“Zen é atingir a mente-nada e usá-la”
Em algumas de suas falas e palestras, o Lama Padma Samten comentou sobre o ensinamento “Apenas não saiba” do mestre Zen coreano Seung Sahn, ou Soen Sa Nim, como também é conhecido, e sugeriu que a Bodisatva publicasse algum de seus textos. Em nossa pesquisa, nos deparamos com uma seleção de cartas trocadas entre este grande mestre e seus alunos e alunas, publicadas no livro Only don’t know – Selected teaching letters of Zen Master Seung Sahn.
Todos os dias, após a sessão de prática, as cartas dirigidas a Soen Sa Nim eram lidas e respondidas na própria sala de meditação para que os outros também as ouvissem. As respostas eram então transcritas e enviadas de volta ao remetente. Apesar de ter exercido uma atividade intensa ao longo de sua vida, tendo fundado inúmeros centros de Darma ao redor do mundo, conta-se que nenhuma carta ficou sem resposta.
Nesta seleção, estão presentes tanto as cartas-perguntas dos alunos e alunas, quanto a carta-ensinamento do mestre. “Apresentar apenas o remédio e não apresentar a doença? Isto não é correto“, disse Soen Sa Nim em resposta à possibilidade de uma publicação que trouxesse apenas seus ensinamentos. Logo abaixo, você pode ler uma dessas joias, intitulada “Meditação Correta”.
Berkeley, Califórnia
9 de julho de 1977
Querido Soen Sa Nim,
A Diana acabou de me ligar para contar do seu problema de coração e da diabetes.* Sinto muito por você não estar se sentindo bem. Lembro do choque que tive ao descobrir que o meu filho tinha diabetes e precisaria tomar insulina. Ele tinha apenas dezessete anos e o pâncreas não funcionava bem. Assim, o ajuste da dosagem de insulina dependia das suas atividades e da alimentação. Mas ele logo aprendeu a antecipar a necessidade e a beber suco de laranja quando a superestimava. Tenho certeza de que você também já se adaptou ao novo tratamento.
Senti muito ter perdido o último Grande Kido. Fique bem logo!
Te amo,
Marge.
*Em julho de 1977, Soen Sa Nim deu entrada no hospital para ter seu batimento cardíaco irregular monitorado, e começou a usar insulina a fim de controlar um quadro avançado de diabetes.
15 de julho de 1977
Querida Marge,
Agradeço a sua carta. Como você está?
Acabei de voltar do hospital. Você se preocupa com o meu corpo: obrigado! Agora estou seguindo as instruções e comecei a tomar insulina. Tomo pílulas para a diabetes há 15 anos, mas os médicos disseram que estas pílulas fizeram mal ao meu coração. Por isso, fui ao hospital, tomei alguns remédios para o coração e agora ele funciona bem. Então meu corpo não é um problema.
Durante minha estadia lá, muitos dos médicos interessavam-se por algumas técnicas de meditação que ajudam o corpo a se curar. Eles sugeriram que eu as tentasse para que o meu coração se recuperasse mais rápido, e eu o fiz. Logo que cheguei, meu coração não batia normalmente. Esse problema leva, em geral, de dois a três meses para ser solucionado. Mas, como meditei, curei-o em apenas uma semana, e os médicos ficaram bastante surpresos e felizes. Disseram que, hoje, muitos dos médicos gostam de meditação porque ela ajuda o corpo a se recuperar. Vários deles queriam aprender mais sobre meditação, então combinamos de eles virem ao meu quarto para que eu lhes ensinasse um pouco sobre o Zen.
Disse-lhes que, quando o verdadeiro eu é realizado, morrer daqui uma hora, um dia ou um mês não é um problema. Se praticarmos apenas a meditação de “cura-do-corpo”, ficaremos majoritariamente preocupados com o corpo. Mas daqui a um tempo, quando chegar a hora de o nosso corpo morrer, tal meditação não irá ajudar, e não seremos capazes de acreditar nela. Isso significa que essa não é a meditação correta. Quando praticamos a meditação correta, adoecer de vez em quando é ok, sofrer de vez em quando é ok, eventualmente morrer é ok. O Buda disse: “se você mantiver uma mente clara a cada momento, terá felicidade em todo lugar.”
O quanto você acredita em você mesmo? O quanto você ajuda as outras pessoas? Essas perguntas são da maior importância. A meditação correta ajuda-o a encontrar o verdadeiro caminho.
Contei aos médicos que havia perguntado ao homem na cama ao lado da minha: “qual é o propósito da sua vida?”. Ele tinha um bom emprego, uma boa família, uma boa esposa, mas nada disso podia lhe ajudar. Então, ele respondeu: “nada”. Ele havia entendido “nada”, mas tal entendimento não podia auxiliá-lo, portanto ele sofria. Zen significa alcançar essa mente-nada.
Como se alcança a mente-nada? Primeiro você deve se perguntar: “O que eu sou? Qual é o propósito da minha vida?”. Se responder com palavras, isso não é nada além do pensar. Talvez você diga: “eu sou um médico”. Mas se estiver diante de um paciente e pensar “eu sou um médico fantástico”, não será capaz de perceber a situação do seu paciente — estará fixado ao seu pensamento. O pensamento é somente entendimento. Como o homem na cama do hospital, você descobrirá que o entendimento não vai ser capaz de ajudá-lo. E então o quê? Se você não sabe, deve apenas ir direto: não saiba.
A mente do não saber atravessa o pensamento. Ela é anterior ao pensamento. Antes do pensamento não há médico, não há paciente. Também não há deus, nem buda, nem “eu”, nem palavras — absolutamente nada. Você e o universo se tornam um. Chamamos isso de mente-nada ou ponto primário. Algumas pessoas dizem que isso é deus, ou energia universal, ou êxtase, ou extinção. Mas tudo isso são apenas palavras de ensinamento. A mente-nada é anterior às palavras.
Zen é atingir a mente-nada e usá-la. Como você a usa? Transformando a mente-nada em mente-de-grande-amor. Nada significa nenhum eu-meu-mim, nenhum impedimento, de forma que essa mente pode se transformar na mente de ação-por-todas-as-pessoas. Isso é possível. A mente-nada não aparece nem desaparece. Fazendo a meditação correta, a mente-nada se fortalece e você percebe a sua situação com clareza: aquilo que você vê, ouve, cheira, degusta e toca são a verdade, sem pensamento. Assim sua mente é como um espelho. E, momento a momento, você é capaz de manter sua situação correta. Se, diante de seus pacientes, o médico abandona eu-meu-mim e se torna um com eles, ajudá-los se torna possível. Se, quando está em casa com sua família, ele mantém cem por cento da mente de pai, entender o que é melhor para eles se torna algo claro. Simples assim. A montanha azul não se move. As nuvens brancas flutuam para um lado e para outro.
Então os médicos gostaram do Zen. Talvez tentem praticá-lo!
Espero que você apenas vá direto — não saiba, atinja a mente-nada, use a mente-nada, e salve todos os seres do sofrimento.
Seu no Darma, S.S.
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1 Comentário
Simples, e direto ao ponto, ou seja Nada é tudo e tudo é nada. A prática é tudo e nada.