Resistir, comer e viver

Nesse artigo, um dos primeiros editores da Revista Bodisatva, José Fonseca, aborda a importância da comida na vida, destacando que comer é uma atividade fundamental para a sobrevivência e que, portanto, deve ser tratada com respeito e atenção. O autor cita o texto “Instruções ao Cozinheiro” de Mestre Dogen, que enfatiza a importância de preparar as refeições com as próprias mãos e oferecê-las aos Três Tesouros. Além disso, aborda a questão da fome e da desigualdade no mundo, destacando que muitos seres humanos não têm o que comer, enquanto outros desperdiçam alimentos em excesso. Por fim, destaca a importância de clarear a vida e harmonizá-la com a prática. Leia um trecho dessa matéria disponível na Revista Bodisatva 34.

Se existe um imperativo ético no budismo é, acima de tudo, a vida. Como viver? Outro dia, durante um retiro zen na Montanha Grande Buda, em Viamão, estudávamos um famoso   texto do século 13 intitulado Instruções ao Cozinheiro (Tenzo Kyokun), de Mestre Dogen. Ele nos lembra que comer é a atividade básica para sustentar nossa vida. Não podemos viver sem comer. Isso não é diferente para os praticantes budistas. O Buda disse que só se mantém vivo quem se alimenta e que perdemos nossa vida se não comemos. “Comendo mantemos nossa vida, aumentamos nossa força, temos uma aparência mais saudável, superamos a angústia e acabamos com a fome e o enfraquecimento.” Em essência, comer é existir e é também resistir.

Uma história do monge budista tailandês Ajaan Suwat Suvaco conta que, durante um retiro, um principiante disse: “Esta religião seria bacana se tivesse um Deus, pois isso dá sentido à prática quando as coisas dão errado”. E o monge disse: “Se houvesse um Deus capaz de fazer todos os seres se saciarem com a comida que eu como, eu me prostraria diante dele. Só que até hoje não encontrei ninguém com essa capacidade”.

“Se todos somos um, nossos estômagos deveriam ser interconectados”, alguém comentou. Um comendo, todos seriam alimentados. Mas, muitas vezes, no processo de alimentação, um ser acaba no estômago do outro. 

A comida foi, na maior parte da história da humanidade, um bem escasso. O alimento, hoje em dia, se produzido com hormônios e agrotóxicos, muitas vezes não alimenta. Quando preparado industrialmente para induzir gula, prejudica a saúde, principalmente das populações mais pobres e vulneráveis. Só no Brasil, dos seus mais de 210 milhões de habitantes, 33 milhões – cerca de 15% da população – estão em situação de fome. Assim, para a legião de famintos, comer passa a ser o maior ato de resistência. A questão é: comer o quê? E comer como?

Buda numa folha de alface

No seu texto escrito no ano de 1237, quando a população mundial girava em torno de 400 milhões e a do Japão beirava os 6 milhões, Mestre Dogen nos aconselhou a refletirmos a respeito do que poderia ter sido nossa vida se tivéssemos nascido num dos reinos do inferno, ou se fôssemos (em pálida tradução dos termos sânscritos que representam os diferentes lugares ou as diversas formas de renascimento dos seres humanos) um espírito insaciável, um animal rastejante ou um demônio. “Como nossa vida seria difícil”, reflete ele, “se vivêssemos numa dessas circunstâncias. Seríamos incapazes de praticar o Darma com o apoio da comunidade, mesmo se quiséssemos. Sem poder preparar refeições com nossas próprias mãos e oferecê-las aos Três Tesouros, nossos corpos-mentes estariam sujeitos às aflições e limitações desses mundos e obrigados a suportar um fardo muito pesado.” 

Hoje, no entanto, milhões de seres humanos não têm o que comer. Quem tem, querendo experimentar o ensinamento de Dogen, não deve se lamentar da quantidade ou da qualidade, mas tratar essa comida com o maior respeito. Além disso, “é essencial clarear nossa vida e harmonizá-la com a prática, sem perder de vista nem o absoluto, nem o relativo. Utilize até uma simples folha de alface de maneira que ela manifeste o corpo de Buda. Isso permite ao Buda se manifestar através dessa folha. É um poder que não se pode entender com a mente racional, mas que opera em nossas vidas para clarear e aprofundar nossas atividades e torná-las benéficas para todos os seres”.

Em várias partes do mundo, há povos originários que ainda demonstram esse tipo de sensibilidade em práticas alimentares, nos diferentes rituais de agradecimento ou pedidos de permissão para ingerir alimentos caçados ou coletados. Há casos de primeiros contatos dos membros desses povos com a cultura ocidental em que o indivíduo é simplesmente incapaz de compreender nossa insensatez. Por exemplo, ao ver pessoas famintas ao lado de imensos estoques de alimentos em mercados públicos, se questionam: “Por que elas não usam o que existe ali em tal abundância para manter suas vidas?” Esse mistério da sociedade capitalista de consumo embaça a lógica cristalina de que, para sermos realmente saudáveis, é fundamental que todos os seres também o sejam. 

A grande questão de termos de comer outras formas de vida para sustentar a nossa, resolvida naturalmente em uma coletividade saudável, se assemelha a um filme de terror, quando assistimos ao método cruel e ganancioso de criar animais para o abate na nossa sociedade de consumo. O USDA, Departamento de Agricultura Norte-americano, projetou um rebanho bovino brasileiro de 275 milhões de cabeças em 2022. Segundo informações do site da Suinocultura Industrial, o Brasil abateu 13,04 milhões de porcos apenas no segundo trimestre de 2021 para o mercado mundial de carnes. A Agência Brasil noticiou que, nesse mesmo ano, o abate de frango em território nacional atingiu a monumental cifra de 6,18 bilhões de cabeças – 29 frangos para cada brasileiro. 

O custo de mover as engrenagens de tal sistema econômico é a aniquilação do planeta. Esvai-se a biodiversidade. Os rios viram depósito de resíduos de hormônio, mercúrio, antibióticos (…). A Amazônia, desmatada e queimada, se transforma em pastagens imensas; o cerrado, em campos de soja; a terra fértil, em monocultura de cereais – tudo para alimentar uma indústria de alimentos que, paradoxalmente, produz a fome e a morte. 

A pesca predatória e ilegal também é um fator de desequilíbrio que coloca em risco inumeráveis espécies, inclusive a espécie humana. O assassinato, em junho deste ano, do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Araújo está relacionado a invasões sucessivas da terra indígena do Vale do Javari, no estado do Amazonas. A água dos muitos rios desse território, com a grande diversidade de peixes que constituíam a segurança alimentar de suas populações, vai sendo paulatinamente envenenada. Agora, a presença de garimpeiros, madeireiros, pescadores e traficantes, com o beneplácito do governo federal, coloca em risco a vida das populações locais, principalmente a vida dos povos indígenas.

Para ler a matéria completa, adquiria o exemplar impresso da Revista Bodisatva 34 aqui.

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Créditos da imagem: Fabiones Perez