Leia a reportagem de Elise Bozzetto sobre como Aldeias CEBB aproveitaram a impermanência para potencializar e cuidar da vida
Das mãos de Madalena, a terra arenosa de Bacupari recebeu de presente, de uma só vez, 300 mudas de alface. Não se tratava de nenhuma monocultura planejada: alguma coisa aconteceu, e o pedido de duas dúzias resultou em duas bandejas de mudas. O episódio virou piada entre a sanga do CEBB Bacupari – RS, mas também promoveu conexões: vizinhos receberam (muita) alface de presente, e novas possibilidades de redes se formaram. O solo, que devido ao vento constante logo seca, precisava de um olhar mais amplo do que as possibilidades até então conhecidas por Madalena em suas hortas no CEBB Caminho do Meio. Os vizinhos ajudaram compartilhando seus conhecimentos sobre plantio na região litorânea. Conheça estas e outras conexões que a terra, generosa e equânime, permitiu florescer em aldeias rurais, centros que buscam conexão com a natureza e possibilitam o aprofundamento e a prática do Darma.
Madalena Heinen, moradora do CEBB Caminho do Meio, de Viamão, chegou ao CEBB Bacupari em 15 de abril, ainda no início do distanciamento social por conta da pandemia da Covid-19. Ela se juntava ao grupo que estava em retiro com o Lama Padma Samten. Nascia uma nova aldeia rural na beira da lagoa de águas calmas e cristalinas. No total, 11 pessoas vivem no Bacupari em retiro aberto ou fechado. Ao lado de Gabriel Marchese Marconsin, é Madalena que facilita os trabalhos na horta e encontra neles uma oportunidade de prática.
A ideia era montar uma horta em formato de mandala, pela beleza e também para se lembrar da prática. Mas a impermanência logo surgiu, apresentando urgências: 300 mudas precisavam de um mutirão instantâneo para serem acolhidas pela terra. “A gente fez alguns canteiros, como deu para fazer, para acomodar todas as mudas que chegaram. Todo mundo ajudou”, conta Madalena.
A sanga só não imaginava que outros seres adorariam tanto a horta nova e aproveitariam cada talo: “As formigas comeram quase tudo que não era alface. Sobraram poucas coisas e fomos abrindo outros espaços para novos canteiros”, relata a praticante.
Com as novas iniciativas, outra prática surgiu: o manejo do solo. “Agora plantamos repolho, couve e estamos vendo o resultado do solo fraco. Por causa do solo e do vento, as hortaliças crescem pouco e apresentam sintomas de falta de nutrientes. Estamos testando formas de proteger do vento e de enriquecer o solo. Estamos fazendo várias coisas, para cada cultivo, em cada espaço. Unimos técnicas diferentes”, detalha Madalena.
Aos poucos a horta está sendo organizada em formato de mandala, com um local no centro para permitir aos praticantes a possibilidade de contemplar, o que, lembra Gabriel, é uma orientação do próprio Lama Padma Samten.
“O Lama fala bastante da necessidade de contemplarmos outros seres, e a horta é um lugar super rico para isso, tem uma quantidade imensa de seres. Contemplar a existência e crescimento das plantas. Fora que a própria paisagem grosseira da pessoa, estando dentro de uma mandala, já muda no aspecto sutil, a pessoa já se sente num lugar que favorece a prática, então achei super especial termos esse local neste formato”, explica“Aqui o clima é muito extremo, o solo é pobre. Se tivéssemos grandes expectativas ou esperanças de fazermos algo maravilhoso ou vitorioso, iríamos embora no primeiro mês. É um pouco impossível não ver como prática, ainda mais num ambiente onde ouvimos o Lama o tempo todo. Aqui podemos contemplar dukkha e ver as coisas acontecendo na horta, a impermanência. É muito incrível, isso super favorece a prática”, conclui Gabriel, também responsável pela cozinha do Bacupari.
Enquanto Madalena e Gabriel encontram nas dificuldades do solo uma prática, o agroecologista Ricardo Pellegrini, no CEBB Caminho do Meio, onde o solo é rico e generoso, vê a pandemia como um momento que proporcionou às pessoas terem mais energia para ajudar no Sistema Agroflorestal (SAF), iniciado em 2017.
“Aqui no Caminho do Meio fizemos três edições do curso de sistemas agroflorestais sintrópicos, sempre com a participação de moradores. Logo após os cursos, tivemos alguma participação das pessoas no SAF, mas aos poucos a energia vai sumindo. Tenho o hábito de fazer convites para mutirões quinzenais e após o início da quarentena e do isolamento as pessoas foram aderindo com maior frequência aos mutirões. Temos tido também a presença de algumas mães que trazem as crianças para ajudar na terra”, comemora o Pêlle, como é carinhosamente chamado.
