Superar a polarização

“Se aprendermos a acomodar a desintegração sem polarizar e sem nos tornarmos fundamentalistas, tudo o que fizermos hoje terá um efeito positivo no futuro”


Por
Revisão: Lia Beltrão
Edição: Carol Franchi

A Bodisatva publica um trecho do livro Acolher o indesejável: Uma vida plena num mundo abatido (Editora Gryphus), uma combinação de sabedoria e reflexões sinceras da Pema Chödrön. Você vai encontrar nele o humor e perspicácia que tornaram Ani Pema esta figura a quem tantos de nós recorremos em tempos de turbulência. O livro foi escolhido para o estudo em grupo pela comunidade o lugar, que começa no próximo 29 de maio. Saiba mais aqui.


Há muitas maneiras de se falar sobre os problemas deste mundo mas, de um modo ou de outro, todos têm a ver com polarização. Todos nós temos a tendência de dividir pessoas, coisas e ideias em categorias bem contrastantes. Consciente e inconscientemente, espalhamos conceitos como “nós” e “eles”, “certo” e “errado”, “digno” ou “indigno”. Nesse esquema não sobra muito espaço para o meio termo; tudo se encontra num polo ou noutro. Quando grupos de pessoas ou nações inteiras se reúnem em torno desses conceitos, eles podem se ampliar imensamente, o que resulta em sofrimento de larga escala: discriminação,  opressão, guerra.

Esses problemas nacionais e globais têm suas raízes nos mecanismos sutis de nossas mentes individuais. Todos nós, em diferentes medidas, experimentamos algum sentimento interno de oposição, uns com os outros, e com o mundo que nos cerca. Nunca estamos muito satisfeitos com nosso modo de ser, com o dos outros, nem com as coisas do jeito que são. Muitas vezes isso se traduz numa aversão a qualquer coisa que estamos vivenciando.

Não gostamos do que está acontecendo e queremos nos livrar disso. Tudo pode começar com um grau sutil de aversão, que pode se desenvolver numa irritação mais óbvia. Daí pode aumentar até uma raiva ou ódio de grandes proporções. Outras vezes, nosso sentimento de oposição tem a ver com desejo ou avidez. Por exemplo, podemos querer muito um objeto ou situação por achar
que aquilo nos fará felizes. Mas esses desejos também se baseiam na visão das coisas separadas de nós, que vemos como outro. Em qualquer dos casos – aversão ou desejo – caímos numa forma de polarização. Quer estejamos “a favor” ou “contra”, o que há é uma falta de abertura e relaxamento em nossas mentes. Se nos observarmos de perto, provavelmente descobriremos que na maioria das vezes é assim.

Felizmente, existem maneiras bem eficazes de trabalharmos nossa tendência a polarizar. Podemos começar observando a qualidade “a favor” e “contra” de nossos pensamentos, palavras e ações e refletir a respeito. Podemos também notar e aproveitar aqueles momentos em que não estamos polarizando. Ao longo do dia, nos questionamos: estou perpetuando minha atitude de oposição? Ou estou diminuindo o vão entre mim e o mundo, contrariando essa tendência? Estou aumentando meu senso de separação do outro? Ou estou nutrindo bodhicitta, o anseio e comprometimento de despertar para o benefício de todos os seres vivos?

É relativamente simples trabalhar com a polarização no nível da ação física. Por exemplo, se abro a torneira do chuveiro e vejo uma aranha na banheira, tenho duas opções principais. Posso deixar a água correr e deixar a aranha entregue ao próprio destino.

Esse é um ato de polarização, pois cria um vão entre nós. Minha aversão ou indiferença pela aranha me cega para o que temos em comum como seres vivos. Nós duas queremos estar felizes e não sofrer; nós duas queremos viver, não morrer. Minha outra opção é fechar a torneira, pegar um pedaço de papel higiênico e usá-lo para ajudar a criaturinha a sair do perigo. Então posso pensar, “O dia mal começou e já salvei uma vida!” Como disse Dzigar Kongtrul Rinpoche certa vez: “Talvez seja um pequeno acontecimento para você, mas é enorme para a aranha.” Em certo sentido, porém, pode ser um grande acontecimento para mim também, porque nutre o despertar do meu coração. Podemos tentar passar os dias com uma consciência mais elevada de nossas ações, aproveitando cada oportunidade para diminuir o vão.

