Crédito: Zé Paiva

Palestra de abertura do ano: Lama Padma Samten oferece instruções de prática

No dia 1º de janeiro de 2022, em sua tradicional palestra de abertura do ano, Lama Padma Samten ofereceu preciosos ensinamentos que foram transcritos generosamente por praticantes da sanga. Neste trecho, publicamos a parte final da fala do nosso querido mestre.


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Revisão: Marcelo Nicolodi e Cristiane Schardosim Martins
Edição: Elise Bozzetto
Transcrição: Edu de Maria e Isabel Poncio

No dia 1º de janeiro, em sua tradicional palestra de abertura do ano, Lama Padma Samten ofereceu preciosos ensinamentos que foram transcritos generosamente por praticantes da sanga. Neste trecho, publicamos a parte final da fala do nosso querido mestre.


 

Os ensinamentos budistas mostram como a realidade é construída de modo não dual com a mente. Eu acredito que nós vamos precisar fazer essa travessia em direção a essa visão. A lucidez precisa surgir. O Buda vai apontar os lokas, as bolhas, as realidades estreitas – um tipo de clareza que vem das tradições pré-budistas. O Buda ensina como podemos ultrapassar todo o carma estabelecido, como ultrapassar as emoções negativas que tenhamos desenvolvido e como podemos ajudar os outros seres a ultrapassar isso – como deveríamos nos mover melhor. Eu vou explicar os aspectos mais profundos, pois começar dessa forma é melhor:

Que a gente considere a operação da nossa mente dentro da perspectiva de Visão, Meditação e Ação – ensinamentos de Garab Dorje. O ponto central seria Visão. Essa noção de Visão está sendo trabalhada longamente – olhamos o tempo todo isso. O Lama Alan Wallace teve a generosidade de nos trazer esses ensinamentos de Visão a partir, especialmente, de Dudjom Rinpoche e Dudjom Lingpa, muito poderosos e muito amplos. Maravilhoso que a gente possa seguir esses ensinamentos e olhar de forma profunda a nossa realidade. Por vezes, mesmo que a gente ouça esses ensinamentos, não conseguimos reconhecer isso direito. Existem muitas classes de ensinamentos que embasam a noção de Visão. 

Uma dessas classes de ensinamentos é justamente as oito consciências. Quando nós olhamos tudo através das oito consciências – se nós conseguirmos entender melhor o nosso funcionamento através das oito consciências – teremos um instrumento poderoso para analisar o que é a bolha, a limitação da visão. As oito consciências são exatamente a descrição do samsara. É fácil a gente entender como as múltiplas identidades vão surgir através da sétima consciência e como isso tem por base a oitava consciência que é alaya vijnana, uma estruturação de tudo que já foi construído luminosamente e serve de referencial para as nossas ações, e que também há uma liberdade além disso. 

Quando nós entendemos a oitava e a sétima consciência, reconhecemos que a sexta consciência é como se fosse um boneco seguindo condicionantes: nós nos vemos fazendo ações de vários tipos, olhando com os periféricos de olhos, ouvidos, nariz, língua e tato, a partir da sexta consciência; só que esses periféricos estão assombrados, estão dominados de modo oculto pela sétima e pela oitava consciências que dão sentido a tudo. Então, quando nós nos movemos, esses significados aparecem. Os exemplos são abundantes: qualquer pessoa que for ver um filme, for assistir uma peça de teatro, for trabalhar, ela se vê rapidamente assumindo identidades, vendo realidades e se transportando por dentro de realidades que não são sólidas, mas elas aparecem como se fossem. Como é que, vendo um filme na TV, nós temos emoções se aquilo não diz respeito a nenhuma realidade? Estamos vendo uma tela e como pode brotar tudo aquilo dentro de nós? Então, rapidamente, percebemos como as realidades são luminosas e operam dentro de bolhas de significados. 

Se alguém nos chama, a gente simplesmente se levanta, dá um pause, abandona aquele ambiente, entra numa outra bolha, faz o que precisa fazer, depois volta e entra de novo naquela realidade e volta a chorar. É assim. Essa é a nossa consciência – ela é livre, mas fica operando a partir desse conjunto de referenciais e, desse modo, ela simplesmente salta de uma coisa para outra, e é fácil de ver que estamos há vidas incontáveis fazendo isso. Aí vêm os mestres e nos ajudam a cruzar para fora disso.

