Nesse texto de 2008, o Lama mostra como o caminho espiritual é a peça-chave para a compreensão da verdadeira mudança que desejamos fazer no mundo
Nas várias tradições religiosas, especialmente no budismo, o que nós buscamos é ajudar a equilibrar a natureza e as relações humanas, pois o modo como vivemos hoje está desequilibrado. Este desequilíbrio produz, naturalmente, outros desequilíbrios. Chega-se ao ponto em que o software desta desarmonia afeta a própria sustentabilidade, transformando-a em uma questão fundamental. O diálogo entre budismo e ecologia se estabelece a partir dessa constatação.
No budismo, diagnosticamos essa situação como sintoma de uma doença ampla, a doença do samsara, demonstrada através dos Doze Elos da Originação Interdependente. Começamos com o primeiro elo, a ignorância, que é uma expressão da nossa possibilidade de ação. Ao agirmos de determinadas formas, ficamos presos às coisas que produzimos e esquecemos a nossa capacidade de reinventar. Ao seguir nessa construção caracterizada pelos doze elos, chegamos ao décimo primeiro elo, onde nos encontramos muito ocupados, defendendo nossas identidades e visões parciais.
Na tradição budista, o tema da ecologia é apenas um entre vários outros nos quais essa abordagem geral é pertinente. Temos também dificuldades semelhantes nas relações das pessoas e na relação conosco mesmo. Assim, na visão budista, precisamos ultrapassar os doze elos, ultrapassar a construção de samsara.
A questão básica é a energia. Sua Santidade, o Dalai Lama, resume esse ponto de uma forma interessante. Ele diz: “Se simplesmente seguirmos para onde a sociedade está nos levando, ainda que esse caminho pareça produzir alguma vantagem, ele não produz felicidade duradoura. Nossa energia não é contentada de fato.”
O ponto central é fazer essa energia fluir. As indicações sobre o que devemos ou não fazer são antigas em várias tradições. Deveríamos entender que essas indicações não têm funcionado; não bastam as recomendações.
A questão é como produzir as transformações e fazê-las de modo não repressivo. Reprimir, nós até sabemos. Conseguimos montar estruturas e treinar pessoas, adestrá-las, mas depois nos surpreendemos. Quando a pressão desse adestramento é liberada, ocorre um arroubo de negatividade, que muitas vezes não entendemos como surgiu.
Se quisermos obter alguma vitória permanente, precisamos entender esse processo e, tendo entendido, deveríamos produzir o mecanismo das ações naturalmente positivas. Se pretendermos avançar, precisamos de algum método rápido: esse método é nosso próprio comportamento. Se quisermos um mundo equilibrado, é essencial que cada um de nós dê o exemplo, que tente viver de forma equilibrada e sinta-se feliz por isso. A nossa felicidade é a maior arma; é o processo mais radical, porque, enfim, todos buscam a felicidade. Se nós, meditando e, especialmente, desenvolvendo olhos positivos em relação aos outros seres, pudermos sentir essa alegria, então estaremos sendo radicais.
Curiosamente, este comportamento radical não vem pela agressão, mas pela alegria. Algo maravilhoso, porque além de nos sentirmos felizes, os outros seres se sentem felizes também. Não precisamos nos preocupar com os inimigos. Isso, Guru Rinpoche resolve; Maharaja resolve. A impermanência geral das coisas derruba.
Quando estamos dentro de uma engrenagem, mesmo que seja de proteção ambiental, criando um ambiente, criando alguma coisa, podemos ficar como alguém que rebate a bola em um jogo de tênis. Somos uma máquina de resposta a iniciativas que não são nossas. Mas, ao invés de nos dedicarmos a responder, a lutar contra o processo de samsara, podemos parar e tomar a iniciativa.
Há um grande mestre tibetano, Dudjom Rinpoche, que profere ensinamentos sobre “A Iluminação da Sabedoria Primordial”. Ele divide a meditação entre shamata impura e shamata pura, ou seja, “meditação impura” e “meditação pura”.
A meditação impura é quando nos isolamos, praticamos em silêncio, isolados. A meditação pura, shamata pura, é quando somos capazes de manter o eixo em meio a toda confusão. Isso é a pureza, é a solidez da meditação. Ao reconhecermos o que está diante de nós, brota compaixão.Vemos o buraco profundo no qual podemos entrar, olhamos em volta e vemos muitos seres realmente sem chances. Aí nós nos levantamos.
