Eihei Dogen, pintura de Kazuaki Tanahashi

Por que Dogen?

“As palavras de Dogen podem ser um bom lembrete dos milagres de cada instante”


Por
Revisão: Caroline Souza
Tradução: Gabriel Madeira

Nas vésperas da chegada de Kazuaki Tanahashi Sensei ao Brasil, a Bodisatva publicará três textos de sua autoria até o início de junho. Celebrando este encontro tão auspicioso organizado pelo Centro de Estudos Budistas Bodisatva (CEBB), faremos uma contagem regressiva especial: até a data de sua vinda, estaremos publicando um texto por semana do livro Painting Peace: Art in a Time of Global Crisis, no qual Kaz Sensei relata — através da prosa, da poesia, de cartas, dentre outros — histórias de uma vida dedicada à busca pela paz e pela justiça através da arte.

O primeiro texto, não por acaso, trata de sua profunda relação com os escritos do mestre Zen Dogen e da enorme influência que o fundador da escola Soto Zen produziu na sua vida e na sua arte. Com cerca de vinte anos, Kaz Sensei teve seu primeiro contato com os poemas e ensaios do mestre e, alguns anos depois, iniciou uma parceria com Soichi Nakamura para traduzi-los para o japonês moderno. Posteriormente, ao visitar o templo de Shunryu Suzuki nos Estados Unidos, Kaz inicia o processo de tradução de alguns destes textos para o inglês.

Kaz aterrissa em terras brasileiras no dia 1 de junho e permanece até o dia 25. Durante todo este período, ele oferecerá palestras, retiros e oficinas em diversas cidades. Confira a programação completa.

“A iluminação é descobrir o valor infinito de cada momento da sua vida e da vida dos outros seres, e permitir que tal realização permeie todas as nossas ações.”

—Kazuaki Tanahashi

Que este encontro beneficie a muitos!


Dogen, um mestre Zen do século XIII, disse: “Milagres são praticados três mil vezes pela manhã e oitocentas vezes ao entardecer.” Em seu tempo e de fato durante boa parte da história da prática monástica budista, a refeição do meio-dia era a principal e muitas vezes a última. As pessoas ficavam sonolentas à tarde quando tinham um milagroso pedacinho de tempo livre.

Um atrativo de Dogen para muitos de nós em um tempo de ciência e tecnologia avançadas é que ele não considerava milagres como fenômenos mágicos ou sobrenaturais que podiam ser invocados por rituais ou preces. De acordo com ele, milagres são tais atividades diárias como buscar água e carregar lenha.

Todo encontro que temos é um milagre. Cada respiração é um milagre. Mas, como nós costumamos focar nas imperfeições, faltas e fracassos, tornamo-nos irritados e infelizes. Desta forma, as palavras de Dogen podem ser um bom lembrete dos milagres de cada instante.

Ensō da série “Miracles of Each Moment”de Kazuaki Tanahashi Sensei

As pessoas perguntam: “Quantos anos você levou para organizar o livro de Dogen?” Eu às vezes digo, “Levou-nos setecentos e cinquenta anos.” Isso é verdade se levarmos em conta que o Budismo praticamente não existia no Ocidente até pouco tempo. No século XVI, um missionário português relatou um estranho tipo de culto demoníaco no Japão. Quando esta era a percepção típica do budismo pelos europeus, não havia necessidade de Dogen no Ocidente.

O Zen só foi formalmente introduzido nos Estados Unidos em 1893, quando Shoyen Shaku deu uma conferência no Parlamento das Religiões do Mundo em Chicago. D. T. Suzuki, um de seus estudantes, escreveu muito sobre o Zen, mas raras vezes mencionou Dogen.

Nos meus 20 anos, quando era um artista iniciante à procura de um guia espiritual, li os poemas e ensaios de Dogen, que me deixaram impressionado. Aqui está a passagem que mais me inspirou: Nascimento (vida) é como andar de barco. Você levanta as velas e voga com o remo. Apesar de você remar, o barco lhe permite navegar e sem o barco você não poderia navegar. Mas você anda no barco e seu andar faz o barco ser o que é. Investigue um momento como esse. Em tal momento, não há nada a não ser o mundo do barco. O céu, a água, e a margem são todos o mundo do barco.

Estive estudando literatura e filosofia europeia, os escritos dos existencialistas em particular. Camus aponta a impermanência da vida ao dizer que todos nós estamos no corredor da morte. Na minha opinião, os existencialistas expressaram desamparo, desespero e tédio porque eles tentaram e, de modo geral, falharam em encontrar uma “saída” para essa situação de abandono depois de declarar que “Deus está morto”.

