Diplomata da ONU, Gerson Brandão, fala sobre como a carência humanitária alimentada pela falta de compaixão e respeito afeta mais de 90 milhões de pessoas no mundo
Pergunto ao brasileiro e diplomata da ONU, Gerson Brandão, 44 anos, encarregado de Assuntos Humanitários no Mali, Norte da África, considerada a missão mais perigosa da organização em todo o mundo.
“O fio que nos liga? O mínimo de conexão que se espera entre nós é a compaixão. Nossa carência humanitária é alimentada pela falta de compaixão e respeito que deveríamos manifestar naturalmente uns pelos outros. Falta a conscientização acerca das condições nas quais as pessoas estão vivendo e de que nós não gostaríamos de estar na mesma situação.Aspiramos ser rejeitados ou acolhidos? Daí pensamos: ‘Sim, se eu estivesse nessa situação eu não gostaria de ser rejeitado. Se eu precisasse deixar minha casa bombardeada com minha esposa e filhos eu gostaria de ser acolhido’. Ninguém quer ser refugiado. Esse é o ponto. Falta olhar para as pessoas nos olhos e dizer: ‘Obrigado! Me desculpe! O que posso fazer por você?”
Nessa conversa com a Revista Bodisatva em sua passagem pela Paraíba, Gerson Brandão mencionou muitos exemplos sobre os efeitos do sectarismo mundial na atualidade. Cada pergunta nos remete a uma reflexão ampla sobre a crise atual provocada pela intolerância religiosa. Os efeitos são tão cruéis que podemos remeter, em termos comparativos, à Alemanha nazista, de 1943.
Segundo o último Plano de Resposta Humanitária da ONU em 2017, estima-se em 22 bilhões e 200 milhões de dólares a verba necessária para suprir as necessidades básicas de aproximadamente 90 milhões e 700 mil pessoas, nos 29 maiores conflitos humanitários no mundo, do Afeganistão a Colômbia, passando pela Nigéria, Síria, Iraque etc.
“É importante desenvolvermos visão ampla sobre o sectarismo no mundo. Esse tema está em ascensão porque quando falamos em sectarismo, mencionamos, necessariamente, a assistência humanitária em geral. Estima-se que dois terços da verba do Plano de Resposta seja direcionada às consequências da intolerância religiosa. Atualmente, duas em cada três pessoas recorrem à assistência humanitária para sobreviver ao dia seguinte”, afirma Brandão.
Ele explica que existe uma consequência humanitária em relação específica à intolerância religiosa que, infelizmente, é crescente nos últimos 10 anos. O diplomata afirma que a situação atual é a de maior número de pessoas desabrigadas e com necessidades básicas não atendidas desde a Segunda Guerra Mundial. Apesar dos compromissos internacionais, alguns países rejeitam os refugiados, descumprindo a Declaração dos Direitos Humanos, a Convenção Internacional de Direitos Humanos e a Declaração contra Intolerância e Promoção da Diversidade.
“Em termos de necessidades não atendidas e número de pessoas afetadas por conflitos, o cenário atual é mais alarmante que o da Segunda Guerra. O ciclo de intolerância retorna com força, espelhando o racismo e a intolerância religiosa característicos do período de Hitler, no final dos anos 40. Atualmente, esse mesmo cenário se repete com o Estado Islâmico, Al-Qaeda e grupos fundamentalistas, como Boko Haram e outros grupos menos comentados que retomaram o poder, como Hezbollah e Hamas. O retorno da intolerância religiosa causa destruição, fome, morte, além da massa de imigrantes que busca refúgio na Europa encontrando rejeição em vez de solidariedade”.
Na perspectiva da ONU, o ciclo de ações humanitárias tem origem na crise decorrente da Segunda Guerra, de modo que o próprio sectarismo hitleriano deu origem à Organização das Nações Unidas. Embora tenha se configurado como a maior crise da época, outras aconteceram e o parâmetro da Segunda Guerra foi superado pelas crises Israel e Palestina, Índia e Paquistão, a ascensão de Sadam Hussein, budistas e hindus em conflito no norte do Sri Lanka, Síria e Iraque e toda a massa de refugiados.
