Elizabeth Mattis Namgyel nos convida a posicionar nossa mente com curiosidade e abertura, como quem olha pela primeira vez através de um microscópio, com uma experiência de fascínio.
Nos dias 11 e 12 de outubro Elizabeth Mattis Namgyel ofereceu pela primeira ensinamentos no Brasil. Sua vinda, a convite do Instituto Paz e Mente, coincidiu com o lançamento de seu segundo livro, A Lógica da Fé (Lúcida Letra). O livro é uma verdadeira declaração de amor à sabedoria de pratityasamutpada e aos ensinamentos de Prajanaparamita. Em vários momentos, a autora nos convida a uma aproximação prática a esses conceitos, através de meditações guiadas, que ela chama de “investigações”.
No trecho abaixo, Elizabeth nos introduz à primeira dessas investigações, nos convidando a posicionar nossa mente com curiosidade e abertura, como quem olha pela primeira vez através de um microscópio, com uma experiência de fascínio. A Bodisatva aspira que você de fato coloque em prática essas instruções preciosas e se você quiser ouvir esta investigação e as outras contidas no Lógica da Fé em áudio, a Lúcida Letra está nos oferecendo em seu site essas gravações em português, na voz de nossa querida Jeanne Pilli, como um presente adicional ao livro. Não tem desculpa para não transformar a teoria em prática!
No momento em que você começa a ponderar que as coisas talvez não sejam o que aparentam ser, toda a estrutura de sua delusão começa a desmoronar.
–Aryadeva
Quando começa a entender os mecanismos da delusão, você passa a ter acesso a uma poderosa escolha: você se deixa levar pelo impulso de aceitar tudo o que vê como real ou se sente preparada para explorar a possibilidade de as coisas não serem limitadas aos seus pensamentos sobre elas? Essa é uma decisão-chave. A princípio pode parecer óbvio: “A escolha de ver através da delusão, por favor!”. Mas isso pode não ser tão fácil de fazer quanto você pensa. A maioria de nós dá importância excessiva às nossas verdades, mesmo que isso doa. Quando assoberbados por pensamentos e emoções aflitivas, pode parecer que nós temos pouco ou nenhum controle, como se estivéssemos subjugados a um tipo de comando biológico. Muito provavelmente você tem sofrido continuamente por seus impulsos reativos, mas, ainda assim, se vê fazendo as mesmas coisas de novo e de novo. Você deseja desesperadamente mudar, mas o que fazer a respeito desses hábitos?
Eu trago tudo isso à tona porque, em teoria, sim: você tem uma escolha. Mas a habilidade de ativamente apoderar-se dessa escolha é algo que você terá de cultivar. A maioria de nós não está habituada a permanecer aberta. Nós não entendemos a natureza de nossos pensamentos e emoções. É necessária alguma sabedoria investigativa para mudar o rumo da mente reativa.
Meu professor uma vez me falou que o melhor que ele poderia fazer por qualquer pessoa é levá-la à autorreflexão: a olhar para a própria mente e a própria experiência de forma aberta, livre de julgamentos. Via de regra, não estamos acostumados a olhar para a mente de maneira simples e direta. Como muitos, você pode pensar que a autorreflexão honesta implica encarar as coisas assustadoras que geralmente você tenta evitar; e, normalmente, suas tentativas de encarar as coisas terminam em uma afirmação desconfortável: “Uau, eu sou mesmo bem neurótica”.
Ok, mas e depois? Você pode pensar que agora é hora de colocar sua história de lado e ir meditar. Mas, enquanto medita, você fica ainda mais assoberbada pela abundante energia de seus pensamentos, percepções e emoções. O que você faz com tudo isso? Você se pergunta até se é mesmo possível apreciar a atividade de sua mente – aquela tralha toda que você chama de vida.
Nas próximas seções, eu irei lhe apresentar algumas instruções budistas antigas sobre como olhar para a experiência com curiosidade e abertura, tendo por base o respeito pela expressão natural de pratityasamutpada. O caminho investigativo associado ao insight de pratityasamutpada, tradicionalmente referido em sânscrito como Madhyamaka, ou Caminho do Meio, proporciona uma maneira de explorar a experiência sem cair sob o domínio das aparências. Conforme discutimos no Capítulo 1, é porque entendemos equivocadamente as experiências como tendo características intrínsecas que manifestamos delusão. Mas, quando você direciona seu foco para a natureza da dimensionalidade aberta, sua habilidade de ver além das aparências torna-se possível.
Como começar? Primeiramente, é imperativo se aproximar de sua investigação com uma atitude humilde e aberta. Imagine a qualidade da mente que é evocada quando, por meio de um microscópio, você olha algo que nunca viu antes, ou quando contempla as estrelas por intermédio de um telescópio pela primeira vez. Você pode olhar para todas as suas experiências com o mesmo fascínio. De fato, você encontrará algumas similaridades entre a exploração científica e a investigação que está fazendo aqui. Ambas dependem da observação direta. A diferença está no fato de que, enquanto os cientistas, em sua busca por objetividade, fazem de tudo para silenciar aquele que percebe, aqui você irá exatamente explorar a natureza do saber e sua relação com aquilo que se percebe. Afinal, é impossível retirar verdadeiramente a cognição de qualquer pesquisa. Por conta disso, o modo pelo qual se olha ou se investiga tem a máxima importância.
