Um diálogo convergente entre Budismo e ciência
Em 1985, chamavam a atenção do Lama Padma Samten (o então professor Alfredo Aveline, do Departamento de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul) os pontos convergentes entre o Budismo e a Teoria Quântica, a partir do momento em que esta reconhece o papel das diferentes perspectivas nas conclusões a que se chega sobre uma realidade observada.
Acessível, na versão original em inglês, no acervo digital do Departamento de Física da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo[1], o artigo “Surangama Sutra e a Teoria Quântica”, do então professor Alfredo Aveline, é uma preciosidade publicada na revista Bodisatva nº 1, há mais de 30 anos, bem como em sua reedição e agora também no site da Bodi. Que seja de benefício!
A Física Clássica, com as suas artificiais e imprecisas bases filosóficas, tem apenas uma faixa limitada de validação aproximada. A Teoria Quântica, por outro lado, é uma das mais bem-sucedidas teorias na Física, mesmo que a razão não esteja bem clara para os físicos.
Nos últimos 14 anos, importantes e impressionantes conclusões foram derivadas das análises e objeções de Einstein-Podolsky-Rosen (EPR) à Teoria Quântica, bem como dos testes experimentais das desigualdades de Bell. Em consequência disso, fenômenos não localizáveis e o não realismo da realidade física devem agora ser seriamente considerados. Esses aspectos têm enormes implicações filosóficas e são provavelmente o subproduto mais importante do sucesso da Teoria Quântica.
Na busca por uma base epistemológica para a Teoria Quântica, sugerimos ser possível mostrar um surpreendente paralelismo entre o formalismo teórico da Teoria Quântica e os ensinamentos filosóficos do Buda (Sidarta Gautama), cerca de 2500 anos atrás, na Índia.
No Surangama Sutra[2], especificamente, Buda explica a maneira pela qual os seres sencientes desenvolvem uma consciência separativa das coisas, mostrando a todos como as aparências ilusórias resultam de restrições aplicadas ao Tathagatagarba. Esse conceito de Tathagatagarba tem conexão direta com o conceito de Tao[3], de Lao Tsé, e com a rigorosa e formal representação da Função de Onda, da Teoria Quântica.
Neste sentido, a Teoria Quântica pode ser vista como uma declaração formal e compacta da descrição da realidade aparente como exposta no Surangama Sutra, assim como no primeiro verso do Tao Te King[4].Essa profunda correlação semântica e filosófica é considerada a principal responsável pelo sucesso da Teoria Quântica — o que não acontece na materialista e concreta Física Clássica.
O Surangama Sutra tem o propósito direto e único de nos emancipar. Esses ensinamentos abordam a questão da realidade objetiva, mostrando, cuidadosamente, como os seres sencientes desenvolvem visões estreitas e incorretas a partir do que veem. Da perspectiva da ciência, por razões e motivações completamente diferentes, o esforço por atingir uma descrição racional, completa e final da realidade levou a uma impressionante melhoria da linguagem na transição da Física Clássica para a Física Moderna.
Essas duas formas de progresso possibilitaram que as pessoas dos dois lados vissem uma à outra com um crescente interesse. Os desenvolvimentos recentes da Teoria Quântica mostraram que as duas posições estão ainda mais próximas.
De outro ponto de vista, podemos dizer que as duas abordagens são diferentes caminhos para a mesma busca fundamental pela verdadeira e última realidade final. Portanto, não surpreende a similaridade das visões em ambos os lados.
É impossível, no escopo desta apresentação, analisar profundamente o Surangama Sutra ou qualquer outro livro-texto da Teoria Quântica. Por esta razão, decidimos selecionar as ideias especialmente relevantes e representativas de ambas as visões, sem perder o contexto, comentando e tecendo conclusões baseadas no terreno comum.
Como não teremos a oportunidade para uma discussão profunda do exato sentido de cada expressão usada para explicar ambas as visões, é importante salientar que seus significados originais correspondentes podem ser encontrados no Surangama Sutra ou em qualquer linguagem dos livros-texto da Mecânica Quântica.
Ao definir a realidade, é necessário considerar a maneira pela qual a realidade é apreendida.
No sentido budista, o processo do olhar objetivo é uma complexa operação característica dos seres sencientes. É um processo mental que se inicia com alguma informação vinda através dos seis sentidos físicos e evolui para uma percepção mental (pela conexão desta informação com as estruturas mentais de expectativa existentes), originando sensações e novas estruturas mentais. Esse fenômeno tem duas outras conexões: a experiência é registrada, em todos os aspectos percebidos, como um novo conhecimento; e o conhecimento é processado racionalmente, definindo ou redefinindo novas estruturas mentais. Essas novas estruturas de expectativas se tornam, então, os novos óculos através dos quais o ser senciente passará a discriminar.
É possível sintetizar esse conceito dizendo que, na descrição budista, o olhar condicionado objetivo é um processo mental das entidades de discriminação projetadas, através das estruturas mentais de expectativa, na realidade sem forma. Neste sentido, a realidade é criada pelo processo de observação.
