Ensinamento tradicional do mestre Dogen sobre maneiras não-egoicas de estar no mundo e beneficiar todos os seres vivos
Bodisatvas são pessoas comprometidas com o bem-estar, a liberação e o
esclarecimento de todos os seres vivos. Lidar com o desapego e agarrar-se ao
nirvana estraga esse compromisso. E, sendo assim, os bodisatvas levam a
transcendência um pouco mais longe. Neste texto, Mestre Dogen reafirma uma
colocação budista tradicional relativa às maneiras não-egoicas de estar no
mundo. Para bodisatvas o mergulho nos compromissos de todos os bodisatvas,
o tornar-se consciente da ligação de todos os seres e o eterno trabalho de
iluminação são, em si mesmos, uma porta de liberação para as estreitas
preocupações do ego. A presente versão portuguesa do “Bodaisatta shishoho”,
escrito por Dogen no ano de 1243, foi elaborada por José Fonseca a partir de
duas edições de textos do Shobogenzo, obra mestra do monge Dogen: Moon in
a Dewdrop (Lua numa Gota de Orvalho), de Kazuaki Tanahashi, em tradução
dele e de Lew Richmond, e Shobogenzo – Zen Essays by Dogen, em tradução de
Thomas Cleary.
Por Eihei Dogen Daiosho [i]
Esta “doação” significa ausência de cupidez. Não ser cúpido significa não cobiçar. Não cobiçar é o mesmo que não bajular. Mesmo se dominas os quatro continentes, para educar e ensinar corretamente tu tens antes que deixar a cobiça de lado. Dando, por exemplo, teus pertences para pessoas desconhecidas, oferecendo flores de alguma montanha distante a um Buda, ou oferecendo os tesouros de tua vida passada aos seres vivos. Seja material, seja em forma de ensinamentos, cada dádiva tem seu valor e vale a pena ser dada. Mesmo se o presente a ser dado não te pertence, nada impede que faças a doação. Não importa quão insignificante seja a coisa, desde que o esforço de dar seja genuíno.
Quando tu sais do caminho para o caminho tu chegas ao caminho. Chegando ao caminho, o caminho está sempre sendo deixado para o caminho. Quando se deixa bens serem bens, bens tornam-se dádivas. Tu te dás para ti mesmo, outro dá-se a outro. O poder das relações causais de doar vai longe, atingindo devas, seres humanos e sábios iluminados. Quando a doação é feita, formam-se imediatamente tais relações causais. O Buda disse, “Quando um praticante da doação aproxima-se de um grupo, todos notam sua presença”.
Tu deves saber que a mente de uma pessoa assim comunica de maneira sutil com as outras. Dá, portanto, nem que seja uma pequena frase ou um verso do ensinamento. Isso será boa semente, nesta e em outras vidas. Dá o que tens de valor, nem que seja uma única moeda ou uma única folha de grama. Isso se tornará uma forte raiz de bondade, nesta e em outras vidas. O ensinamento também é um tesouro, e bens materiais também são ensinamento. Tudo depende do desejo e da intenção de quem dá.
Houve um rei que deu sua barba como medicamento para curar seu criado, e uma criança que, tendo oferecido areia ao Buda, tornou-se rei numa vida futura. Eles não ansiavam por gratidão, apenas compartilhavam o que tinham. Preparar um barco ou construir uma ponte também é transcendente generosidade de dar.
Quando bem se aprende a dar, aceitar um corpo ao nascer ou largar o corpo na hora da morte são ambos atos de doação. Todo trabalho produtivo é fundamentalmente dádiva. Deixar as flores ao sabor do vento e os pássaros ao da estação também são doações meritórias.
Quando o rei Ashoka alimentou centenas de monges com a metade de uma manga, ele deu também um exemplo de grande dádiva para aqueles que recebem. Não se trata apenas de fazer o esforço da doação, é preciso estar atento e tirar proveito de todas as oportunidades de dar. As doações passadas, as virtudes de dar, inerentes a ti, é que te levam a ser o que és agora.
O Buda disse, “Se deves praticar o dar a ti mesmo, muito mais podes dar aos teus pais, esposa e filhos”. Assim, deves saber que até usando alguma coisa para ti mesmo estás doando; dar para pais, esposa e filhos também é dar. Mesmo quando dás um grão de poeira, rejubila-te com teu ato, pois corretamente transmites uma das virtudes dos Budas e passas a praticar um dos princípios de um bodisatva.
Difícil é transformar a mente de um ser que sente. Deves mudar sempre as mentes dos seres sencientes, desde a primeira partícula até o momento em que eles encontram o caminho. No início, é dando que se faz isso. Por isso, dar é o primeiro dos seis paramitas. A mente é imensurável. As coisas dadas são imensuráveis. No entanto, há um momento em que a mente transforma as coisas, e há doações nas quais as coisas transformam a mente.
“Fala bondosa” significa que ao olhar para os seres vivos é preciso despertar a mente de amor e bondade e pronunciar palavras de muito carinho. É o oposto do discurso duro ou cruel. Socialmente, estamos acostumados a perguntar se alguém vai bem de saúde; no budismo existe a expressão “cuida-te” e uma maneira respeitosa de perguntar como vai uma pessoa. Fala bondosa é aquela dirigida aos seres vivos com o mesmo carinho com que se fala aos bebês.
