Tara Vermelha (Foto: Reprodução/ internet)

Saudando Arya Tara

Lama Padma Samten contempla a natureza feminina que sustenta o mundo


Por
Revisão: Dirlene Ribeiro Martins, Caroline Souza, Polliana Zocche e Henrique Lemes
Edição: Breno Airan

Nesse ensinamento proferido em 2004 no Museu da República do Rio de Janeiro, a convite da Mandala de Tara, e publicado na edição nº 29 da Revista Bodisatva, o Lama Padma Samten afirma que Arya Tara é o próprio entendimento de que a natureza dos fenômenos é cíclica e, por isso, ela aponta para o refúgio mais interno: a nossa capacidade aberta e criativa inata. 


Prajnaparamita é a condição natural na qual todos os Budas repousam. Ela é chamada de mãe dos Budas. Uma das formas de pensar Prajnaparamita é como Arya Tara, a deidade feminina mais popular no Budismo tibetano.

Para nós, não é possível um porto seguro que não seja repousar e agir a partir da condição de Prajnaparamita e também de Arya Tara. Isso é fácil de entender quando percebemos que, mesmo durante uma única vida biológica, nós podemos ter várias vidas psicológicas, várias vidas de identidades específicas. Dentro de uma mesma vida, nós vivemos e morremos várias vezes: nas nossas profissões, nos nossos relacionamentos. Essas vidas e mortes são a condição natural da nossa vida.

A cada ano, nós fazemos planos. Nós vivemos os nossos planos por um tempo, depois esses planos cessam, se completam, dão origem a outros planos e assim vai indo. Nós temos também ciclos que são mensais, ciclos diários, ciclos que são ideias que a gente tem durante um dia. Objetivos curtos. É como quando nós nos reunimos em uma sala para ouvir uma palestra e, daqui a pouco, vamos todos e todas embora. Há um ciclo que começa quando a palestra começa e, então, o ciclo cessa. 

É como se estivéssemos condenados a ter experiências cíclicas o tempo todo, ou seja, coisas começam, têm uma duração e cessam. Algumas vezes, nós geramos conexões tão intensas nessas nossas vidas transitórias que nós nos afligimos, ainda que essas vidas transitórias acabem. Não é sequer necessário que essas conexões sejam muito relevantes à vida para que a gente se conecte, mas, sejam quais forem elas, nós vamos ter inevitavelmente esse aspecto cíclico.

Por exemplo, as crianças começam um jogo — que é um tipo de vida também —, mas se o jogo terminar, se aquilo parar, a criança se sente meio mal. Nós estamos vendo a novela num certo horário. Se a gente tiver que interromper aquilo, a gente também se sente meio mal. A gente está vendo um filme e, se aquilo é interrompido, nós nos desajeitamos. A gente está no computador, na internet, a ligação cai… nós já ficamos meio desajeitados também. Então, nós temos essas aflições que surgem pela impermanência, pela descontinuidade das nossas experiências.

Quando nós começamos um ciclo desses, nós aspiramos que ele se complete, que ele vá até o fim. Desse modo, nós temos essa espécie de apego a isso. Nós temos também apego aos resultados e, por isso, sofremos.

Então, o Buda vai dizer que dentro da experiência cíclica, as nossas felicidades também são impermanentes. Nós temos coisas boas, aquilo dura um tempo e cessa. Devido a isso, há vários sofrimentos. Por exemplo: nós aspiramos à felicidade e, eventualmente, não alcançamos aquela felicidade. A gente não alcança aquilo que estava aspirando. Assim, nós sofremos, porque não alcançamos.

Também nós encontramos objetivamente condições felizes, mas podemos ter medo de perder essa felicidade. A partir disso, sofremos, por essa felicidade poder desaparecer. Também nós encontramos situações felizes e sofremos, porque, não só a gente poderia perdê-la, como a gente realmente perde.

É assim. A gente teve aquilo, não tem mais. Nós encontramos situações felizes, porém, vemos seres que têm um “olho pesado” para nossa situação feliz e a gente se aflige, porque eles olham assim. 

Outros olham para nós e eles querem nos arrancar tais condições. Outros olham para nós e se sentem agredidos pela nossa felicidade. 

Nós também, às vezes, temos medo de mudar. “Eu estou feliz assim, mas talvez eu não esteja completamente feliz. E se eu mudar?” Daqui a pouco, eu não quero mais isso que eu quero. Desse modo, vocês vão ver que há essa classe de infelicidade também, pois a gente obteve exatamente o que queria, mas, nesse momento, nós estamos em processo de mudança. Aquilo que a gente obteve, talvez agora — justo porque é tão bom, tão estruturado, tão arrumado, tão harmônico —, a gente não consiga sair daquilo que lentamente começa a se tornar uma prisão. A prisão que a gente construiu para nós, mas nós já não estamos mais querendo aquilo. Estamos em um processo de saída.