Às vezes seremos bem sucedidos, outras não. Podemos até fracassar terrivelmente. O que acontece, então? Digamos que você sinta tamanha aversão por alguém que chega a empurrar a pessoa, bater nela ou até pior. Esse tipo de agravamento pode acontecer a qualquer um. Quando surgem as condições ideais para a tormenta de frustrações, não é preciso ser uma pessoa classicamente violenta para perder o controle. O que você deve fazer então? Qual é a melhor maneira de dar as costas para seu comportamento polarizador e voltar ao caminho da bodhicitta?

Um método popular de lidar com esse tipo de atitude é sentir culpa. Se o que fizemos foi especialmente agressivo ou ferino, essa culpa pode durar muito tempo, talvez até pelo resto da vida. Mas esconder-se num estado de culpa não vai nos ajudar a superar nosso sentimento de distanciamento. Não contribuirá em nada para nosso despertar. Então, em vez de reagir com culpa ao que fizemos, podemos aproveitar a situação e usar nossa experiência desagradável para ficarmos mais espertos.

Se, num momento de raiva, você empurrou alguém, pode começar a virar a jogada simplesmente reconhecendo seu comportamento hostil. Permita-se a total consciência de que acrescentou agressividade e conflito ao nosso planeta – o qual não precisa disso mais do que já tem, como bem se sabe. Você pode se arrepender do que fez, mas é importante fazer o possível para ultrapassar a opressão da viagem culposa. Ficar consciente dessa maneira, sem se flagelar, pode representar uma enorme saída de seus padrões anteriores de se proteger do fato de ter comportamentos negativos, reprimindo-os ou ignorando-os. Pois nesse momento você tem a chance de transformar seu erro em algo positivo.

O que você acabou de fazer deixa-o vividamente ciente da dolorosa realidade de que em todo o mundo, todos os dias, as pessoas empurram umas às outras, apunhalam, baleiam, são cruéis de várias formas. Isso tudo acontece devido à ignorância – ignorância de nossa interconexão uns com os outros e da nossa bondade básica. Mas agora, em vez de se flagelar pelo deslize, você pode aspirar uma maior consciência das suas ações ferinas e do quanto esses atos estão espalhados pelo mundo. Sua ação abriu-lhe os olhos para a condição humana, para o quanto somos frágeis e vulneráveis. Esse pensamento desolador o faz ansiar pela realização de qualquer coisa possível para ajudar. Através de sua experiência, você entende a importância de encontrar um modo de trabalhar seus padrões habituais, de aprender como ficar presente com suas emoções sem deixar que elas transbordem e derramem em forma de ação. Para começo de conversa, você quer ficar totalmente consciente de como chega àquele extremo, àquele ponto polarizado. É assim que renova naturalmente seu compromisso de despertar para o benefício dos outros. Dessa maneira seu erro aparente pode se tornar uma fonte da bodhicitta.

A ideia é ficarmos cada vez mais conscientes do que estamos fazendo e de que nossas ações têm consequências. Examinar nosso comportamento para ver se ele é polarizador é uma extensão da pergunta “Isso importa?”. Uma vez enxergando o que está em jogo – não apenas para nós mesmos, mas para o ambiente que nos cerca e para o planeta como um todo, que tanto sofre com a polarização – ficamos naturalmente motivados a adotar payu, uma atitude cuidadosa. Podemos aos poucos refinar payu para que esteja presente em níveis mais sutis do nosso comportamento, começando por nossas palavras.

Faz muito tempo que não empurro alguém e faço todo o possível para não ferir nenhum animal, nem mesmo os insetos e roedores mais importunos – mas a fala representa um nível bem diferente de desafio. Todos nós reconhecemos o quanto é difícil não deixar que palavras nocivas nos escapem da boca. Existe uma imensa variedade de falas polarizadoras, dos insultos e mentiras grosseiras à difamação e fofoca, além de todas as outras formas que temos de criar divisões entre as pessoas. Às vezes, nosso discurso polarizador é tão familiar e tão aceito entre as pessoas com quem andamos que nem percebemos o mal que pode estar causando. Assim como acontece com a ação física, o método de superar a fala polarizadora é nos tornarmos mais conscientes do que estamos fazendo – sem cair na culpa – e usar nossas experiências lamentáveis como modo de aumentar bodhicitta.

