lhe trará muita alegria instantânea. Então, a cura pode começar.

Texto publicado primeiramente pela Lion’s Roar.

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