Se você olhar bem…

Inspirações para um livro de contos


Por
Revisão: André Luís Daguerre e Cristiane Schardosim Martins
Edição: André Luís Daguerre

Neste texto, Tamira Rocha relata o seu processo de inspiração para o surgimento do seu livro “Se você olhar bem…”. Um relato inspirador de como ter lidado com os desafios surgidos durante o período mais intenso da pandemia. Tamira nos conta como foi poder olhar o mundo interno apoiada pela Sanga, por sua devoção ao mestre Zen Thich Nath Hanh- falecido, por sua contemplação dos ensinamentos, e como a leitura de seus contos segue trazendo diferentes entendimentos e mudanças. Esse é um relato que nos mostra a presença viva do coração imenso do seu professor, e deixa claro uma consciência da continuação amorosa de Thich Nath Hanh.


Quando Thich Nhat Hanh (ou “Thay”, como o chamamos) fez a passagem, em janeiro de 2022, fazia poucos meses que eu tinha me conectado à sangha. Graças à expansão do universo online durante a pandemia, tive a oportunidade de começar a participar dos encontros da Sangha Plena Consciência, onde senti profunda familiaridade e pertencimento, como se já fizesse parte dessa família há tempos (quem sabe, há vidas).

Na pandemia, com o isolamento social e recolhimento, precisei olhar para antigos medos a respeito da morte, além de tantas outras emoções. E nesse processo de introspecção, comecei a sentir necessidade de encontrar um caminho sólido e confiável para aprofundar, estudar e praticar meditação. Eu já conhecia alguns livros do Thay, já o admirava de longe, mas foi a sangha que me aproximou de seus ensinamentos, e passei a vê-lo com profundo amor e reverência.

Sua passagem me tocou profundamente. Uma mistura de tristeza e imensa gratidão me atravessou por dias. Pude acompanhar as cerimônias através das transmissões pelo youtube junto à sangha global. Sentir a força da sangha conectada e abraçada naquele momento, mesmo que virtualmente, foi muito especial. Ao acompanhar a cremação do corpo, olhei para o medo da morte com muito amor e acolhimento, e, então, tomei refúgio no coração imenso do Thay, consciente da sua continuação.

Algumas semanas depois, estava sentada no salão de práticas, em casa, olhando o céu pela janela. Observava o movimento das nuvens, surgindo e desaparecendo: “uma nuvem nunca morre”, lembrei dessa frase do Thay. Então senti vontade de escrever. Me abri para ouvir o que aquelas nuvens queriam me contar sobre impermanência e “inter-ser”. E foi assim que os contos do livro “Se você olhar bem…” nasceram. Ao mesmo tempo que este livro é uma singela homenagem ao nosso querido Thay, é também um diálogo com a minha criança interior. Os contos trazem algumas memórias da minha infância, de quando eu era pequena e olhava para a morte com muito medo, estranheza e curiosidade. Olhava para a passagem do tempo e me perguntava “por que as férias acabam? Por que a alegria é passageira? Por que a vida termina?”

Para quem conhece os ensinamentos do Thay, sabe que ele tem algumas práticas de meditação para a criança interior. Ele nos convida a olhar e cuidar dessa criança que continua em nós. Gosto muito dessas práticas, pois sinto minha criança muito viva em mim, com toda sua criatividade, autenticidade e também com todos os seus medos e insegurança.

Após escrever os contos, senti muita alegria por ter dado vida à história da personagem Ananda, e logo pensei que seria maravilhoso publicar em forma de livro e espalhar estas sementes, para que crianças e adultos pudessem também contemplar questões complexas com ludicidade e leveza. Mas, ao mesmo tempo, senti insegurança e ansiedade com a ideia da publicação. Então, decidi enviar o texto para a querida Denise Kato (professora do Dharma da tradição de Plum Village) para ter seu feedback, e sua resposta foi bastante amorosa, positiva e animadora. O segundo passo foi procurar por uma editora que abraçasse o projeto, e, depois de muitas tentativas, me reencontrei com a querida Isabel Valle da editora Bambual (editora pela qual tenho muita admiração e apreço, que publicou no Brasil os livros “Esperança Ativa” de Joanna Macy, e “Ecodarma” do David Loy, dentre tantos outros). Isabel se conectou com o propósito do livro e felizmente topou me ajudar a materializá-lo. Sou imensamente grata a todos e todas que de alguma forma ajudaram a realizar essa publicação, especialmente ao apoio e carinho da querida sangha. Em seguida, mergulhei no universo das cores, e criei as ilustrações de forma bastante fluida e intuitiva com aquarela de pigmentação natural. Este processo de criação das ilustrações foi bastante especial, pois pude sentir o “inter-ser” – as folhas, a terra, as flores, a amora, a nuvem, a chuva, o Thay – em cada pincelada, em cada respiração.

Ultimamente, todas as noites antes de dormir, Flora, minha filha de 5 anos, tem pedido para eu ler o livro “Se você olhar bem…”. E a cada leitura aprendo algo novo, ressignifico memórias, e convido minha criança interior para estar comigo no momento presente. Já faz um tempo que Flora tem questionado e refletido sobre a morte, e percebo que esta é uma questão bastante natural no universo das crianças, e não deveria ser um tabu. O livro é um convite a essas reflexões (para crianças de 0 a 108 anos), e tem nos ajudado a contemplar a vida, a morte e a impermanência através da sabedoria do “inter-ser”.

Continuo aprendendo com a personagem Ananda, com a minha filha, com a minha criança interior, e com os ensinamentos do Thay. A cada novo momento, tomo refúgio em seu coração repleto de sabedoria e amor.

“Se você olhar bem, eu continuo aqui… meu corpo irá se dissolver, e se transformar. Você poderá me encontrar nas flores de lavanda, nas flores de jasmim, ou sempre que se lembrar de mim. Se puder me reconhecer, e sorrir pra mim, eu ficarei muito feliz.

(…) O Sol apareceu por alguns instantes, entre as frestas da manhã cinza, e secou as lágrimas da menina. Ela o reconheceu, sorriu e agradeceu.” (Trecho do conto “Inverno”, do livro “Se você olhar bem…” de Tamira Rocha, editora Bambual).

Sobre Tamira Rocha:

Tamira Rocha é mãe, escritora, ilustradora e mora em Lagoinha, interior de São Paulo. É formada em Biblioteconomia (USP), com especialização em Cultura de Paz (UNIPAZ-SP). Publicou, em 2021 e de maneira independente, seu primeiro livro infantil “Guardiões da Natureza: um conto inspirado na magia da Cachoeira”. Praticante zen budista na linha do mestre Thich Nhat Hanh, recebeu os Cinco Treinamentos da Plena Consciência, e, em março de 2023, obteve o nome de Dharma “Fonte da Grande Aspiração”. É facilitadora em grupos de mulheres que praticam meditação, danças circulares, artes e autoconhecimento.

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1 Comentário

  1. Daniel disse:

    Que livro maravilhoso, nascido do coração. Uma delícia de ser lido. Transmite paz e muito amor.

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