Entre os cientistas, é muito comum a visão filosófica chamada de realismo. Essa visão foi claramente expressa por Albert Einstein em um famoso artigo[5], em que são feitas objeções à Teoria Quântica.
A ideia central do realismo é que existe uma realidade física sempre presente, definida de forma exata em qualquer momento ou lugar. As teorias da Física são representações melhores ou piores e chegam mais ou menos próximas dessa realidade física. Existe também a crença em uma teoria perfeita que poderia descrever a realidade de forma exata, como em uma medição perfeita que não afeta o sistema observado.
Na Teoria Quântica, por outro lado, a realidade é representada pela função de onda Ψ e descrita pelos observáveis físicos atuando sobre Ψ. Ψ, por si mesma, não tem um significado físico e não pode ser observada e os observáveis são as estruturas de expectativas com respeito à realidade.
No formalismo da Teoria Quântica, é permitido a um sistema evoluir como um todo, sem qualquer confusão com os observáveis que esperamos medir no sistema. Esse aspecto importante traz a possibilidade de descrição de fenômenos não clássicos como a penetração de barreira, efeito de fenda dupla, interconectividade quântica ou efeitos não locais.
Na Física Quântica, a realidade objetiva tem significado somente no momento em que uma medição é feita. De outra forma, os observáveis são induções lógicas sem sentido.
No sentido budista, para o olhar objetivo, é necessário o uso da mente condicionada, ou seja, a mente identificada com as estruturas de expectativas mentais.
Mente Pura, ou Essência da Mente ou Essência da Visão é a mente que observa livre das estruturas de expectativas ou de qualquer natureza discriminativa. Somente a Mente Pura pode ver a realidade como ela é, ou seja, somente ela pode ver a Realidade. Este conceito de Mente Pura, livre de expectativas, não é uma ideia teórica. No Budismo, é a experiência central para a emancipação dos seres.
Na Física Clássica, é impossível encontrar qualquer correspondência com a ideia de Mente Pura, pois a posição filosófica do realismo não considera outra mente além da mente objetiva.
Na Teoria Quântica, há a clareza de que a função de onda, livre de qualquer restrição ou condição, representa o vazio e nenhuma informação pode ser obtida disso. Mas, no mesmo sentido, a Mente Pura origina uma Realidade Objetiva quando opera com uma estrutura de expectativa. A função de onda, submetida aos condicionamentos que fornecem realidade para essas condições, permite o cálculo dos valores esperados dos observáveis.
De acordo com os observáveis físicos escolhidos, é possível definir um conjunto completo de autovetores que correspondem a este conjunto completo de observáveis, de tal modo que os autovetores sejam a solução para as relações dos autovalores.
A função de onda pode ser expressa como uma combinação linear desses autovetores. O ponto é que a função de onda em si não pode ser mensurada ou observada. Uma vez que o conjunto de sistemas interage com os dispositivos de medição, surge uma redução e somente um estado parcial é visto, de fato.
Esse conceito de redução é central na Teoria Quântica das medições. Isso nos permite dizer que somente livre dos observáveis, ou seja, livre das estruturas de expectativas ou qualquer outra restrição, pode a Realidade ser como é, mas, neste sentido, a Realidade não mostra a si mesma como uma entidade concreta e objetiva.
Um número arbitrário de aspectos da Realidade Objetiva pode ser encontrado a partir de um número arbitrário de conjuntos completos de observáveis independentes, sendo que nenhum deles é função de onda da Realidade, mas apenas o resultado de alguma estrutura de expectativa particular representada por esses observáveis. Não importa quantos desses estados de vetores sejam adicionados, eles não podem representar a originalidade e a liberdade da função de onda da Realidade.
O conceito budista de Realidade, isto é, o Princípio da realidade última, é o Tathagatagarba, que tem o mesmo significado que Essência da Mente, aquilo que não pode ser objetificado.
Como é enfatizado no Surangama Sutra, a realidade não possui uma base material. Nenhuma essência material pode ser encontrada para o que nós chamamos de realidade material. Aparências materiais são somente o resultado das contaminações da verdadeira Essência da Mente. A verdadeira Pura Essência da Mente, olhando para o que é chamado de Realidade Material, vê apenas sunyata ou vazio.
Identificar a realidade objetiva é identificar as estruturas de expectativas associadas à mente. Então, a Essência da Mente é a profunda fonte de todas as visões aparentes da realidade e as coisas objetivas são como figuras discriminadas nas nuvens no céu.
Segundo Buda, os seres sencientes olham o tempo todo para a verdadeira Realidade, mas não podem escapar de ver as contaminações de seus olhos na forma de um fantástico e imaginário mundo objetivo.
A visão de Lao Tsé, expressa no Tao Te King, é muito similar, como pode ser vista no seu famoso primeiro verso do livro escrito cerca de 500 A.C:
Tao
a fonte do universo
está oculta
na não existência;
existência
é apenas a sua evolução.