Então chegamos ao nível mais sutil de polarização, o mental. Ao contrário de nossos atos e palavras, nossos pensamentos não chegam ao mundo com repercussões flagrantes. Mas serão esses pensamentos realmente sem importância? Estamos lá sentados, inofensivamente pensando com nossos botões: “Ela bem merece que baixem a bola dela. E o que ele fez foi muito errado. Sei disso porque fiz uma enquete e todo mundo concordou comigo.” Podemos ficar ali o dia todo, numa sequência de pensamentos críticos, intolerantes, sem perceber o quanto de polarização mental estamos criando. Os sulcos em nosso cérebro aprofundam-se com cada pensamento repetitivo, formando padrões, crenças e atitudes habituais. Conscientes ou não, esses padrões aumentam nossa propensão a nos distanciarmos do outro e vão sutilmente minando nosso desejo de despertar para o benefício de todos.

Além disso, é inevitável que acabem se expondo em nossa fala e atitude. Se você está sempre julgando o Isaías mentalmente, há uma boa chance de que ele acabe descobrindo o que você acha dele de fato e não vai ser legal. Mas se você nunca se entrega a pensamentos críticos sobre a Gabriela, não há chance de que vá ser agressivo com ela depois de uma noite mal dormida. Se criarmos uma cautela saudável em relação ao poder destruidor dos nossos pensamentos, teremos muito mais incentivos para cortar pela raiz nosso pensamento crítico. Assim, ficaremos bem mais à vontade em todas as situações, especialmente quando estamos com pessoas que nos dão nos nervos.

O ponto mais problemático da polarização é quando desumanizamos as pessoas, quando esquecemos que aquelas que julgamos, criticamos e de quem discordamos são tão humanas
quanto nós mesmos. Essa desumanização pode se manifestar de uma forma óbvia, como apartheid, escravatura, brutalidade policial ou genocídio. Mas algum grau desse tipo de preconceito existe na mente de todos. Se formos honestos conosco, veremos que habitualmente desumanizamos os outros por várias razões. Por exemplo, se as pessoas têm visões políticas que consideramos estreitas ou retrógradas, é bem possível que nos seja problemático vê-las como totalmente humanas. Se elas não acreditam em mudanças climáticas ou na evolução, talvez inconscientemente as desqualificamos como membros totalmente desenvolvidos da raça humana. Podemos condenar os outros por seu comportamento ou criticá-los porque fumam, bebem ou usam roupas que consideramos cafonas. Até mesmo essas diferenças irrisórias de hábitos e preferências podem nos provocar uma sensação de grande separação das pessoas.

Se nos comprometermos a manter a consciência de nossa tendência polarizadora e pelo despertar da bodhicitta a neutralizarmos, pouco a pouco fecharemos esses hiatos e seremos capazes de ver todas as pessoas como nossos semelhantes, querendo ser felizes como nós. Isso inclui não apenas os que negam as mudanças climáticas e os fumantes, mas até aqueles que, cruel e insensivelmente, impingem sofrimento ao próximo, tais como agentes de crimes de ódio, dirigentes gananciosos de corporações, predadores sexuais e criminosos que se aproveitam de idosos.

Gosto de uma prática chamada “Assim como eu”. Você vai a um lugar público e fica lá sentado, observando. Engarrafamentos são ótimos. Concentrando-se numa pessoa, diga a si mesmo coisas como: “Assim como eu, essa pessoa não quer sentir desconforto. Assim como eu, ela às vezes se perde. Assim como eu, não quer se sentir rejeitada. Assim como eu, quer ter amigos e intimidade”.

Não podemos pressupor que sabemos exatamente o que outra pessoa está sentindo ou pensando, mas, de qualquer forma, sabemos muito uns sobre os outros. Sabemos que as pessoas querem ser queridas e não odiadas. Sabemos que a maioria é dura consigo, que muitas vezes são atingidas emocionalmente, mas que desejam ser úteis de alguma maneira. Sabemos que, basica-
mente, todo ser humano deseja a felicidade e não o sofrimento.