Quando eu vi a positividade de Dogen, era como se ele estivesse apresentando o próximo passo para um entendimento existencialista. Eu não tinha muita firmeza sobre o que Dogen estava falando e, talvez por causa disso, fui atraído para ele. Em 1960 eu fiz minha primeira exposição de arte em Nagoya, Japão; aconteceu em uma galeria alugada, e foi uma exposição de seis dias, como era comum no Japão. Havia um velho homem, Soichi Nakamura, que veio à minha exposição todos os dias. Nós nos tornamos amigos. Eu descobri que ele era um talentoso erudito e mestre Zen.

Eu disse a Nakamura Roshi: “Dogen é incrível, mas parece que poucas pessoas entendem seus escritos. Seria de grande ajuda a muitos se você pudesse traduzir Dogen para o Japonês moderno.”
Ele disse: “Eu traduziria, se você traduzisse comigo.”
Então eu disse, “Ficaria feliz em trabalhar com você.” Pensei que iria trabalhar com ele por alguns anos, terminar o trabalho e em seguida fazer algo mais interessante.

Traduzir as palavras paradoxais do mestre Dogen do japonês e chinês medieval para o japonês moderno foi extremamente penoso. Às vezes nós trabalhávamos um dia inteiro em apenas uma única linha. Comecei a estudar sânscrito – que é essencial para entender o Budismo Mahayana – com um tutor, além de chinês e de filosofia budista.

Em determinado momento eu fui convidado a expor em Washington, DC. Era janeiro de 1964. Eu tinha trinta anos de idade quando aterrissei em Honolulu[1] em minha primeira visita aos Estados Unidos. Ali eu conheci Robert Aitken, que ainda não era um Roshi. Ele me deu uma lista de lugares Zen para visitar no continente e sugeriu que eu encontrasse o Reverendo Shunryu Suzuki em São Francisco.

Eu visitei seu templo, Sokoji, e tive uma conversa amigável com Suzuki Roshi por cerca de uma hora. Ele deveria estar se perguntando quem ou o que eu era. Finalmente disse: “Você é um vendedor de mercadorias budistas?
Eu disse “Não, não sou. Eu sou um estudante do mestre Dogen”.
Então eu disse a Suzuki Roshi, “Eu sei que você ensina zazen aqui. Que tipo de texto você usa?”
Ele disse “O Arquivo da Falésia Azul”[2]
Eu disse, “Por que não Dogen?”
“Dogen é muito difícil para os estudantes americanos.”
“Você não acha que deveria apresentar o seu melhor quando ensina estudantes estrangeiros? Não importa se eles não entendam. Você não acredita que Dogen é o seu melhor?”

Depois de alguns momentos de silêncio, ele disse “Eu me programei para dar uma palestra aos meus alunos no domingo. Você poderia, por favor, falar sobre Dogen por mim?”
Eu jamais havia dado uma conferência pública em inglês. Peguei uma cópia do seu exemplar de Dogen e escrevi uma palestra. Meu tópico era “tempo” baseado no “Ser Tempo”, um fascículo da maior obra de Dogen, Shobogenzo, ou O Tesouro do Verdadeiro Olho do Dharma.

Kaz Tanahashi discutindo os ensinamentos do Mestre Dogen no Mountain Cloud Zen Center (2017).

Após mostrar meu trabalho artístico na América do Norte por um ano, eu voltei para Honolulu e traduzi “Genjo Koan”, outro fascículo de Shobogenzo, com Bob Aitken.
Voltando ao Japão, de repente eu achei o trabalho de traduzir Dogen em japonês moderno muito mais fácil. Traduzi-lo para o inglês mudou a dinâmica. Quando você traduz algo para outra língua, você precisa desconstruir a estrutura da frase original e tentar encontrar a melhor sintaxe possível para fazer com que ela tenha sentido naquele idioma. Algum tipo de colapso ocorreu, o que abriu minha mente.

Então eu disse a Nakamura Roshi: “Poderia ser uma boa ideia você me deixar fazer a tradução sozinho e comentar meu rascunho depois.” Eu ditei minha tradução do japonês moderno em um gravador e pedi a um time de voluntários para transcrevê-la. Nós completamos os noventa e cinco fascículos do Shobogenzo, que foram publicados em quatro volumes no japonês original e moderno, com um volume extra do glossário de Shobogenzo em 1972. Levamos doze anos.