Na abordagem budista, não começamos com uma hipótese ou com um projeto experimental. As instruções em si não irão ditar o que você deveria ou não deveria ver, sentir ou pensar. Isso você descobrirá por si mesma. De fato, os ensinamentos nos encorajam fortemente a não atribuir nenhuma verdade ou sentido à experiência. Eles não têm por objetivo afirmar, resolver ou desaprovar qualquer coisa. Isso atrapalharia sua habilidade de perceber as coisas de uma maneira nova e direta. Ao contrário, o objetivo é posicionar sua mente para aquilo que eu chamo de experiência completa – ou seja, quando você olha diretamente para a expressão natural de qualquer coisa que surja, sem tentar capturar, rejeitar ou desvendar o que aquilo é ou não é.
O neurocientista Francisco Varela chamou esse tipo de investigação direta de “ciência em primeira pessoa”. Ele ficou intrigado com a metodologia antiga do Buda. Ele entendeu que ao incluir a consciência na investigação era possível adquirir mais informação sobre a própria consciência e a experiência do que em todas as teorias que a ciência, a psicologia ou a filosofia já haviam desenvolvido ao longo de sua história.
Antes de seguirmos, eu gostaria de esclarecer o que eu quero dizer quando uso o termo experiência. Experiência aqui se refere àquilo que surge diante de sua consciência ou, neste caso, àquilo que você coloca em foco como sendo o objeto de sua investigação. Nos capítulos seguintes, aplicando métodos, nós iremos deliberadamente trazer à mente certos objetos de experiência, que podem ser materiais (como uma pessoa ou um objeto inanimado) ou um momento de consciência (como uma emoção, uma percepção sensorial ou um pensamento). O que quer que surja para sua consciência, você pode examinar. Você pode até mesmo trazer sua atenção para aquele que apreende ou para a apreensão em si.
Ao refletir sobre o objeto de sua consciência, pode ser que você pense em uma experiência interna limitada às fronteiras de seu corpo. É aí onde a maior parte das pessoas supõe que sua consciência habita. No entanto, pode ser que você perceba que, quando senta em quietude e observa essas experiências internas, elas comumente parecem vir até você desde fora.
Ademais, aquelas coisas que você acha que habitam fora das fronteiras que a delimitam não podem ser separadas das percepções que você tem delas. Portanto, ainda que pareça, por vezes, que essas investigações são meramente uma exploração voltada para dentro, à medida que você observa sua experiência, talvez descubra que as linhas que separam dentro e fora não são muito claras. O que é dentro? O que é fora? Difícil dizer.
O que chamamos de experiência é verdadeiramente uma troca divertida entre nossos mundos internos e externos. Não há problema algum com a experiência em si mesma. O problema surge quando a aparência das coisas passa a ofuscar sua natureza, e nós começamos a reagir. Liberar a mente dessa confusão é o único propósito das investigações do Caminho do Meio.
Neste capítulo, nós usaremos nosso próprio corpo físico como o foco ou a base para nossa primeira investigação. Raramente nos damos a oportunidade de notar ou observar com respeito a rica expressão de nosso corpo físico, embora tenhamos todo tipo de julgamentos e ideias sobre ele. A presença real do meu corpo, ou de um corpo, como uma coisa singular e claramente delineada pode não existir como você acha que existe. Quando você traz consciência aberta para a experiência do corpo, você irá encontrar um universo infinito, rico em informação. E notará que olhar para seu corpo demanda a participação de seu ser por inteiro.
Para experimentar como posicionar nossa mente para o insight, vamos começar nossa investigação por aqui.
Encontre uma posição sentada que seja confortável e natural, de forma que você esteja relaxada, mas atenta. O significado do termo relaxada aqui se refere a aquietar o hábito de continuamente bloquear as experiências não desejadas ou perseguir as desejadas.
Comece trazendo sua consciência para o topo de sua cabeça e devagar faça-a descer por seu corpo. Pode ser que o local para onde você direcione sua consciência se torne vivo em sensações. Se seu corpo está sonolento ou entorpecido, perceba que o entorpecimento em si tem uma sensação própria. (De outro modo, como você poderia identificá-lo e rotulá-lo como entorpecimento?)
Por favor, não julgue o que quer que encontre. Veja o entorpecimento, ou qualquer outra sensação ou percepção, como uma expressão natural e vívida da mente e da experiência.
Você pode notar que observar seu corpo também envolve olhar e ver. Pode ser que você não esteja olhando com seus olhos. Seus olhos podem estar fechados. Mas imagens expressam a si mesmas aos olhos de sua mente. Você pode ter uma imagem visual de sua energia movendo-se através de partes de seu corpo, ou pode imaginar certas partes de seu corpo enquanto deliberadamente move sua consciência de uma área para outra.
