Mestre Dogen poeticamente nos apresenta à natureza da nossa mente
“O mestre Dogen diz que quando o velho tronco da ameixeira, retorcido e carquilhado, produz flores, ainda que haja inverno por todo lado, quando a gente vê as flores, a gente vê que é primavera, quando a gente olha em volta, é primavera. Esse olhar produz essa transformação. Isto não é algo propriamente causal, mas é algo relativo à mudança da bolha da paisagem da mente. Isso é um aspecto de transformação.”
Em muitos de seus ensinamentos, o Lama Padma Samten recorre à poética imagem da ameixeira que floresce e produz a primavera, utilizada e difundida pelo grande mestre Dogen, para nos apresentar de forma direta a conceitos como coemergência e interdependência. Este maravilhoso ensinamento zen, que de forma sucinta nos transporta à raiz da questão, deve ser contemplado em toda a sua profundidade. Por isso, a Bodisatva traduziu o trecho a seguir do fascículo “Plum Blossoms” (Baika) em que o mestre Dogen nos oferece o néctar de sua potência poética e nos transmite um ensinamento direto. Que, em todos os momentos, saibamos como acessar a primavera incessantemente disponível!
“A velha árvore ameixeira de que falo aqui é ilimitada. De uma só vez suas flores se abrem e o fruto nasce por si só.
Ela forma a primavera; ela forma o inverno. Ela desperta o vento selvagem e a tempestade chuvosa. É a cabeça de um monge vestido em remendos; é o olho de um antigo Buda. Ela torna-se a grama e as árvores; torna-se pura fragrância. Sua transformação, como um redemoinho, milagrosa e rápida, não tem limites. Além disso, a arvoridade desta grande terra, do céu elevado, do sol brilhante e da clara lua deriva da arvoridade da velha ameixeira. Elas sempre foram entrelaçadas, videira com videira.
Quando a velha ameixeira subitamente se abre, o mundo das flores desabrochando surge. No momento em que esse mundo surge, a primavera chega. Há uma única flor que se abre em cinco pétalas. Nesse momento de uma única flor, há três, quatro e cinco flores, centenas, milhares, miríades, bilhões de flores – incontáveis flores. Essas flores não-estão-se-orgulhando de um, dois ou incontáveis ramos da velha ameixeira. Uma flor de udumbara e flores azuis de lótus são também um ou dois ramos das flores da velha ameixeira. Florescer é a oferenda da velha ameixeira.”
— Eihei Dogen em “Plum Blossoms” (Baika) – traduzido do japonês medieval ao moderno por Kazuaki Tanahashi e Roshi Soichi Nakamura, do japonês moderno ao inglês por Kazuaki Tanahashi e Mel Weitsman.
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3 Comentários
Parabéns!!! Linda edição (tradução e imagens) do sublime, iluminado poema de Mestre Eihei Dogen Zenji. Num experimento, tentativa de fusão de idealismo com materialismo filosóficos, eu meio que fundi esse poema (nessa e numa tradução disponível no site da Monja Coen Roshi) com o poema “Tecendo a Manhã”, de João Cabral de Melo Neto, outro que também considero uma obra-prima. Eis o resultado:
Manhã Primavera
Quando no meio da noite, já farto do seu negrume e calmaria, o primeiro galo, após encher o peito de ar e ousadia, solta o seu grito, dando ao mesmo um grande impulso
— lá, onde ao fim de toda tarde o astro-rei tem por hábito recolher-se, o sol acorda!
Quando o velho tronco da ameixeira, retorcido e encarquilhado, produz flores, mesmo que por todos os lados ao seu redor seja ainda inverno e haja neve
— a primavera, adormecida, entorpecida, de si esquecida, desperta!
Quando, solidários ao primeiro e, como este, se colocando plenos e inteiros no cacarejar, os galos da vizinhança também gritam, levando seus outros vizinhos a também gritar, e assim contagiantemente de galo a galo e de lugar a lugar, até que por toda parte, incontornavelmente, há galos e mais galos a cantar, cada cacarejo surtindo seu pequeno grande efeito
— eis que o sol radiante, vindo como sempre pelo lado do nascente, surge enfim no horizonte, entretanto se surpreende porque, galo mesmo, não encontra nenhum a cantar.
Quando a velha ameixeira subitamente se abre, o mundo das flores desabrochando surge. No momento em que esse mundo surge, a primavera chega!
Há uma única flor que se abre em cinco pétalas. No mesmo instante, há três, quatro, centenas, milhares, bilhões, incontáveis flores!
Todas essas flores crescem em um, dois, incontáveis galhos da velha ameixeira, onde também uma flor udumbara e uma flor de lótus azul desabrocham!
Centenas de milhares de flores são as flores dos seres humanos e celestiais. Milhões delas são as flores dos Budas de todos os tempos!
Também nesse instante que é eterno e infinito, tecida pelos muitos galos com os fios de sol de seu insistente cacarejar, já não há mais nenhum lugar onde não seja manhã e que não esteja iluminado por sua clara, jucunda, vivificante, reconfortante luz.
Precioso e preciso momento em que por todo o Universo ecoa o canto alegre da passarada toda a agradecer, em tal espontânea sinfonia podendo-se eventualmente distinguir até mesmo, quem diria, o pio lúgubre da noctívaga coruja.
Roberto Patrocínio (Valença, Bahia)
Belíssimo resultado, Roberto Patrocínio
A fusão do diálogo dos textos me tocou profundamente.