Relato de Denise Patrício, uma haijin ou poeta de haicai, sobre suas oficinas de poesia para crianças
A poesia é uma ferramenta muito hábil, compreendo. Pode realmente tocar as pessoas. Provocar reflexões necessárias. Além do aspecto sublime e belo, também tem a função social de denúncia, de alerta.
A poesia haicai tem sido uma prática concomitante ao caminho de praticante que eu venho experimentando. O Darma reverbera e se torna o filtro da construção desta linguagem.
Apoiada na contemplação da natureza, a poesia haicai clássica se oferece como um exercício da linguagem sucinta, do desprendimento do ego a partir do treinamento de falar sobre o que se vê sem necessariamente correlacionar com o que se sente ou com a opinião particular do poeta.
Observar as transformações da natureza em seus ciclos, o fluxo dos seres, a originação dependente, a coemergência, a luminosidade da mente, o surgir e o cessar de cada movimento, a impermanência, o sofrimento, os reinos. Todo o Darma ecoa na vida, e este momento do fazer poético é também um momento meditativo, no sentido de poder constatar os ensinamentos vivos diante de nós. Tornamo-nos observadores atentos na captura do instante que também nos revela.
Estar no silêncio dos jardins, nos bosques, em diferentes paisagens fotografando com o olhar e com os sentidos o aqui e agora, no exercício da presença, sem pressa, sem expectativas, é o que faz da prática da poesia haicai um método de meditação na ação. Vemos a rica multiplicidade da natureza dando o seu espetáculo. Contemplamos e podemos nos abstrair no espaço anterior às manifestações, perseguindo a sua origem, significação e sustentação.
Minha motivação para a prática da poesia haicai diz respeito a uma forma de ação no mundo que privilegia os valores da atenção plena, do cuidado, do preciosismo dos ensinamentos da cultura de paz. Ensinamentos que são a base do iogue do cotidiano. A partir da percepção da necessidade de oferecer e de acreditar neste modo de vida, venho treinando estar cada vez mais inteira, mais lúcida nos meus afazeres. Em sintonia e respeito comigo mesma, com o outro mais próximo, com a comunidade, com o sistema e com o planeta. A prática da poesia haicai está plenamente em sintonia com este jeito de viver.
Os textos que faço são veiculados em forma de fanzines artesanais, publicados de maneira independente, utilizando todo tipo de papel descartado como caixas de leite, sachês de chás, livros e revistas usadas, caixas de incensos, cilindros de papel higiênico. Estes fanzines ou zines são comercializados em feiras de rua na região do Vale Europeu, em Santa Catarina. Nestas feiras também participo de uma Roda de Poesia com outros colegas poetas e amantes da poesia. Há sempre um microfone aberto para a declamação e leituras. Foi todo este envolvimento que chamou atenção das escolas para que eu estivesse junto com as crianças oportunizando esta experiência com a poesia haicai.
Na primavera de 2016, realizei minha primeira oficina de poesia haicai com crianças. Eram crianças de 9 a 12 anos ou que tivessem o domínio da linguagem escrita. O convite partiu da casa Espaço Celeste, em Indaial (SC), que oferece aulas de yoga e muitas outras práticas terapêuticas voltadas para o autoconhecimento e para a cura.
Acolhemos as crianças e após uma apresentação inicial, uma breve fala sobre o haicai, realizamos alguns exercícios de alongamentos e respiração para trazer a atenção para o momento. Munidas de papel e lápis, então, as crianças foram convidadas a circular por todo o jardim, fazendo pequenas pausas, abrindo o olhar e os demais sentidos, para capturar o movimento e registrar as oferendas da natureza Anotaram estes flagrantes, escrevendo aquilo que saltava aos seus olhos.
Uma lista espontânea de acontecimentos como o voo de borboletas, o colorido das flores, o frescor do vento, a dança das folhagens, a luz atravessando as árvores, o formato das plantas e frutos, além de alguma percepção sensorial ou emoção relacionada a algum fato específico, compuseram esta lista que posteriormente foi consultada para compor os poemas.
Com a natural ludicidade e simplicidade da linguagem infantil, as crianças alcançaram o dizer poético, direto, objetivo da poesia haicai, com muita facilidade.
a borboleta voa
conforme
o vento
Laís – 9 anos/ Primavera 2016
formigueiro
quando a gente toca
dá desespero
Letícia – 9 anos/Primavera 2016
o tráfego das cores
o cheiro
da primavera
Helton – 11 anos/Primavera 2016
Para o ano de 2017 resolvi estender a prática da poesia haicai em um calendário que percorresse as quatro estações do ano, na tentativa de acompanharmos e colhermos as transformações na paisagem do jardim da casa.