Devemos elogiar quem tem virtudes e ter piedade de quem não as tem. Uma vez iniciada a fala bondosa, pouco a pouco esta virtude aumentará. E assim outras falas bondosas, inauditas e desconhecidas, surgirão. Nesta vida de agora deveríamos, com prazer, falar bondosamente; então, de vida em vida, nunca regrediremos. A conquista dos inimigos e a harmonização dos dirigentes se baseiam na fala bondosa. Quem ouve de ti uma fala bondosa leva uma expressão de contentamento e uma mente feliz. Quem ouvir tua fala bondosa será tocado profundamente e nunca se esquecerá dela.
Deves saber que a fala bondosa vem da mente bondosa, e a mente bondosa da semente da boa vontade. Devemos saber que a fala bondosa não é apenas o elogio a quem merece. Ela tem o poder de mudar o destino das nações.
Ação benéfica é o emprego de habilidades para o benefício de todos os seres, em todos os níveis. Significa cuidar do futuro próximo e do futuro distante desses seres e auxiliá-los habilidosamente. Até uma tartaruga exausta ou um pardal ferido merecem um auxílio, pelo qual nenhuma recompensa é esperada. Aqui, a ação benéfica é a única motivação.
Os tolos pensam que, beneficiando outros, reduzem seus próprios benefícios. Estão enganados. A ação benéfica é um princípio único, beneficiando universalmente todos os envolvidos nela.
Um grande chefe da antiguidade interrompeu seu banho três vezes e três vezes deixou a refeição pelo meio a fim de atender quem vinha pedir-lhe auxílio. Sua única intenção era ajudar os outros. Ele não se importava nem mesmo em auxiliar os súditos de outros chefes. Da mesma forma, deves auxiliar igualmente amigos e inimigos. Beneficiar igualmente a si e aos outros. Com este estado de espírito, até as ervas e as árvores, as águas e os ventos são incessantemente atingidos pela ação benéfica. Deves esforçar-te de todo o coração para socorrer o ignorante.
Cooperação significa não-diferenciação. É não-diferenciação de si e não-diferenciação de outros. Por exemplo, no mundo humano, o Buda tomou a forma de um ser humano. Daí sabermos que ele deve fazer o mesmo em outros planos. Quando conhecemos cooperação, o eu e os outros são apenas um. Música, canção e vinho integram os seres humanos, integram os seres celestiais e integram os seres espirituais. O ser humano integra a música, a canção e o vinho. A música, a canção e o vinho integram a música, a canção e o vinho. O ser humano integra o ser humano, o ser celestial integra o ser celestial, o ser espiritual integra o ser espiritual – esta lógica existe. Compreender isso é compreender a cooperação.
Ação cooperativa significa forma apropriada, dignidade, atitude correta. Assim, tu te levas à identidade com os outros após levares os outros à identidade contigo. No entanto, a relação eu/outros varia infinitamente com as circunstâncias.
Um filósofo chinês do século VII dizia, “O oceano não recusa água, por isso ele é imenso. Montanhas não recusam terra, por isso elas podem ser tão altas. O sábio chefe não recusa gente, por isso ele pode ter muitos seguidores”.
O fato de o oceano não recusar água é cooperação. Por outro lado, a água também não recusa o oceano. Esta é a razão pela qual a água se junta e vira oceano; pela qual a terra se acumula e vira montanha. É claro, o oceano é o oceano por não recusar o oceano, por isso ele é imenso. Porque montanhas não recusam montanhas, há montanhas, e altas. Porque o sábio chefe não recusa gente, sua gente forma uma comunidade. Um soberano não afasta o povo de si. Não afastar o povo não significa deixar de punir ou de recompensar. Embora um chefe de nação recompense e puna, ele não afasta o povo.
Antigamente, quando as pessoas eram simples e honestas, não havia entre os povos nem punição, nem recompensa. O conceito de punição e recompensa era diferente. Ainda hoje deve haver gente que procura o caminho sem esperar recompensa. Este conceito está além da capacidade de compreensão da pessoa ignorante. Como o dirigente esclarecido compreende isto, ele não se separa do povo.
As pessoas sempre formam uma nação e buscam um chefe esclarecido, mas, não sabendo exatamente a razão pela qual o sábio dirigente é sábio, elas apenas se felicitam por não serem rejeitadas pelo iluminado chefe. Elas não sabem como não rejeitá-lo. Não se dão conta de que são elas que suportam o sábio chefe. Sendo assim, como a lógica da cooperação se aplica tanto aos soberanos iluminados quanto à gente ignorante, pratica a cooperação com seja quem for que encontrares.
Cada um desses quatro métodos de orientação inclui todos os quatro. Logo, há dezesseis métodos para guiar os seres vivos.
O texto acima foi publicado originalmente na Revista Bodisatva nº 05, em 1992.
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2 Comentários
Maravilhoso :}
“Os tolos pensam que, beneficiando outros, reduzem seus próprios benefícios. Estão enganados. A ação benéfica é um princípio único, beneficiando universalmente todos os envolvidos nela.”
~;~
Poucas pessoas escrevem de forma tão agradável.
Que o tradutor do texto acima, Alexandre Y. Okamoto ; e sei revisor, Wimerson Gomes, sejam grandemente abençoados.
_/\_
J Elias de Freitas