“Que a gente considere a operação da nossa mente dentro da perspectiva de Visão, Meditação e Ação – ensinamentos de Garab Dorje. O ponto central seria Visão. Essa noção de Visão está sendo trabalhada longamente – olhamos o tempo todo isso”.

 

No Surangama, Chenrezig vai trazer o sentido da audição, que pode ser rapidamente sintetizado por essa experiência:  batemos o sino e se passamos a ouvir o som do sino, o som do sino obscurece os outros sons, por quê? Porque quando focamos a mente numa coisa, as outras perdem a nitidez, então quando a gente ouve o sino, o que aparece aos olhos também não importa, o que aparece ao tato também não importa, os outros sentidos também não importam, nem a mente. Então a gente ouve o sino. Com o sino ganhamos a concentração em um objeto. Esse objeto “som” vai progressivamente desaparecendo e nos deixa numa atenção sem objeto, que é uma abertura sem objeto. Quando isso acontece, se você para de respirar é porque está atravessando. Mas não é que a pessoa decidiu parar de respirar, é que com a atenção ela para. Neste momento não estamos operando com olhos, nariz, ouvidos, língua e tato. Nós não estamos pegando objetos relacionados a olhos, ouvidos, nariz, língua e tato e construindo luminosamente perspectivas e discorrendo através disso. Nós não estamos fazendo isso. Assim, a sexta consciência está parada. Ali dentro não tem uma identidade, não tem um propósito, não tem nenhum lugar de onde eu esteja indo ou vindo, eu estou simplesmente parado. Se nós meditarmos desse modo, ou seja, se fizermos isso várias vezes e repousarmos desse modo, num certo momento vamos transitar para fora das oito consciências. O sinal disso é que quando retornamos à operação a partir das múltiplas consciências, a gente vê perfeitamente que aquilo é uma identidade operando segundo condicionantes. A gente reconhece aquilo como um estado particular, limitado, pois estávamos nessa abertura de um estado muito amplo. Se voltarmos nossa atenção para dentro, para aquilo que está atento, aí nós iniciamos verdadeiramente a prática. Então vamos desenvolver visão, a capacidade de olhar a própria mente. A mente vai olhar a mente, aí nós estamos iniciando o caminho. Esse caminho já está fora das oito consciências. 

 

Vamos supor que por alguma razão a gente ache isso difícil. Se a gente quiser aproveitar o tempo, é super importante que mesmo dentro das oito consciências (pois a gente não conseguiu sair, ainda estamos dentro das oito consciências) que a gente consiga olhar os múltiplos objetos como vazios e luminosos. Essa é uma prática maravilhosa. A gente olha como as realidades vão surgindo luminosamente. Isso também nos ajuda a estabelecer progressivamente a visão, o que vai nos levar mais adiante a atravessar para fora das oito consciências. Se a gente não conseguir ver o aspecto luminoso, a gente pode tentar ver o aspecto vazio, ou seja, perceber que as coisas assumem uma forma e depois eu posso dar outra forma para aquilo, e depois posso dar ainda outra forma para aquilo, e aí as coisas surgem vazias e não duais com a nossa própria mente. Então podemos  longamente contemplar a realidade deste modo.

 

Se não conseguirmos fazer isso,  a gente pode desenvolver uma natural compaixão por todos os seres, a gente entende os seres como essencialmente inseparáveis uns dos outros. Nós não temos vidas individuais, a nossa vida é completamente inseparável da vida dos outros seres. Existe a vida e existimos nós dentro da vida. Não é que a gente porte uma vida, nós existimos por dentro da vida, e beneficiar todos os seres significa beneficiar essa vida como um todo. Então, desse modo, desenvolvemos compaixão por cada ser, entendendo que cada ser é totalmente inseparável de nós. Na visão tibetana, todos os seres são nossas mães, então nós olhamos com esse olhar, com esse olhar espantado, admirado de ver a vida como um todo sustentando cada ser, que tem uma consciência que pensa que é individual, separado, que existe por si mesmo. 

 

Se não conseguirmos entender isso, aí a gente desenvolve uma compaixão comum, a gente olha os seres como a gente olha os seres que a gente ama. Procura olhar todos os seres como seres que a gente ama, sem distinguir. Naturalmente nós temos seres mais próximos e seres mais distantes e isso vai tensionar nossa prática. Mas nós olhamos com o nosso melhor olhar, da forma mais compassiva, mais ampla que a gente puder desenvolver. 