Para ele, a preocupação com a alimentação já estava presente na aldeia. “A busca por alimentos orgânicos já é uma realidade no CEBB tendo em vista que nosso refeitório opera com esses alimentos. Várias pessoas começaram a cultivar nas suas próprias casas, mas o espaço do SAF passa a ser uma escola para os que não têm essa cultura. Assim, pouco a pouco, as pessoas estão aparecendo para aprender, conviver e praticar”, analisa o praticante.
Segundo ele, os motivos para adotar os SAFs como projeto de vida são inúmeros: a diversidade de plantas, criando condições perfeitas para o crescimento, o favorecimento à produtividade, o pouco consumo de água, o fato de não serem necessárias a capina e a limpeza dos canteiros e o baixo custo com insumos locais são alguns fatores.
No Caminho do Meio, o espaço é também uma sementinha para mostrar que os sistemas agroflorestais sintrópicos são possíveis em pequena, média e grande escalas. “ É um retorno à nossa essência e ancestralidade. Meu sonho é que as aldeias CEBBs possam diversificar a produção de alimentos saudáveis e que as pessoas se conectem com a terra. Que as crianças cresçam compreendendo a magia da natureza. Não teremos adultos saudáveis se nossas crianças não conhecerem esse universo. Somente assim não teremos uma visão utilitária dos rios, matas, flora, fauna e terra”, reflete Pêlle.
E os sonhos não param por aí: segundo o agroecologista, atualmente o resultado do plantio é comercializado a baixo custo para moradores por meio de uma feirinha nas segundas-feiras. Os moradores também podem colher direto da horta e depositar a contribuição em uma caixinha. Em seguida, a mandala que cuida do SAF pensa em possibilitar entregas semanais aos moradores.
Os sonhos do Caminho do Meio encontram forma em Sukhavati. No início do ano, 30 famílias do município de Quatro Barras – região próxima da cidade de Curitiba recebiam em casa cestas com hortaliças, temperos, legumes e frutas, todos frescos e orgânicos do Orgânico Zen (@organico_zen), um dos projetos do CEBB Sukhavati. Com o distanciamento social, a preocupação com uma alimentação saudável e segura parece ter ganhado espaço na rotina das pessoas. Rapidamente, o Orgânico Zen viu sua procura aumentar, chegando a entregar 90 cestas. Jary Jorge de Freitas, um dos focalizadores da horta e que também preside o Instituto Caminho do Meio Graciosa, contou com uma rede de apoio verde, a Ecovida, para suprir as demandas até alcançar a produção necessária para atender todos os pedidos.
A história do Orgânico Zen começa em 2017, num pequeno espaço destinado a cultivar hortaliças para quem participava dos retiros. Logo surgiu a aspiração de utilizar o espaço para um sistema agroflorestal. “São 98 hectares, sendo mais de 65 de mata fechada. A reserva legal do Sukhavati adentra o Parque Estadual Serra da Baitaca. Ficamos literalmente no pé da Serra”, comenta Jary. O espaço destinado à horta, pomar e roça ocupa 2,5 hectares, cercados por uma exuberante flora e fontes de água.
Com vista direta para o morro Anhangava, ponto muito conhecido da região, o Templo do CEBB pode ser observado do cume do Anhangava. A região é de mananciais de água onde fica a maior represa que abastece Curitiba. “Por isso, desde o início, o Sukhavati teve uma preocupação muito importante quanto ao ciclo da água, à proteção de nascentes, à reestruturação das cabeceiras dos riachos”, salienta Jary.
“Muitas vezes as pessoas acham que ecologia é daqui para fora. Mas a ecologia inclui o ser humano também. Então a gente faz um trabalho de educação ambiental. A horta serve para que as pessoas possam ter contato com o ciclo da natureza, observar o crescimento. Quando jovens da cidade vêm para cá, é bonito ver a alegria deles em arrancar uma cenoura do chão”, relata.
A certificação de conformidade orgânica da horta foi realizada pela Rede Ecovida, que integra agricultores familiares num sistema de certificação participativa. O próprio grupo recebe uma autorização do Ministério da Agricultura para fazer a fiscalização e certificação orgânica dos agricultores vinculados.
Para Jary, participar da rede é fundamental para oferecer benefícios em mais direções. “A maior dificuldade que o agricultor familiar tem é a distribuição. Ele consegue produzir, mas não consegue distribuir. Então, há muitos atravessadores e, por meio da rede, conseguimos fazer um preço justo para todos, sem os atravessadores. Algumas vezes a gente faz trocas. Fazemos planejamento em conjunto: eu planto uma coisa, ele planta outra, e trocamos.”, defende Jary.
Jary entende que a atuação da Ecovida corresponde à ideia do CEBB sobre as organizações, de multiplicar benefícios e apoiar pessoas e instituições de acordo com suas possibilidades, como ocorreu em aulas de yoga ofertadas a professores e outros funcionários de uma escola municipal. Trata-se, portanto, de um projeto com muitas dimensões.