Diz-se que o Buda atinge a iluminação não enquanto está sentado, meditando, mas ao se levantar. É quando completa sua iluminação. Levantamos em meio ao silêncio, que não é a ausência de estímulo ao redor; é um silêncio potencializado pela nossa capacidade livre de ação. Não estamos presos ao que se apresenta à frente. Nesse silêncio, que não é uma omissão, produzimos o movimento, produzimos a iniciativa. O silêncio é essencial, é o exercício da liberdade.
Quando olhamos com sabedoria, vem o ensinamento sobre a vacuidade, o Prajnaparamita. Olhamos para as coisas e vemos que elas não têm a solidez que parecem ter. Ou seja, o monstro não tem o poder nem a solidez que parece. Até mesmo porque ele se auto-devora. Ele não produz satisfação, se auto-extingue.
Então, nos levantamos e nos movemos. Essa é a base do silêncio. Essa é a base da fé budista, a fé no silêncio, a fé no movimento livre.
Vivi no campo por um determinado período. Tirei licença da universidade em 1982 e fundei, junto com outras pessoas, uma comunidade cuja parte econômica funcionou bem.
Quando estava na universidade estudei muitas alternativas de organizações sociais e de geração de tecnologias. Percebi que lutar contra o sistema é perda de tempo. Temos que deixá-lo um pouco de lado e definir nossos caminhos. Caso contrário, a iniciativa fica com quem tem um movimento equivocado.
Em grande medida, as pessoas não sabem como agir de modo adequado. É mais satisfatório, muito melhor, quando atuamos de forma benigna. Lembro da época em que vivi na comunidade. Havia diferentes tipos de sementes e diversos micro-climas na região. Nós sabíamos muito bem onde produzir o arroz do seco; sabíamos onde tinha água, podíamos oferecer a todos. Cada vez que havia alguma frustração de safra, mas alguém conseguia colher, pedíamos as sementes e as multiplicávamos. Assim, as sementes iam melhorando. Havia um banco natural.
No domingo, as pessoas se encontravam para conversar, cambiavam o gado, compravam e vendiam coisa, trocavam sementes. A gente se reunia, recebia os amigos e mostrava as plantas, os animais, os pés de fruta. A gente sentava numa sobra, mostrava uma fonte de água. Era maravilhoso caminhar ao sol, no calor, depois de comer as bergamotas, beber água da fonte. Pura felicidade. Hoje nós passeamos no shopping, é curioso. O grande mistério é saber como a coisa toma este porte e entorta do jeito que entortou.
Na comunidade, vi um outro aspecto marcante: as pessoas não se fixavam. Elas passavam por ciclos. Havia uma instabilidade emocional nelas. Ou seja, não ficavam bem com elas mesmas. Isso se caracterizava assim: na época do plantio estava todo mundo lá, feliz. Na época da capina só tinha metade das pessoas.
Nesta minha função de lama, tenho refletido, meditado, sobre essas questões. Este é um tema recente e não podemos nos isolar. Temos novos desafios: os biólogos, os agricultores, todos temos que fazer a nossa parte. Essa dimensão espiritual precisa encontrar o seu ponto, sua conexão. As conexões todas existem. Nós precisamos exercer esse papel.
Na perspectiva budista, usamos o método da mandala. Quando buscamos estabelecer relações apropriadas conosco mesmos, com os outros seres e com a natureza, ficamos felizes. Como estabelecemos essas relações apropriadas?
Existe um ensinamento antigo que se refere às Cinco Sabedorias, cinco tipos de inteligências, que são simbolizadas por cinco cores (azul, amarelo, vermelho, verde e branco).
Estas sabedorias compõem a mandala e nos ajudam a construir o mundo como um local onde reconhecemos a pureza, reconhecemos a pureza natural que está presente. É dito que não podemos nos apropriar pessoalmente dessas cinco sabedorias. Elas são existentes. É como a luz da lua ou do sol. Podemos tomar sol, ou não.
A primeira sabedoria é simbolizada pela cor azul, chamada Sabedoria do Espelho. Eu acredito que, no âmbito da ecologia, este aspecto é muito importante, porque nos diz: “não perca tempo”. A cor azul também nos ensina: “a pura oposição aos outros não é suficiente”. É necessária uma postura aguerrida, de não-desistência, não-esmorecimento e ação positiva constante. Ela tem um aspecto nem sempre bem entendido.
No budismo tibetano diz-se que há uma perfeição natural em todas as coisas. Mas como entender essa natural perfeição na destruição da floresta? Não significa que o ato seja perfeito, mas quando as pessoas estão operando dessa maneira, têm uma forma de raciocínio. Se simplesmente nos opusermos a elas, não seremos entendidos. É necessário deslocá-las do conjunto de referenciais com os quais estão operando. Assim, quando chegarmos aos lugares, não vamos dizer “vocês estão fazendo tudo errado.” Diremos “o mundo que você está construindo com os olhos está produzindo este impulso de ação.” Se não entendermos isso, criaremos inimigos. Falaremos de alguma coisa que o outro não é capaz de fazer.