Nós temos sofrimentos, porque as coisas mudam. Nós temos sofrimentos, porque nós mudamos.

Nós podemos encontrar dificuldades em qualquer tipo de construção. Tão pronto aquilo se estabelece, nós temos sofrimentos.

Assim, o Buda diz: essa é a Primeira Nobre Verdade. Todos nós estamos submetidos a essas circunstâncias.

Daí o Buda formula a Segunda Nobre Verdade. Ele diz: os seres, eles vivem isso, mas isso não é natural. O sofrimento não é natural. O sofrimento é construído. O sofrimento é construído por causas, por artificialidades. E essas artificialidades dizem respeito ao fato de que nós passamos a nos estruturar através de relações transitórias. Nós não estabelecemos causas de felicidade que sejam estáveis. Nós criamos conexões com fatores transitórios, fatores impermanentes. Assim, a nossa felicidade, uma vez estruturada, como está na dependência de fatores impermanentes, lida com esses fatores que mudam — a felicidade afunda.

Essa é a causa. Não tem outra causa. Vocês não precisam colocar a culpa nas outras pessoas, dizer que elas são as causas. Coloquem no fato de vocês terem se tornado dependentes desses fatores transitórios.

Em seguida, o Buda fala a Terceira Nobre Verdade. Ele diz: uma vez que tudo isso é artificial, o sofrimento é construído artificialmente — ele é construído por essas conexões artificiais —, uma vez que isso se dá assim, nós podemos nos libertar do sofrimento. Essa é uma boa Nobre Verdade. Uma Nobre Verdade otimista, ou seja, todos nós podemos nos libertar do sofrimento e das causas do sofrimento. Nós também podemos ajudar os outros a se libertarem do sofrimento e das causas do sofrimento.

Então, é justo, porque há essa Terceira Nobre Verdade, que nós podemos nos conectar com Prajnaparamita e Arya Tara, visto que essas qualidades não são nossas. Não somos nós que praticamos, não fomos nós que inventamos isso. Por exemplo, quando a gente diz “Eu vou praticar compaixão, eu vou praticar o amor”, nós não podemos dizer que “compaixão” e “amor” sejam algo nosso. Eles são tão nossos quanto a lua que nós vemos numa poça d’água no chão, numa noite de luar. A lua não pertence à poça d’água e, assim, quando vocês se relacionarem com essas qualidades de Tara, vocês estão se relacionando com algo muito mais amplo.

Quando nós nascemos, nós já encontramos a expressão de compaixão e de amor. Quando nós morremos, as expressões de compaixão e de amor seguem. Então, na verdade, nós estamos fazendo contato com algo realmente maravilhoso.

Eu me alegro, especialmente porque a prática de Tara manifesta a conexão de sabedoria através da forma feminina.

Isso é especialmente maravilhoso, porque a forma feminina sustenta o mundo.

É maravilhoso que a gente possa ver a forma feminina, sendo o lago encantado onde a lua da natureza ilimitada se manifesta. Vocês devem lembrar que nós não somos nem homens, nem mulheres, mas a natureza feminina existe. A natureza feminina construiu o mundo; é um lago acolhedor, encantado, onde a natureza ilimitada pode refletir e se manifestar.

Cada um de nós tem uma vida curta, mas a natureza feminina também é construída e ela tem uma expressão muito mais longa do que uma única vida humana. Então, é encantador nós combinarmos, nós permitirmos que essa natureza ilimitada se reflita nas nossas naturezas mortais e, também, que ela se impregne de forma perfeita à natureza feminina.

Essa combinação maravilhosa da mãe do mundo com a natureza de Buda produz Arya Tara. As qualidades de Arya Tara são diversas e incluem a qualidade de ser uma heroína corajosa, de destruir as negatividades e de sorrir diante das aparências. Como é possível tantas qualidades?

Painel do Templo do CEBB Caminho do Meio (Foto: Reprodução/ site CEBB)

Entender a manifestação de Arya Tara, Guru Rinpoche e Cherenzig no mundo é ver de maneira mais nítida a Quarta Nobre Verdade: há um caminho através do qual todos os seres podem atingir a liberação. Ao nos aprofundarmos nesse caminho, deixamos de nos ver como seres isolados. Nós só existimos em processo de relação.

No Budismo, diz-se: quando você estabelece relações positivas ao redor, na verdade, você surge através de relações positivas. Não é que você seja alguém e, diante disso, tem relações positivas com o mundo. Você se constrói através de relações positivas.

Então, a primeira recomendação do Buda é essa: não crie relações negativas. Não crie sofrimentos no mundo. Não produza ações de aflição sobre os outros. Não se construa a partir de relações negativas. Surja através dessas relações positivas.

Essa é a forma que temos de cultivar a inteligência de Arya Tara dentro de nós e da nossa vida.


Matéria publicada em 03/01/2025
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