Livro de cientista político descreve a brutalidade envolvida na fundação do Brasil como uma empresa e aponta para uma refundação humana
Frequentemente apontado pelo Lama Samten em suas palestras como um livro-chave para entendermos o Brasil e nos reencantarmos com uma nova possibilidade de pensá-lo e vivê-lo, o livro A Refundação do Brasil, do cientista político Luiz Gonzaga de Souza e Lima, é objeto desta resenha de Dirlene Ribeiro Martins para a Bodisatva. O texto nos introduz às principais ideias trazidas pelo livro: a descrição clara sobre uma terra explorada, desde o início, por um olhar privatizador e coorporativo, mas que guarda os elementos de sua própria e humana refundação. Um livro para afinarmos nosso olhar sobre a bolha-Brasil e identificarmos os elementos que já temos para sonhar em outras e mais lúcidas direções.
O livro A Refundação do Brasil: rumo à sociedade biocentrada é fruto de 20 anos de reflexões sobre o Brasil. Em suas 338 páginas, o autor explica, de forma simples e didática, a estrutura econômica, social, política e cultural da formação social que aqui foi construída. Dentre os muitos méritos do livro está o de nos permitir um novo olhar sobre o que o Brasil é na sua essência. Sempre tentamos nos compreender com o olhar de fora, antes europeu, hoje americano. Aliás, aprendemos com muita competência a construir o olhar deles sobre nós. Mas A Refundação do Brasil traz um olhar nosso, do nosso ponto de vista. É um olhar brasileiro sobre o Brasil.
Tendo por ponto de partida a chegada dos europeus ao nosso território, o cientista político e professor Luiz Gonzaga de Souza Lima mostra que no país não foi construída uma sociedade, como sempre se supôs, mas uma grande empresa internacional, globalizada, com vocação mundial. O nosso território foi privatizado em 1532, dividido em fatias que foram entregues a consórcios empresariais internacionais. O que foi realizado nesses imensos pedaços de terra concedidos hereditariamente aos novos proprietários? Empresas!
Os engenhos eram empresas agroindustriais avançadas, que passaram a produzir para a Europa e para todo o mundo milhares de toneladas de um bem até então raro: o açúcar. O Brasil foi o primeiro elo articulador da economia global.
A Empresa Brasil, destaca o autor, dissolveu sociedades para se estabelecer. Dissolveu as sociedades indígenas que viviam em nosso território e submeteu os remanescentes à servidão e à escravidão. Tudo foi transformado em mercadoria, até os humanos. Os escravos eram contabilizados como bens, eram comprados e vendidos, e sua presença aqui não era fruto de imigração, mas considerada importação. Eles eram incorporados ao trabalho e excluídos de toda a vida social, reservada para uma minoria que se autodenominava de sociedade.
Outros milhões de humanos passaram simplesmente a viver uma nova situação desconhecida: a exclusão. Seus territórios foram invadidos e apropriados pela Empresa Brasil, o tal processo de colonização. Foram excluídos dentro de seu próprio país, argumenta o cientista político, sua propriedade lhes foi arrancada.
No mundo daquela época, os sistemas sociais serviam para integrar os humanos, reconhecê-los como membros do sistema – mesmo em forma desigual. Aqui não. Aqui o sistema social criou a exclusão. “Essa formação social desequilibrada, moderna e, sobretudo, injusta criou o que se pode chamar de desequilíbrio estável. Do ponto de vista formal, durará mais de 350 anos, mas suas características estruturais chegam até nossos dias”, explica Souza Lima.
O modo como os humanos são organizados e vivem constituem uma espécie de software social, conceito que é muito bem apresentado e desenvolvido no livro.
Prevaleceu o segundo. Muitas humanidades foram destruídas para assegurar sua afirmação e, junto com essa tragédia humana, foi também destruída e degradada parte significativa da herança cósmica de todas as espécies vivas do planeta Terra. O software social moderno terminou por conduzir todas as sociedades a um impasse novo para os humanos. Agora está ameaçada a sobrevivência da própria espécie humana, além de outras milhares de espécies sobre o planeta Terra.
Observada a quinhentos anos de distância pode-se dizer que a Empresa Brasil, a criação da Formação Social Empresarial e do Estado Econômico Internacionalizado foram como um tsunami permanente, uma gigantesca e profunda intervenção sobre a humanidade, modificando-a profundamente.
Milhões de habitantes foram dizimados, e outros milhões transportados para continentes diferentes daqueles em que nasceram. Dissolveram-se culturas e etnias. Entretanto, reconhece o autor, esta intervenção gigantesca sobre a trajetória histórica da humanidade gerará outros frutos além da Empresa Brasil e de seus derivados institucionais. Trata-se do povo novo que aqui nasceu e da cultura que este povo criou.
Assim, Souza Lima, embora nos mostre os detalhes brutais que envolveram a ocupação do território brasileiro, nos enche de esperanças, com seu entusiasmo, ao abordar a refundação do Brasil como sociedade biocentrada, uma sociedade humana de verdade.
“Diante da crise civilizatória contemporânea, marcada por confrontos e conflitos entre civilizações, entre culturas e etnias, ser naturalmente multiétnico, aberto à cultura e às características do outro, conviver com elas, vivê-las na intimidade, possui um valor imenso. É um dos mais importantes recursos que o Brasil possui. O Brasil é o futuro. Se um dia a humanidade for um só povo, ele será parecido com o povo brasileiro”, garante o autor.
Para Souza Lima, a perversidade estrutural do encontro que nos gerou está marcada para sempre, mas a trajetória brasileira mostra que se impõe a busca de outro modo de convívio, impõe-se a criação de outra forma de organização social para abrigar este encontro tão importante, impõe-se a construção de outro modo social de ser, que acabe com a exclusão e a desigualdade.
O teólogo Leonardo Boff, que escreveu o Prefácio do livro, acredita que Souza Lima está na linha dos grandes intérpretes do Brasil, a exemplo de Gilberto Freyre, de Sérgio Buarque de Hollanda, de Caio Prado Jr., de Celso Furtado e de outros. “A maioria desses clássicos intérpretes olharam para trás e tentaram mostrar como se construiu o Brasil que temos. Souza Lima olha para frente e tenta mostrar como podemos refundar um Brasil na nova fase planetária, ecozoica, rumo ao que ele chama de ‘uma sociedade biocentrada’.”
Como é ressaltado no final do livro, os conteúdos da refundação não precisam ser construídos nem buscados fora. Encontram-se já na nossa cultura, na intimidade da nossa alma mundial. São a essência dela e, ao mesmo tempo, seus motores criativos mais poderosos. Construir um sistema social coerente com os valores centrais da cultura brasileira é a refundação do Brasil. Como fomos fundados como empresa, toca-nos construir pela primeira vez em nosso território uma sociedade humana de verdade.
A Refundação do Brasil: Rumo à Sociedade Biocentrada, de Luiz Gonzaga de Souza Lima.
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4 Comentários
Me pareceu imprescindível a leitura deste livro. Abre nos uma perspectiva real de criacão de nossa nação!
Prefácio do L. Boff já valeria como um.convite irrecusável a esta viagem, ao que me parece maravilhosa!
Fiquei muito animado de conhecer o autor e o livro. Já ouvi Lama Samten dizer os nomes refundação do Brasil e Luiz Gonzaga, eu achava que era Luiz Gonzaga cantor. rs Tenho vontade de ler o livro. Abraço.
maravilhoso artigo
ótimo