 

Se a gente tiver dificuldade de fazer isso, aí a gente pratica Metabhavana, a gente olha todos os seres e diz: que os seres encontrem a felicidade, se afastem do sofrimento, encontrem as verdadeiras causas da felicidade e se afastem das verdadeiras causas do sofrimento. Essa é uma prática poderosa que já inclui a vacuidade. À medida que olhamos desse modo, os seres vão mudando diante do nosso próprio rosto. Diante dos nossos próprios olhos os seres mudam. Então nós vamos mudando o mundo simplesmente pela prática de Metabhavana. 

 

Se não pudermos fazer isso, aí nós procuramos entender o carma. Se fizermos ações favoráveis, elas devem resultar em algo favorável, se fizermos ações negativas elas provavelmente devem gerar resultados negativos e sofrimento. Então a gente evita as ações negativas e promove as ações positivas. Cuidadosamente a gente gera méritos e evita os carmas. 

Essa dimensão dos méritos e dos carmas é desafiadora, pois, às vezes, quando nós desenvolvemos ações positivas para alguns seres, isso resulta em ações negativas para outros. E às vezes quando exercemos ações negativas para alguns seres, isso resulta em ações positivas em outra direção. Então, ficamos tensionados por essa incapacidade de atingir uma perfeição no que diz respeito aos méritos e aos carmas. E nos movemos em meio a isso. O próprio Buda diz: se você não consegue fazer ações positivas, pelo menos não faça ações negativas. Essa noção de ações positivas e negativas, de carmas e méritos, ainda que não seja absoluta, ela é um referencial importante, porque internamente nós decidimos fazer ações positivas, e essas ações positivas, nesse sentido, já existem. Internamente, a gente decide abdicar das ações negativas, mesmo que no ambiente externo haja contradições, internamente nós temos essa motivação efetiva.

 

Se não conseguimos fazer isso, a gente poderia pelo menos tentar ajudar os seres que estão em grande dificuldade. A gente pode desenvolver um nível de compaixão e de solidariedade pelos seres que estão em grandes dificuldades. No entanto, se nós desenvolvemos uma insensibilidade, essa insensibilidade significa um autocentramento e esse autocentramento significa uma fixação às bolhas das nossas realidades como prioritárias. Se desenvolvermos essa fixação, é completamente inevitável que em algum momento vamos deslizar para algum mundo de sofrimento. Quando nós estivermos em algum mundo de sofrimento e se tivermos algum traço de mérito, a gente deveria rezar ao Buda, fazer prostrações diante de um altar que a gente encontrar. Porque isso, do ponto de vista do mundo, não faz nenhum sentido, mas no momento em que nós temos essa raiz de mérito, da visão que ultrapassa as realidades comuns, quando fazemos prostrações diante de um altar, nós já estamos imediatamente saindo do reino dos infernos, instantaneamente estamos abandonando os reinos do sofrimento. 

 

Agora, se não tivermos a capacidade de fazer prostrações diante do altar do Buda, que a gente faça prostrações diante de algum altar de alguma deidade de qualquer tradição que represente os valores elevados e a visão ampla. Então, se pudermos fazer isso, saímos também instantaneamente dos infernos. Assim, seguimos a nossa prática.

 

Se pudermos compreender que, enquanto nós praticamos, fazemos o nosso puja, iniciamos a nossa prática, sentamos em silêncio, nós estamos construindo uma identidade naquele momento – que é a identidade do praticante – então nós deveríamos dizer conscientemente “nesse momento, eu me visualizo como praticante” e aí nós tomamos refúgio. Esse praticante autossurgido toma refúgio e faz a sua prática. Ao final, ele dissolve a prática e dissolve a sua identidade ilusória de praticante. Antes de se levantar, ele retoma uma identidade de bodicita para benefício de todos os seres. É muito importante que ele desenvolva a capacidade de não se fixar nem mesmo na identidade de praticante, reconhecendo a identidade de praticante como uma construção luminosa. Essa é a forma pela qual nós atravessamos o rio do sofrimento no barco de sati, no barco da lucidez, e abandonamos o barco ao final. Se nós ficarmos fixados às identidades, nós não vamos atingir a realização e por outro lado, as nossas identidades construídas – incluindo a de praticante – podem nos levar paulatinamente aos reinos de sofrimento também. 

 

Deixo essas sugestões como reflexões para 2022!

O vídeo completo está disponível no Canal do Lama no YouTube:

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