A Sabedoria da cor amarela, da Igualdade, é a segunda inteligência. Considero que esta sabedoria é a que irá nos salvar, porque não pode ser vendida pelo sistema. Quando oferecemos alguma coisa, o outro se beneficia e nós nos alegramos, esta é a Sabedoria da Igualdade. Quando mantemos um determinado lugar vivo, preservado e limpo, temos uma alegria, não temos? É essa alegria que vai nos salvar. O mesmo acontece quando, por exemplo, protegemos nossos filhos. Isso é a sabedoria da igualdade, existe uma igualdade entre os seres, uma inseparatividade entre nós. Essa inseparatividade traduz o ser humano.
Precisamos dessas duas inteligências: a sabedoria de entender o outro em seu contexto e a sabedoria de beneficiá-lo e encontrar nisso a nossa própria alegria. Isso deve ser aplicado não apenas aos outros seres, mas a nós mesmos, ao ambiente e às inteligências locais.
A terceira sabedoria é a da cor vermelha [Sabedoria Discriminativa], que também nos diz “não perca tempo”. Se você simplesmente faz hoje e perde amanhã, está perdendo tempo. Toda a sociedade está conectada aos objetos. Ainda que tenhamos muito apego aos automóveis, aos notebooks e às máquinas fotográficas, vemos a obsolescência rápida de tudo. Não vamos encontrar nenhuma estabilidade desse modo. No entanto, se estabelecemos relações positivas em várias direções e protegemos o ambiente, isso produz resultados permanentes. Alimenta nosso coração de modo permanente. Os objetos não têm esse poder, pois estão dentro da experiência cíclica.
A seguir, temos a [Sabedoria da Causalidade], cor verde, que é a quarta sabedoria, a quarta inteligência. Ela também é muito necessária nos tempos de hoje, porque se refere à causalidade. No geral, temos uma compreensão muito limitada da causalidade. Para o budismo, não há nada que você faça que não tenha consequência. Isso se parece com a própria ecologia.
Foi mencionado aqui, nesse encontro, a noção de esgoto “a céu aberto” e “a céu fechado”, que seria a forma usual de saneamento. Muito boa essa imagem. Porque é “a céu fechado” não estou mais vendo o aspecto causal. Mas o causal vai explodir em algum lugar, com certeza. Então, a causalidade é essa compreensão de que toda a ação que fazemos tem uma consequência. Essa consequência é “irada”. No budismo, dizemos que há um cobrador cármico. Posso até tentar esconder o que faço, mas inevitavelmente aparecerá de algum jeito.
No centro da mandala está a cor branca [Sabedoria de Darmata], a transcendência. Mesmo que façamos tudo direito, pode ser que não tenhamos aproveitado verdadeiramente a vida e fiquemos com a sensação de não saber de onde viemos, para onde vamos ou quem somos. O que há em nós além dos próprios ciclos, além de vida e morte, presente incessantemente em vida e em morte.
Queria concluir lembrando Sua Eminência Chagdud Tulku Rinpoche. Muitas vezes o acompanhei e vi as pessoas indagarem: “O mundo vai melhorar ou vai piorar?” Ele costumava dizer: “Vejo que o que é bom vai crescer e o que é ruim também. Por outro lado, vocês não se preocupem muito, porque o que está mal é o mundo ilusório”. Achei aquilo muito interessante. Vejo que tem acontecido isso. O mundo comum, ilusório, o mundo artificial, construído pelas pessoas, está insustentável.
Naturalmente, todos os seres têm a natureza divina. Mesmo as pessoas poluidoras, que fazem tudo muito errado, têm essa natureza, só que elas não sabem. A cor branca significa compreender a nossa verdadeira natureza e ter a capacidade de viver a partir dessa consciência. Nós estamos convergindo para um ponto que é a cor branca.
Queria agradecer e dizer da minha felicidade de ter todos vocês aqui. Somos naturalmente da mesma família com diferentes aptidões. Precisamos da diversidade. Cada um tem a sua preciosidade. No budismo, dizemos que os obstáculos são o remédio, quando transformados em sabedoria.
O texto acima foi publicado originalmente na Revista Bodisatva nº 16, em 2008.
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1 Comentário
Há muito tempo o Lama Samten nos transmite o mesmo Dharma mas muito lentamente vamos “realizando” percebendo a vastidão e profundidade. Vida longa e próspera ao Lama.