Foto de Iris Lopes

A raíz do budismo está na mente de cada um

Em entrevista para a Bodisatva, Helena Patsis-Bolduc fala de seu trabalho como tradutora e a expansão do Darma no Ocidente


Por
Revisão: Bruna Crespo
Edição: Lia Beltrão

Helena Patsis-Bolduc, a tradutora para a língua portuguesa do livro O SOL DA SABEDORIA, de Khenpo Tsultrim Gyamtso, vive em Boulder, nos Estados Unidos, mas nasceu em Curitiba. Para nossa sorte e alegria, ela veio visitar sua família em abril de 2018, no mesmo período em que o Lama Samten estava na cidade ministrando um retiro. Apesar do pouco tempo por aqui, Helena não só participou de um dos dias de retiro com o Lama, como também, gentilmente, nos recebeu para uma entrevista, na qual nos contou sobre sua trajetória como praticante e tradutora. Helena também nos conta sobre o processo de tradução d’O Sol da Sabedoria, lançando recentemente pela Bodisatva o livro de estreia da nova editora. 


Um curso intitulado “Arte e Sanidade – A arte no dia-a-dia” foi o que levou Helena Patsis-Bolduc – na época em formação como bailarina e vivendo há dois anos na Inglaterra – até os Estados Unidos. O curso foi oferecido durante o verão de 1983 pela Universidade Naropa (Naropa University), uma instituição particular de artes liberais localizada em Boulder, no Colorado. A instituição foi fundada por Chögyam Trungpa Rinpoche, um dos mestres budistas mais dinâmicos e controversos do século XX, professor-chave dentro da linhagem Kagyü e treinado também na tradição Nyingma, a mais antiga das quatro escolas. Trungpa foi um dos pioneiros em trazer os ensinamentos budistas do Tibete para o Ocidente.

Helena nunca havia ouvido falar sobre budismo tibetano até assistir a esta palestra de Trungpa e este encontro marcou sua vida profundamente. “Ao conhecê-lo percebi imediatamente que se tratava de alguém muito especial. Ele falava diretamente comigo, parecia não haver mais ninguém na sala. Eu nem sequer sabia que existia budismo tibetano, tinha 23 anos, não sabia de nada. Meu interesse pelo curso era apenas artístico. O impacto deste encontro foi muito grande, determinante. Minha vida foi marcada por antes e depois de conhecer Trungpa Rinpoche”, conta.

O contato com Trungpa Rinpoche

Além de criar a Universidade Naropa, a primeira instituição de ensino superior de inspiração budista das Américas, Trungpa escreveu muitos livros sobre meditação, budismo, poesia, arte e sobre o caminho Shambhala da condição guerreira. Trouxe muitos grandes mestres tibetanos, pela primeira vez, para ensinar nos Estados Unidos e no Canadá. E fundou uma rede de centros de meditação pelo mundo todo.

“Ele revolucionou a vida de muita gente, foi marcante no desenvolvimento do budismo tibetano no Ocidente. Recebeu formação tradicional lá no Tibete, mas fugiu, em 1959, por causa da invasão chinesa. Foi para a Índia, depois para a Inglaterra, Escócia e então chegou aos EUA. Rapidamente entendeu que a melhor forma de se aproximar das pessoas era adaptando-se à cultura local. Tornou-se conhecido por sua habilidade única em apresentar a essência dos mais elevados ensinamentos budistas de uma forma facilmente compreensível aos estudantes ocidentais. Casou-se, teve filhos e curiosamente vestia terno e gravata. E isso, com certeza, atraiu muitos alunos. Se ele não tivesse se ocidentalizado, eu, por exemplo, não teria entrado em contato. Talvez, se ele se vestisse como um monge, eu não tivesse me interessado”, confessa.