“Temos conflitos concentrados que afetam a todos. O Brasil, por exemplo, acolhe os refugiados. Falamos do terrorismo e dos conflitos islâmicos mas, no Sri Lanka, havia monges de grupos radicais budistas que lançaram ataques contra muçulmanos e alguns monges chegaram a se identificar como uma força policial paralela. Eles promoveram um dos ataques mais trágicos dos últimos 30 anos e os inocentes pagam o preço do fundamentalismo”.
Os ideais fundamentalistas não surgem de um dia para o outro. São ideias crescentes, como uma grande bolha. Ao contrário do que se pensa, estudos apontam que a motivação dos jovens em ingressarem nos grupos fundamentalistas não é religiosa, de modo que a falta de perspectiva social os seduz a buscá-los. Tais estudos sugerem que, à medida que os sentimentos de exclusão crescem e as necessidades básicas não são atendidas, os jovens se sentem acolhidos nos grupos fundamentalistas.
O diplomata afirma, com convicção, que voltar aos locais atacados e transformá-los em ambientes sustentáveis, lugares de paz e desenvolvimento, com oportunidades de trabalho, é a saída para um retorno humanitário. Segundo ele, o desemprego entre os jovens do Oeste e Norte da África em áreas dominadas pelo Boko Haram chega a 90%. Os 10% que estão empregados trabalham vendendo recarga de telefone no Norte do Mali por um salário que corresponde a 5 dólares por semana.
“As pessoas deixam suas casas por escassez completa de oportunidade. Ninguém quer sair de casa. Os refugiados da Síria e do Mali saem porque suas vidas estão em perigo ou por medo de acordarem com uma bomba. São pessoas que vivem com uma renda correspondente a 15 reais por semana. Não existe opção. Isso faz com que as pessoas arrisquem a própria vida e dos seus filhos em um barco extremamente perigoso. Mesmo sabendo que mil pessoas morreram, elas se expõem por conhecerem a história de uma que conseguiu. Apesar de tudo, essas pessoas aspiram chegar na Europa que, para elas, surge como um Eldorado. Se houvesse trabalho no norte do Mali e no sul da Nigéria haveria menos morte”.
Segundo Brandão, outra parte da população de jovens trabalha com os nômades, cuidando dos animais que saem para pastar. O trabalho dura cerca de dois a três meses e os jovens têm como função levar os animais da região de seca para lugares com água. Como pagamento, eles recebem duas ovelhas, de modo que uma é destinada ao alimento e outra a sustentar a família. Em outros casos, os jovens trabalham na reconstrução de estradas e pontes que foram destruídas ou em pequenos comércios, já que na Argélia e no Mali, os comerciantes exploram o serviço de carga e descarga de mercadorias.
“Eles recebem entre 15 e 20 reais por semana. Raramente passa disso. Recebendo 100 reais por mês, a pessoa é considerada como bem paga. É inimaginável pensar que pessoas vivam assim. Por isso, tentam a sorte no barco. A realidade de um jovem maliano é vender recarga de telefone, trabalhar com nômades ou no pequeno comércio. Comprar aqui uma lata de óleo por um preço e vender ali por outro”.
A reflexão sobre a questão econômica é nítida no modelo atual. Na região do Mali, nem todos podem vender recarga de telefone, os poucos que detém o comércio decidem a vida dos demais e quem tem o monopólio da telefonia controla a vida das pessoas. O poder econômico é excludente e contribui para o sectarismo.
“A falta de oportunidade afeta a maioria. Além disso, as pessoas vivem sob o sistema de castas. A gritante desigualdade na distribuição de recursos e de renda aumenta o sectarismo. Para lidar com essas questões, a ONU aposta em frentes de acompanhamento dos planos de ação de luta contra a intolerância ética e religiosa. Os documentos servem de base para o diálogo com todos os estados membros e, em função dos possíveis conflitos, relatores especiais são enviados como mediadores. Em diferentes países, há pessoas acompanhando ativamente a questão da diversidade e intolerância religiosa, exploração do trabalho infantil, situações de presídios etc. Já as sanções funcionam como mecanismos de pressão, como as sanções econômicas que se configuram de diversas formas, por exemplo, bloqueio de acesso a contas bancárias ou impedimento de viagens a membros do governo. Myanmar, foi um grande exemplo de sanção contra o governo budista, onde existe a minoria mais esquecida do mundo e que viveram um verdadeiro massacre”.