A certa altura, pensei em traduzir mais dos escritos de Dogen para o inglês. Como Suzuki Roshi havia falecido, eu escrevi a Richard Baker Roshi, seu sucessor como abade do Centro Zen de São Francisco. Quando eu o conheci em Kyoto em 1975, expressei meu desejo de colaborar com aqueles que estavam praticando o Zen na tradução de Dogen.

Baker Roshi perguntou-me diretamente: “Você é budista?”
Eu disse: “Bem, eu sou um estudioso budista.”
“Por que você não vem para o Centro Zen trabalhar conosco?” ele disse.

Em 1977, eu me mudei para São Francisco e trabalhei no Centro Zen por sete anos. Lua em uma Gota de Orvalho (Moon in a Dewdrop) foi o resultado da colaboração com seus membros daquele período. O Centro Zen e eu trabalhamos juntos depois que me tornei um artista e escritor freelancer. Nós traduzimos outros dois livros de Dogen: Iluminação Se Revela (Enlightenment Unfolds) e Além do Pensar (Beyond Thinking).

Dogen era extremamente sério e formal, um líder espiritual elevado e um excelente organizador comunitário. Eu sou o oposto. Gosto de ser informal. Gosto de pensar além do limite de qualquer tradição e identifico a mim mesmo como alguém que não se afilia a nenhuma delas. De maneira nenhuma Dogen me consideraria um bom aluno. Mas sou atraído por sua visão de mundo e ensinamentos e desejo apoiar modestamente àqueles que seguem seu caminho.

Dogen disse:
“Pela prática contínua de todos os budas e ancestrais, sua prática é realizada e sua grande estrada se abre. Pela sua prática contínua, a prática contínua de todos os budas é realizada e a grande estrada de todos os budas se abre. Sua prática contínua cria o círculo do caminho.
Recebemos um grande ensinamento e nós o realizamos. Recebemos uma grande herança, seja esta uma herança humana comum ou espiritual, e somos nós que a tornamos vital. Professores são estudantes e estudantes são professores”.

Alguns anos após trazer os ensinamentos Zen da China, Dogen tentou construir um pequeno salão para os monges. Ele disse em sua carta de angariação de fundos: “Nós iremos engajar-nos completamente em cada atividade para cultivar condições férteis para transformar as dez direções.” Esta é uma declaração ultrajante. Ao encarregar-se de cada mínimo detalhe da vida – sentar, andar, cozinhar e limpar – ele queria mudar o mundo.

Uma de suas tarefas foi estabelecer uma comunidade de praticantes ao encorajar seus membros a serem sensíveis aos sentimentos de outras pessoas, serem justos e abertos e não interferirem nas responsabilidades dos demais. O que Dogen estava fazendo era pequeno, mas o efeito de seu pensamento e prática provou ser enorme, e sua influência ainda aumenta.

É irônico e inspirador que estar totalmente engajado em cada atividade, enquanto trabalha com os outros harmoniosamente, possa ser a via mais imediata para produzir transformação em larga escala. Este é um tempo emocionante para aqueles de nós que amamos Dogen. Seu trabalho é amplamente estudado não apenas em centros de Darma e monastérios, mas também em universidades prestigiosas. Muitos outros acadêmicos e praticantes estão engajados em traduzir os escritos de Dogen. Mais de cinquenta livros foram publicados sobre Dogen em inglês. E eu sigo traduzindo mais de seus escritos. Por quê?

Porque eu simplesmente amo Dogen. Ele me ajuda a viver harmoniosamente comigo mesmo no momento e com os outros. Ele é sábio, criativo e atemporal. Além do mais, ele tem um otimismo absoluto. Quando os problemas que nos circulam são enormes e tendemos a ficar cínicos e desamparados, precisamos ser encorajados com positividade – a confiança que cada ação que fazemos tem o poder de transformar a nós mesmos e aos demais.

[1] Capital do Havaí.
[2] N.T: The Blue Cliff Record, conjunto de 100 koans compilados na China durante a dinastia Song em 1125 e depois expandidos até sua forma atual pelo mestre Zen Yuanwu Kequin (1063 – 1135).
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3 Comentários

  1. Claudia San disse:

    🙏🏻🙏🏻🙏🏻💎💎💎

  2. Will disse:

    Eu só agradeço!

  3. Profunda e serena analise/reflexão

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