“Naquela primeira palestra que assisti, entre outras coisas, ele falava sobre como lavar a louça de forma dármica. A mensagem dele sempre foi a simplicidade de entender o dia-a-dia com toda a sua magia e poder, do jeito que somos, sem ter que modificar nada. A ideia dele era aproximar o Darma do contexto ocidental, do nosso cotidiano, para o mundo em que vivíamos e não nos transportarmos para o Tibete. Ele foi genial!”.

Algumas semanas após o curso de verão, Helena voltou para o Brasil e mudou-se para São Paulo e lá começou a trabalhar como terapeuta corporal. Procurou grupos de prática na capital paulista, mas não encontrou. Então, montou um altar em casa e passou a fazer as práticas diárias sozinha e, por conta, começou a estudar o livro O Caminho do Bodisatva, de Shantideva. Em parceria com um aluno norte-americano de Trungpa, que também vivia em São Paulo, abriu um centro de meditação, hoje conhecido como Shambala Brasil. Depois de três anos, voltou aos EUA para estudar com Trungpa durante três meses. Acabou ficando por lá e nunca mais voltou a viver no Brasil.

E foi justamente nesta época que nasceu a tradutora. Sua primeira tradução para o português foi o livro Shambala – A Trilha Sagrada do Guerreiro, pela editora Cultrix. “Este foi o meu primeiro contato com a tradução. Fiz porque não tinha quem o fizesse, era necessário. Este trabalho me ajudou muito na prática e no estudo do Darma. Após a morte de Trungpa, em 1987, passei a estudar com o filho dele, Sakyong Mipham Rinpoche e, na sequência, com Khenpo Tsültrim Gyamtso Rinpoche (da linhagem Karma Kagyü), autor do livro O Sol da Sabedoria, que passou a conduzir a sanga”, conta.

Traduzindo O Sol da Sabedoria

Tudo o que surge condicionalmente não existe.
Não possui a natureza do surgimento.
Tudo o que depende de condições é explicado como vazio,
E conhecer a natureza do vazio é a maneira de ser consciencioso.

Sutra que abre o Capítulo 1 do livro O Sol da Sabedoria

O Sol da Sabedoria foi compilado a partir de ensinamentos dados por Khenpo Tsültrim sobre os versos mais importantes do Mulamadhyamikakarika, A Sabedoria Fundamental do Caminho do Meio, o inigualável texto de Nagarjuna* – um dos principais textos dos estudos acadêmicos (Shedras) em todas as linhagens do budismo tibetano e uma extensão do Sutra da Sabedoria, ensinamentos dados pelo próprio Buda. “Por 12 anos Khenpo Tsultrim Gyamtso nos ofereceu os ensinamentos de todas as principais escrituras que formam o conteúdo e a estrutura da linhagem Karma Kagyu neste contexto de Shedra, inclusive o Mulamadhyamikakarika. Depois este material virou livro nos EUA, a partir da tradução para o inglês dos comentários dele”, esclarece.

Quando Helena começou a traduzi-lo, em 2011, estava terminando um retiro de dois anos, feito em casa, sob orientação de Khenpo Tsültrim. O trabalho de tradução contou com as bênçãos do Lama e levou um ano e meio para ser concluído.

“Na verdade, eu nunca me considerei uma tradutora, eu só me coloquei a serviço”, conta. Ao relatar sua trajetória relembra que um dos fatos marcantes nesse processo de tradução do livro O Sol da Sabedoria aconteceu em 2012, durante a primeira conferência de tradutores do Darma, realizada em Boulder. Em uma das apresentações, Dzigar Kongtrul Rinpoche, aluno de Dilgo Khyentse Rinpoche, comentou que S.S. Khyentse Rinpoche disse que tradutores traduzem experiências. “Isso abalou o meu mundo porque eu achava que não tinha a experiência necessária para traduzir essa obra.