“Somos um projeto que, por acaso, planta e vende verdura. Mas tem muitas coisas ali: a educação ambiental, o estar junto, trabalhar junto, unir comunidade interna do CEBB e fazer interface com a comunidade ao redor. Nosso projeto é feito primeiro de pessoas, segundo de ideais e terceiro de amor.O amor é a cola de tudo isso, o espírito do Bodisatva de levar benefícios aos seres. A gente não aspira apenas produzir comida sem veneno, mas procura produzir comida com inteligência entranhada naquela energia, para que a pessoa possa sentir essa conexão”, finaliza Jary.
Começamos nossa história contando sobre expansão: um novo começo no Bacupari. Passamos pelos sonhos do Caminho do Meio em alimentar mais famílias. Encontramos no Sukhavati muitos méritos que alcançam, em muitas direções, diferentes famílias. Agora, nossa história chega ao fim num movimento de contração, semelhante à prática que fazemos nos centros de Dharma: respirar e observar o ritmo natural do corpo e da mente. É esta prática que guia o Darmata e sua agrofloresta.
A encosta de um morro, 15 hectares de terra, a maior parte coberta por mata fechada, acolhe o CEBB Darmata, em Timbaúba, Pernambuco. Casas de retiro repousam entre as árvores e, num pequeno espaço aberto, está o Templo. Perto dele, a agrofloresta, revitalizada em 2018. O intervalo das práticas coordena o ritmo da horta. São nesses ínterins que o agroecologista Victor Morete maneja o solo para produzir frutas, verduras, tubérculos, raízes e toda sorte de alimento que possa crescer no desafiador clima nordestino.
Vindo do interior do Rio de Janeiro, Victor buscou o CEBB Darmata para um retiro imersivo de um mês. Precisavam de um voluntário, e ele ficou mais um mês por lá, iniciando a agrofloresta, já que em sua cidade ele trabalhava com agroecologia, agricultura biodinâmica e economia solidária. Até que um novo convite surgiu: morar no Darmata e ajudar a materializar o sonho de produzir alimentos e recuperar o solo degradado.
“Foi um grande desafio, pois o clima aqui é muito diferente. O primeiro ano foi muito de aprender a dinâmica do clima da região, de se conectar com os produtores, vizinhos, para conversar e saber qual era o melhor período para plantar cada cultura”, relata Victor. Ele contou com a ajuda de Roberto Sotero, que já tinha iniciado um SAF em 2016 e retornou temporariamente ao Darmata em 2018, ajudando a revitalizar a agrofloresta.
Com o início da pandemia, cresceram o número de voluntários e a conexão dos próprios moradores do Darmata com a prática na horta. “As pessoas foram se aproximando. Não só se aproximando, como também querendo fazer hortas mais próximas de suas casas. Aconteceu um despertar para a importância de plantar e cuidar de uma alimentação mais saudável”, associa o agroecologista.
“Não conseguimos suprir a demanda da cozinha por enquanto. A área que estamos trabalhando era muito degradada, foi pasto de boi por muitos anos, plantio de cana, foi queimada diversas vezes, então ainda estamos no estágio de trabalhar melhor esse solo. A cada ano que passa, o solo está melhorando. Começamos do zero, com um solo super compactado, que parecia um cimento, e a cada ano estamos trabalhando este solo”, conta.
Segundo Victor, a ideia não é buscar autossuficiência ou algo do tipo. “A questão não é só a terra, mas também a área que foi destinada para o plantio, que é pequena. Apesar de o CEBB Darmata ter 15 hectares, a maior parte é mata que está se regenerando, numa encosta de morro. Como o lung do Darmata é realmente ser um centro de retiro, temos casas no meio da mata para os praticantes e as áreas planas são poucas e perto do Templo”.
O ritmo da horta segue o das práticas: durante os Pujas e meditações, a agrofloresta também silencia, e as ferramentas são deixadas de lado para aguardarem o momento certo de gerar méritos por meio da ação no mundo.
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3 Comentários
É maravilhoso poder transmutar essa crise em oportunidade de ação correta no mundo, a partir da conexão com a natureza, nossa essência! Que as bençãos dessa semeadura frutifique e se expanda!
Saudações, fazem muuitos anos que quero residir num cebb e trabalhar na terra ao ar livre, estudos, práticas e resgatar a comunidade e nosso senso de confraternizar dentro e fora dos cebbs.
Não só a pandemia mas o mundo globalizado e a expansão acelerada dos cebbs foram me distanciando, mas sempre em práticas, hj no Buda da Medicina e Prajnaparamita tbem. Consegui vender tudo aqui no samsara e aguardo a oportunidade de me juntar a um ceeb, CM, Darmata, Sucavati. Sou eu e meu cão para vivermos com lucidez a oportunidade desta vida humana preciosa, relativa e absoluta.
Aguardo oportunidade de me juntar a um ceeb.