Ao continuar, pensamentos surgirão, e não há nenhuma necessidade de bloqueá-los. De todo modo, eles não irão embora. Pensamentos também são a ex pressão natural do surgimento dependente. A mente pensante consegue operar sem que você tenha de se fechar em conclusões – ela tem a habilidade de simplesmente testemunhar e navegar pelo fluxo de eventos que surge e se dissipa. Você pode apreciar a movediça e dinâmica expressão da linguagem e dos conceitos, que pode ser tão fluida quanto tudo o que você absorve por meio de seus sentidos. E se você perceber que está avaliando a experiência ou se perdendo ao reificar rótulos, traga seu foco de volta ao objeto da investigação, o corpo. Mais adiante, tome um momento para apreciar o fato de que sua habilidade de discernimento trouxe você de volta ao prumo.
Continue a deixar qualquer sensação física revelar a si mesma para sua consciência. Em alguns momentos, experimente deliberadamente levar sua atenção a certas áreas de seu corpo. Em outros, sensações físicas fortes irão chamar sua atenção por elas mesmas – talvez uma contração em seu pescoço ou em seu pé, que ficou dormente e está começando a acordar, formigando ou latejando. Perceba como as sensações não estão presas em seu lugar, e como, no momento em que você as observa e tenta localizá-las ou descrevê-las, elas se dissipam.
Nós temos rótulos para o corpo como um todo, como eu, e temos termos para as partes que o compõem, como ossos, músculos, sangue, tendões, costelas, cabeça e pés. Mas não é assim que nós percebemos o corpo quando trazemos uma mente aberta e atenta para a experiência que temos dele. Perceba como o corpo e suas partes são energéticos, espaçosos, vivos e impossíveis de serem localizados.
Eu preciso reconhecer que, algumas vezes, parece que o corpo é um receptáculo para a dor. Mas, ao colocar sua consciência sobre ele, com o tempo, você descobrirá que seu corpo é uma fonte de fascinação. Se você gentilmente voltar sua atenção em direção ao corpo, ele ganhará vida das maneiras mais inesperadas. Mesmo torpor, agitação e áreas contraídas ou doloridas se abrem em experiências menos rígidas, menos sólidas. Não é que investigar o corpo a proteja de sentir aquilo que você não deseja sentir, mas tornará você menos resistente e mais curiosa a respeito daquela experiência diante da qual você normalmente se contrai. Isso irá permitir que sua energia flua e se torne menos restrita. Desse modo, o corpo pode oferecer a você informações valiosas sobre a natureza das coisas, sobre sua mente e sobre ser um ser humano. Talvez você descubra que aquilo que você chama de corpo é um universo incrível em si mesmo e passe a apreciá-lo como nunca antes havia feito.
Essa investigação pode ser longa ou curta, e ter a duração que você queira. Algumas vezes sua sessão pode ter um final natural, quando você se sente determinada e pronta para ir ao encontro do seu dia. Mas, antes, é bom tomar um momento para observar as qualidades de abertura e humildade da mente investigativa, e depois tentar trazer esse mesmo espírito de
curiosidade para seu mundo.
A razão para investigar qualquer experiência, da forma como acabamos de fazer, é ver que as coisas não existem da maneira como aparecem. Olhar diretamente para o corpo, por exemplo, nos desloca de suposições vagas para uma relação direta com a natureza de pratityasamutpada. Quando enxergamos para além de nossas interpretações grosseiras, descobrimos a situação menos tangível e mágica na qual nós de fato vivemos.
Para entender o que eu quero dizer com menos tangível e mágica, vamos tomar outro exemplo, a noção de aqui. Aqui é diferente para cada um. Seu aqui pode ser o meu ali. E, mesmo quando aqui está próximo o suficiente para que nós duas o chamemos de aqui, sob meu ponto de vista, o seu pode estar um pouco perto demais. Ou pode estar muito distante. Aqui é algo intuitivo e pessoal que todos nós experimentamos de forma diferente em momentos diferentes e com pessoas e coisas diferentes. Todos nós concordamos a respeito do que aqui significa, mas, quando buscamos por um aqui, vemos que ele é apenas uma ideia – uma aproximação vaga – de um lugar que não podemos determinar de modo exato. E, ainda assim, se você vier até aqui nós podemos nos encontrar, ter uma conversa ou eu posso lhe oferecer algo – talvez um presente. Aqui geralmente funciona muito bem, mesmo que você nunca chegue a encontrar um verdadeiro aqui se olhar diretamente. Todos nós aceitamos a ilusão de aqui, mas a maior parte de nós nunca a questionou.
Do mesmo modo que aqui é simplesmente uma aproximação vaga de algo que funciona bem no contexto dos acordos relativos a um espaço, o corpo também é um rótulo para uma combinação de experiências vívidas que, sob investigação, não podem ser encontradas. O objetivo da investigação não é simplesmente chegar a uma verdade conclusiva, que se tornaria eventualmente mais um conceito reificado. Ao contrário, seu objetivo é liberar todo o seu ser da compreensão equivocada de que você está separada da natureza da causalidade mútua.
Esta e outras práticas guiadas estão disponíveis aqui →
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