O que sinalizou um caminho na tradução foi que este livro traz canções de realizações Vajra de Milarepa, iogue tibetano realizado que ensinava através de canções e poesias, conhecidas como Dohas. Então, quando Khenpo Tsültrim nos dava esses ensinamentos nos fazia cantar e dançar. E foi essa experiência vivida ao longo dos 12 anos como sua aluna que de fato me ajudou, pois quando tive que traduzir essas canções consideradas Termas – por isso, a melodia e a métrica não podem ser mudadas e a tradução tem que ser precisa -, eu simplesmente dancei e cantei e a tradução fluiu com facilidade. Então eu realmente entendi que o que eu estava traduzindo ali era a minha experiência: a de estar recebendo os ensinamentos diretamente destes grandes mestres”, revela. “E cada um dos mestres que fui encontrando me levaram à próxima etapa, o meu processo foi fluindo naturalmente, uma coisa levou à outra, o passo seguinte era o passo que tinha que ser dado. Vejo o caminho como uma escada que vai ascendendo”, acrescenta.

Na opinião de Helena, “O Sol da Sabedoria é um ensinamento clássico que nos ajuda a entender como tudo se conecta no universo e como as coisas são interdependentes. Para entender esse processo é preciso estudá-lo, pois como temos uma mente, estamos presos a uma visão dualista. Só existimos em relação a uma outra coisa. Se entendemos o processo dualista ao qual estamos vinculados, podemos desfazê-lo, pois se trata de um hábito. Enquanto tivermos um corpo e uma mente, seremos sempre seres dualistas, esse raciocínio não para, por isso entendê-lo é fundamental para não nos escravizarmos por muitas e muitas vidas”.

E acrescenta: “A mensagem do livro O Sol da Sabedoria é essa de que tudo está mudando o tempo todo, nada é estático, e esse é o significado da natureza do vazio, a base fundamental do budismo tibetano. E a ideia não é causar temor nas pessoas, propagando uma visão niilista. O objetivo é ampliar a visão da nossa experiência. A nossa existência é aquilo que vivenciamos, pode ser mais e ainda muito mais, não tem limite, por isso a natureza do vazio não se limita a uma coisa e nem a outra. Transforma-se constantemente, como nós mesmos. Esse é o nosso crescimento, nosso desenvolvimento, por isso é importante, na minha opinião, receber esses ensinamentos de forma direta para entender o âmago deles.

O objetivo não é causar medo, descrença, ansiedade e apresentar o vazio como verdade, como se nada existisse. Esta visão está aqui para nos beneficiar e indicar o que está verdadeiramente acontecendo. Não se trata de uma crença e nem de uma suposição, esse entendimento se torna orgânico e passamos a ver o que está acontecendo. O livro traz vários raciocínios lógicos que nos mostram os estados de interdependência, causados pela mente dualista, aos quais estamos sujeitos e não vivemos de outra maneira. Isso não é ruim, mas temos que entender que se trata, na verdade, de uma dança.”

Na visão de Helena, é importante recebermos os ensinamentos em nossa língua materna, uma vez que, deste modo, eles entram no substrato da consciência de forma direta. Assim, o trabalho do tradutor é fundamental para que os ensinamentos possam atingir o maior número de seres no contexto cultural em que se encontram. O objetivo de Helena como tradutora é transmitir o Darma de forma coloquial para que a maior parte das pessoas entenda o que está sendo dito.

Darma no Ocidente e a tradução da experiência

“Se não fosse Trungpa, talvez eu não conseguisse seguir um mestre super tradicional como Khenpo Tsültrim Gyamtso. A Universidade Naropa, fundada por ele, é um portal imbuído de mensagem dármica profunda. E, ainda hoje, segue sendo uma das maiores comunidades budistas do Ocidente. Sou extremamente grata por chegar ao budismo por meio deste portal”, comenta.

Nos anos 80, Boulder havia se transformado em uma Meca do Budismo Tibetano nos EUA, muitos estudantes e consequentemente muitos mestres foram atraídos para lá, isso oportunizou Helena a conhecer muitos deles e a receber ensinamentos profundos. “Desde que encontrei com Trungpa Rinpoche, o Darma passou a ser o meu foco principal na vida. Apesar de morrer cedo, aos 48 anos, viveu apenas 14 anos no Ocidente, conseguiu fazer muita coisa neste curto período”, enfatiza.