Isso nos fez observar que estas mudanças não são tão óbvias, especialmente no que diz respeito às oscilações climáticas. Podemos ter dias com cara de verão no outono e também no inverno. Dias úmidos em que os mosquitos não dão tréguas.
cheiro muito bom
mosquito muito chato
folha que pica
Mateus – 10 anos/Outono 2017
outono é bom
outono na coberta
ventinho fresco
Gabriel – 7 anos/Outono 2017
as folhas caem
temperatura baixa
outono chegou
João – 7 anos/Outono 2017
Assim, percebemos que cada estação modifica a paisagem a partir do comportamento das plantas. Ora o jardim está com mais frutos, ora com mais flores, ora com mais sementes, mais secos, mais verdes ou mais coloridos. A luz e a intensidade do sol também é diferente. Colhemos neste percurso um grande buquê de impressões a partir do qual extraímos as belezas e as surpresas encontradas pelo caminho.
aranha verde
paisagem de inverno
tece a teia
Maria Eduarda – 10 anos/Inverno 2017
tempo de hoje
borboletas e flores
paz no inverno
Melissa – 8 anos/Inverno 2017
sol, sol és
radiante para mim
e combina com o céu
Vitória – 10 anos/Inverno 2017
A partir da prática do olhar e do convívio no ambiente natural ficamos espontaneamente mais atentos para fazermos trocas e aprendizagens. Vamos desejando saber o nome dos frutos, das flores, das plantas. Vamos aprendendo a caminhar sem causar tanto impacto e a retribuir com o nosso cuidado o benefício que experimentamos apenas em estar próximos da natureza. Observar a horta, os chás, em meio ao jardim, também nos inspira a acrescentarmos saúde em nossas vidas.
Percebemos que levamos este olhar para outros jardins e para a percepção da ausência e necessidade deles. Lindamente senti a alegria de despertar nas crianças esse olho que busca o perceber silencioso e gentil. O olhar mínimo e amplo que celebra e agradece o tecido generoso que promove a vida.
No final de cada encontro foi realizado um piquenique, convidamos os pais para se juntarem a nós neste momento, e as crianças fizeram a leitura de seus poemas.
coração fresco
é inverno no jardim
amo yoga
Helena – 9 anos/Inverno 2017
mosquito no frio
no espaço celeste
é o inverno
Laís – 7 anos/Inverno 2017
as borboletas
dançam apaixonadas
na flor laranja
Eduarda – 10 anos/Inverno 2017
O projeto despertou o interesse das escolas públicas municipais. Realizei um encontro com vinte crianças do quarto ano do Ensino Fundamental – crianças com 9 anos de idade – seguindo a mesma proposta de interação com o meio natural, dentro da própria escola. Depois, em sala de aula, desenvolvemos a produção do texto poético a partir da captura e registros efetuados na caminhada e permanência no ambiente natural. Descobrir o jardim da escola, muitas vezes negligenciado, ter contato com espécies estudadas nos livros, surpreender-se como um pé de algodão, foram algumas das experiências marcantes e importantes na formação do olhar sensível destas crianças.
A oficina de poesia haicai no Colégio Municipal de Indaial desencadeou o desenvolvimento de um projeto interdisciplinar envolvendo o estudo dos ideogramas, vários aspectos da cultura japonesa e aulas de informática com as digitações e ilustrações dos poemas. Foi surpreendente a qualidade de expressão destas crianças, inclusive a constatação admirada da orientadora de ensino com as crianças que apresentavam dificuldades com a escrita.
Sinto-me comovida ao acompanhar a germinação desta semente chamada poesia haicai. Uma semente que foi – e continua sendo – plantada e cultivada dentro do coração desses pequenos seres, ávidos por momentos como os que foram experimentados.
O olhar poético sobre todas as manifestações, resume-se ao espaço que damos para nos conectarmos à tranquilidade, à serenidade, que nos possibilita ver as sutilezas e a realidade tal como se apresenta, acolhendo cada expressão em sua particular possibilidade.
SOBRE A AUTORA: Denise Patrício nasceu em Indaial, Santa Catarina, em 1966. É formada em Pedagogia e pós-graduada em Ensino da Arte pela FURB/Blumenau. É autora do livro infantil Quem já viu um Bugio? (Editora da FURB, 1999) – Troféu Boi de Mamão, prêmio da Câmara Catarinense do Livro, no ano de 2000. Premiada também com a publicação do livro Retratos do Mundo Flutuante, no Concurso Adair José de Aguiar de fomento à literatura indaialense, 2014, na categoria contos/crônicas.
É artista visual, compositora e se dedica a constantes retiros na natureza como refúgio de contemplação e alimento para as produções literárias. Publica de forma artística, pela Editora Independente um.por.todos, zines e plaquetes de haicais.
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2 Comentários
florescer poesia
no jardim linguagem
sorrir primavera
Parabéns por compartilhar esta experiência! Belo e instigante relato.
Denise é uma poeta cujos textos nos emociona.