Se vemos os outros sob a ótica do “Assim como eu”, temos uma base forte para nos ligarmos a eles, mesmo nas situações em que a polarização parecer o mais natural e razoável. Mesmo quan-
do grupos religiosos radicais decapitam pessoas ou um pistoleiro racista assassina pessoas que rezam na igreja, há espaço para sentir nossa conexão com os criminosos em vez de desumaniza-los.

A mãe de James Foley, um dos jornalistas decapitados pelo Estado Islâmico, disse a respeito do executor de seu fi lho: “Precisamos perdoá-lo porque ele não tinha ideia do estava fazendo”. Esse nível de compaixão só ocorre quando se tem uma noção da complexidade das razões que levam uma pessoa a cometer tais crimes. Aqueles que creem na violência estão desesperados para
ter algum tipo de apoio sob os pés, para fugir de seus sentimentos desagradáveis, para serem aqueles que estão certos. O que faríamos se nos sentíssemos tão desesperados?

Não é fácil ter compaixão por quem nos prejudicou, especialmente por aqueles que nos tolheram de entes queridos. Não devemos sentir que algo está errado conosco, se no momento não temos esse grau de compreensão e compaixão. Na verdade, é bastante excepcional sentir-se assim. Como precursora desse grau de empatia, a tristeza – a simples tristeza – costuma ser mais acessível. Nesses casos, por exemplo, de violência cometida por militantes radicais, podemos sentir uma tristeza profunda pela situação como um todo.

Junto à nossa tristeza pelas vítimas, também ficamos tristes por esses rapazes sentirem tanto ódio, tristes por eles estarem presos nesse padrão de ódio. Visto que as coisas têm causas tão complexas e de longo alcance, nos entristecemos pelas circunstâncias de ignorância ou sofrimento passado que criaram o ódio manifestado agora nesses jovens. Podemos utilizar essa tristeza super abrangente para despertar o sentimento de coração partido que estimula a bodhicitta.

Ter compaixão não significa deixar de assumir uma posição. É importante se manifestar quando nos ferem, quando vemos outros sendo feridos e quando observamos ou vivenciamos exemplos de abuso de poder. É igualmente importante ouvir atentamente e sem julgamento quando as pessoas falam sobre suas experiências e sofrimentos. O que for disfuncional precisa sim ser abertamente abordado.

Vivemos um tempo em que os velhos sistemas e ideias estão sendo questionados e em desintegração, sendo esta uma grande oportunidade para o surgimento de algo novo. Não faço ideia do que será e nem tenho ideias preconcebidas sobre como as coisas deveriam se desdobrar, mas tenho a forte sensação de que a época em que vivemos é um terreno fértil para o exercício de abrir coração e mente. Se aprendermos a acomodar essa desintegração sem polarizar e sem nos tornarmos fundamentalistas, tudo o que fizermos hoje terá um efeito positivo no futuro.

Trabalhar com polarização e desumanização não vai dar um fim imediato à ignorância, violência e ódio que assolam este mundo mas, se cada vez que nos flagramos polarizando, através de pensamentos, palavras ou ações, fizermos algo para fechar esse hiato, estaremos injetando um pouco da bodhicitta em nossos padrões habituais. Estaremos aprofundando nosso apreço pela
interconexão que temos com os outros. Estaremos fortalecendo a cura, em vez de atrapalhá-la. E, devido à nossa interconexão, ao mudarmos nossos padrões, ajudamos a mudar os padrões da nossa cultura como um todo. Os resultados não ficarão imediatamente aparentes. É provável que você não perceba grandes mudanças em apenas uma semana ou mesmo um ano. Mas, por favor, não desista facilmente, pensando: “Essa bodhicitta não funciona para mim. Vou atrás de algo que dê resultados mais imediatos e palpáveis”. Acredite quando eu digo que sua paciência valerá a pena. Se você se comprometer a superar a polarização em sua própria mente, isso mudará sua vida e ajudará o mundo também.

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