“Traduzir a experiência foi a chave para mim! Me deu confiança. Eu não preciso ser perfeita. É uma honra oferecer o que temos, seja do tamanho que for. O que damos é o melhor que temos. Procuramos dentro de nós o que temos de melhor para oferecer. E aí encontramos o melhor da gente, isso é maravilhoso. É simples e bonito”, declara.

Mestres e Darma no Brasil

Hoje, Khenpo Tsültrim Gyamtso está retirado na Ásia e não oferece mais ensinamentos, Helena atualmente segue Khenpo Namdrol Rinpoche, mestre tradicional da linhagem Nyingma, professor de monastérios importantes no Nepal e na Índia. Seu último trabalho pelo Light of Berotsana, grupo de tradutores do Darma do qual ela faz parte, foi o livro Yeshe Lama, o mais importante manual de prática dos ensinamentos da Grande Perfeição da tradição Nyingma.

Além da tradução, Helena dedica-se ao Believe in Tibet, organização criada por ela para dar suporte financeiro a um orfanato e a uma escola em Golok, no Tibete, hoje ocupado pela China. O objetivo da escola é preservar a cultura tibetana. “É uma organização pequena, arrecadamos fundos conforme a necessidade dos alunos. Seguimos as instruções do Khenpo Kunzang Rinpoche, diretor da escola. Ele nos diz o que precisam e nós viabilizamos ajuda, fazemos isso sem chamar muito a atenção dos chineses, porque ainda há muita repressão por lá. Damos suporte sem incomodá-los, sem causar problemas com o governo chinês”, conta.

Sobre a partida destes grandes mestres tradicionais tibetanos e a atual expansão do budismo no Ocidente, principalmente no Brasil, ela comenta: “Claro que o fato destes grandes mestres estarem nos deixando nos preocupa, mas quando o budismo muda de um país para outro ele aprende uma nova língua, se adapta à cultura. Na verdade, a raiz do budismo está na mente de cada um. O Brasil vive um momento de grande abertura, uma fase de interesse e de admiração pelo budismo. Existe uma certa pureza por aqui, é um momento muito bonito”.

Sarah Gonçalves, Helena e Bernadete Brandão. Foto de Iris Lopes


*Acharya Nagarjuna (150 – 250 AC) é considerado um dos filósofos budistas mais importantes depois do Buda histórico. Juntamente com seu discípulo Aryadeva, ele é considerado o fundador da escola Madhyamaka do Budismo Mahayana. Nagarjuna também é creditado como o desenvolvedor da filosofia do sutra Prajñāpāramitā e, em algumas fontes, por ter revelado essas escrituras ao mundo, depois de tê-los recuperado dos Nagas espíritos aquáticos frequentemente descritos como serpentes em formas humanas. Além disso, ele é tradicionalmente referido como escritor de vários tratados sobre alquimia rasayana, também por assumir a administração da Universidade de Nalanda, centro de estudos budistas que existiu na Índia, do século V ao século XII.


Obras traduzidas por Helena Patsis-Bolduc para o português:

Shambhala – A Trilha Sagrada do Guerreiro, de Chogyam Trungpa Rinpoche – publicado pela Editora Cultrix, em 1984.

O Sol da Sabedoria  – Ensinamentos do Nobre Nagarjuna sobre a  Sabedoria Fundamental do Caminho do Meio, de Khenpo Tsultrim Gyamtso – publicado nos Estados Unidos pela Light of Berotsana, em 2014, lançado recentemente no Brasil pela Bodisatva.

Yeshe Lama, de Vidyadhara Jigmed Lingpa – publicado pela Light of Berotsana, em 2014.


 

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2 Comentários

  1. Ormando MN disse:

    Que incrível maravilha ler essa entrevista com essa tradutora ^.^ muito bom ^.^

  2. Alexandre Falcão disse:

    Bela entrevista, uma delicada preciosidade!

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