Se as coisas são explicáveis
os nomes que nós damos a elas
não podem ser
o nome original
Tao
Por que a filosofia budista é importante para a Teoria Quântica? Por que os paralelos entre visões tão diferentes, como a filosofia budista e a ciência, são investigados?
Tal proximidade é muito importante, uma vez que pode fornecer bases filosóficas para o formalismo da Teoria Quântica e sugerir linhas de desenvolvimento posteriores.
Na ciência, a Teoria Quântica é a forma mais avançada de ver a realidade e tem, por principal característica, a descrição da interconectividade quântica, como foi sugerido por David Bohm. Esse efeito é uma realidade experimental e surge como uma correlação direta entre duas partes de um sistema que não tem formas de trocar informações ou influência de modo objetivo. Isso significa, como no experimento mental (gedanken experiment) de Einstein-Podolsky-Rosen, que duas partes do sistema interagem sem qualquer interação física objetiva direta. Testes experimentais mais recentes com as inequações de Bell mostraram que a interconectividade quântica é, de fato, um aspecto verdadeiro da realidade não incluso nas teorias realistas.
Admitindo que um sistema evolui independentemente dos observáveis, preservando sua originalidade e sentido de totalidade, mesmo assim, por meios não objetivos (sem nenhuma interação física), a Teoria Quântica fica sem o suporte das filosofias realistas ou do senso comum e se aproxima da visão budista. Essa proximidade traz para a Teoria Quântica — e para a ciência em geral — o aspecto budista central de incluir as estruturas de expectativas mentais em si como um objeto de observação quando observamos qualquer coisa e seu papel nas conclusões finais sobre o que foi observado.
O Budismo, aceitando a explicação da fraqueza e estreiteza das visões objetivas, ajuda a ampliar o espaço para visões menos restritivas e mais reais, em que as realidades objetivas são imagens sensoriais obtidas a partir de estruturas de expectativas enquadradas pelos sentidos.
A Teoria Quântica conta com uma enorme beleza formal para representar e testar esse núcleo tão importante da verdade budista.
Considerando, como uma hipótese de trabalho, a falta de substancialidade material no mundo material; a realidade inexistente do espaço e tempo; a real inexistência das trajetórias das partículas e das partículas; e reduzindo as observações experimentais a construções mentais originadas das estruturas de expectativas atuando com os sentidos físicos, a ciência estaria, radicalmente, diante de novos paradigmas, que são a contribuição budista.
Neste sentido, a concepção da ciência mudaria de observação e descrição da realidade objetiva para observação e descrição da forma como a realidade objetiva aparece e evolui a partir das estruturas de expectativas. E, assim, a ciência chegaria próxima do conceito budista de Dharma, mudando seu caráter expansivo.
Isso significa que o contínuo avanço da ciência tem empreendido sucessivas mudanças de paradigma na direção de menos matéria, mais liberdade e menos visões abstratas condicionadas sobre a essência do universo objetivo e material. Neste sentido, talvez a filosofia budista possa representar uma direção de maior progresso.
The Surangama Sutra. In: A Buddhist Bible. ed. Dwight Goddard, trad. Wai-tao. Beacon Press, 1970.
Tao-Teh-King. In: A Buddhist Bible. op. cited.
The Tao of Physics. Fritjof Capra. Bantam Book, 1977.
“Can Quantum Mechanical Description of Physical Reality Be Considered Complete?” A. Einstein, B. Podolsky e N. Rosen. Phys. Rev. 47, 777-780, 1935.
“On Intuitive Understanding of Nonlocality as Implied by Quantum Theory”. D. J. Bohm and B. J. Hiley. Foundation of Physics vol. V, pp. 93-109, 1975.
Quantum Mechanics. Albert Messiah. North Holland 1956.
Measurements and Time Reversal in Objective Quantum Theory. F. J. Belinfante. Pergamon Press, 1975,
Budismo: Psicologia do Autoconhecimento. Georges Silva e Rita Homenko. Ed. Pensamento.
“Is The Moon There When Nobody Looks? Reality and Quantum Theory”. N. David Mermin. Physics Today, pp. 38-47, apr. 1985.
“Quantum Theory and Reality”. Bernard D’Espagnat. Sc. Am. pp.128-40, nov. 1979.
1- Disponível em http://acervo.if.usp.br/uploads/IF/MS/V/IF-MS-V-04-044-0000-04410-0.pdf
2- Um dos sutras mais importantes do Budismo Mahayana, em que Buda ensina sobre a verdadeira natureza da mente;
3- O caminho, em sentido literal, mas apresentado de forma abstrata nesse contexto. É o absoluto que faz com que as coisas sejam como são; o todo a que pertencemos.
4 – O Livro do Caminho e da Virtude, de Lao Tsé.
5 – N.T.: “Pode a descrição quântica da realidade física ser considerada completa?”. Einstein, Podolsky e Rosen. 1935.
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