Segundo o diplomata, o trabalho na ONU é uma missão de frustração, com pequenas realizações. No entanto, abrir corredores humanitários para que a comida chegue e ofereça uma trégua de quatro horas aos conflitos gera motivação.
Brandão relata que acompanhar a construção de centros de saúde em locais onde as mulheres dão à luz sob árvores, observar a redução do número de mortes por malária e o desenvolvimento de campanhas de orientação à higiene abrem o coração para acreditar em efetiva transformação.
“Observar a redução da taxa de mortalidade é um grande avanço. Os recursos são insuficientes e não tem como chegar a todos os lugares. Por mais amplo que seja o alcance da ONU, existem limitações. É extremamente desafiador trabalhar com altas expectativas e alcançar os mais necessitados entre os mais necessitados: crianças desnutridas, gestantes, mutilados, refugiados”.
Antes de chegar na ONU, Brandão trabalhou na organização Médicos do Mundo, uma das primeiras a atuar no Timor Leste. Ele narra que chegou em uma clínica móvel e havia uma epidemia de malária. A média de atendimentos alcançava a marca de 100 consultas por dia, muito acima dos parâmetros oferecidos pelo OMS, que preconiza entre 25 a 30 consultas diárias.
“A necessidade era imensa e não tínhamos como deixar de atender. Com o tempo, a clínica se tornou um local de cura além do corpo. As pessoas nos buscavam por desejarem ser ouvidas, dividir os medos e as aflições, falar do primo ou do irmão que fugiram por terem suas casas incendiadas. Falta acolhimento para essas pessoas. Vivemos com medo e as causas extremas nos levam ao fechamento. Não podemos ter medo de sair nas ruas, de olhar nos olhos das pessoas. Muitos dizem: ‘Ah! Tem gente que faz filho para ter acesso ao Bolsa Família’. Essa sociedade que julga e faz uso de respostas prontas é triste. Falta compaixão. Tendemos a olhar o outro como se ele fosse diferente de nós mesmos”.
Iniciado no Candomblé, o carioca Gerson Brandão saiu do Brasil para terminar o curso de direito e estudar línguas. Fluente em inglês, espanhol, francês, alemão e swahili, viajou por mais de 70 países atuando em Missões de Manutenção da Paz, desenvolvimento social, proteção de civis em áreas de conflito, desarmamento e reintegração de ex-combatentes, além da elaboração de planos de contingência.
Mestre em Gestão de Recursos Humanos pela Universidade de Liverpool e em Direitos Humanos e Cooperação Internacional pela Universidade de Estrasburgo, há 10 anos o brasileiro atua na Organização das Nações Unidas (ONU) coordenando atividades de urgência e pós-urgência. Atualmente, ele não trabalha em qualquer projeto específico no Brasil mas, eventualmente, é convidado a dar palestras sobre gestão de desastres e intolerância religiosa em cidades como Rio de Janeiro, João Pessoa e Salvador.
Segundo ele, o trabalho exercido na ONU exige dedicação e entrega. Trata-se de uma tarefa árdua na qual se estabelece lar em locais onde o confronto é rotina. “É diferente do que conhecemos como ‘casa’ e vivemos com privações. Eu conheci minha esposa há sete anos no Sri Lanka. Se formos contabilizar, passamos dois anos juntos entre encontros mensais ou a cada seis semanas. Nós temos o mesmo trabalho e é um desafio conciliarmos as agendas. Além disso, como eu atuo, principalmente, em locais em situação de emergência, muitos deles são complicados para levar meu filho, como o Iêmen, o Iraque e a Síria. Se você tem vontade de fazer este tipo de trabalho e acredita que a solidariedade é um princípio a ser partilhado, eu diria para seguir em frente”.
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