Nesse discurso, Leonard Boff fala da importância de uma espiritualidade que leve a sério o problema dos oprimidos, assim como dos recursos naturais do planeta
Um dos criadores da Teologia da Libertação, movimento da Igreja Católica latino-americana que buscava aproximar a caridade e a vida espiritual à ação social e política, o teólogo e professor Leonardo Boff sempre defendeu os direitos dos pobres e dos excluídos. Mesmo depois de deixar a função de padre, continuou atuando dentro e fora da Igreja em prol dos grupos sociais minoritários e também das cada vez mais urgentes causas ambientais.
Por sua atuação unindo espiritualidade, justiça social e defesa do meio ambiente, ele recebeu, em 2001, o prêmio “Right Livelihood Award” (o RLA, algo como “Prêmio do Correto Modo de Vida”), conhecido como o Nobel Alternativo. No discurso de aceitação do prêmio, traduzido abaixo, Boff fala de como a fé pode ser usada como instrumento de mobilização social, e conclama a sociedade a uma insurreição contra uma ordem mundial que “legitima preconceitos, sacraliza privilégios e torna impossível a vida em comum baseada na justiça, cuidado e compaixão”.
Nossa missão é celebrar a grandeza da Criação e conectá-la novamente ao Núcleo de onde veio e para onde irá, com cuidado, leveza, alegria, reverência e amor.
Senhora Presidente do Parlamento, Excelências, Distintos Convidados e Amigos.
Mais do que apenas uma pessoa, o prêmio Right Livelihood laureia uma causa. Qual é a causa que move toda uma geração de cristãos do Terceiro Mundo, na qual me encontro como teólogo brasileiro, na periferia dos grandes centros metropolitanos de reflexão, há mais de 30 anos? É a causa dos condenados da Terra, que representam a maior parte da humanidade.
No final dos anos 60, toda uma geração de cristãos e teólogos se perguntava e ainda se pergunta: como podemos anunciar o amor e a misericórdia de Deus a milhões que passam fome e estão condenados a ser não-humanos?
Só anunciando um Deus vivo e libertador, aliado aos pobres e excluídos, nós podemos, sem cinismo e em verdade, dizer: Ele é efetivamente um Deus bom e misericordioso. As palavras do Êxodo foram atualizadas para a nossa geração: “Eu ouvi a opressão do Meu povo, Eu ouvi seus gritos de aflição, Eu conheci seu sofrimento. Eu desci para libertá-los… Agora vá, porque Te envio para libertar o Meu povo” (Ex. 3, 7-10). Essas palavras foram dirigidas a cada um de nós, a cada Igreja, a cada consciência que é minimamente ética e humanitária.
Nos anos 70, os oprimidos eram os economicamente pobres e, pelas condições mínimas de vida e de trabalho, foi engendrado um processo de libertação social e política, à luz da fé.
Na década de 80, os negros e índios emergiram como os oprimidos históricos de nossos povos, e foram encorajados a serem sujeitos de sua própria libertação.
Na década de 90, a ênfase foi para a singularidade da opressão das mulheres, que têm sido subjugadas pelo sistema patriarcal por milênios e invisibilizadas na sociedade. Elas tentam ser sujeitos da história na mesma posição que os homens, diferentes e complementares.
No final dos anos 60, toda uma geração de cristãos e teólogos se perguntava e ainda se pergunta: como podemos anunciar o amor e a misericórdia de Deus a milhões que passam fome e estão condenados a ser não-humanos?
Todas essas pessoas clamam por vida e liberdade. Seções importantes das igrejas históricas se organizaram para responder ao grito dos oprimidos. E o têm feito pela práxis libertadora das comunidades eclesiais de base (só no meu país existem mais de mil delas), dos inúmeros centros de defesa dos direitos humanos, das pastorais sociais pela terra, habitação, saúde, educação e segurança, através da leitura libertadora da Bíblia feita pelos próprios pobres.
A reflexão que surgiu dessa práxis é chamada de Teologia da Libertação. É a teologia de todas as igrejas que levaram a sério o problema dos pobres e excluídos. E por causa disso, ela está presente não apenas na América Latina, mas também na África, na Ásia e nos grupos comprometidos com a causa feminista e a ecologia nos países centrais.
A Teologia da Libertação tentou mostrar com sucesso que a fé cristã judaica pode ser um elemento de mobilização social em função de mudanças profundas na sociedade que podem trazer mais justiça, mais participação e mais dignidade aos humilhados injustamente.
Um cristão, porque ele ou ela é um cristão, pode ser um verdadeiro libertário. Somos herdeiros de alguém que, pelo seu anúncio e práxis de libertação, foi perseguido, encarcerado, torturado e crucificado. Sua ressurreição significa uma insurreição contra esta ordem mundial que legitima preconceitos, sacraliza privilégios e torna impossível a vida em comum baseada na justiça, cuidado e compaixão.
Não são apenas os pobres que clamam, mas também a água, os animais, as florestas, os solos, ou seja, a Terra como um superorganismo vivo, chamado Gaia. Eles clamam porque são continuamente atacados. Eles clamam porque sua autonomia e valor intrínseco não são reconhecidos. Eles clamam porque estão ameaçados de extinção. Todos os dias, cerca de dez espécies de seres vivos desaparecem como resultado da crescente agressividade do homem no processo industrial contemporâneo.
A mesma lógica explora as classes e subjuga nações, preda ecossistemas e enfraquece o planeta Terra. A Terra, com seus filhos e filhas empobrecidos, precisa de libertação. Todos vivemos oprimidos sob um paradigma de civilização que nos exilou da comunidade da vida, que se relaciona com violência contra a Natureza e que nos faz perder a reverência pela sacralidade e majestade do Universo. Esquecemos que somos apenas um elo na imensa corrente da vida e que somos corresponsáveis pelo destino comum da humanidade e da Terra.
Uma teologia ecológica nasceu dessas percepções. Segundo essa teologia, a injustiça social torna-se injustiça ecológica porque afeta os seres humanos e a sociedade, que são parte integrante da Natureza. Uma teologia ambiental que se preocupa apenas com o meio ambiente não é suficiente. Precisamos de uma ecologia social que possa reeducar o ser humano para viver e se conectar cooperativa e fraternalmente com a Natureza.
Não são apenas os pobres que clamam, mas também a água, os animais, as florestas, os solos, ou seja, a Terra como um superorganismo vivo, chamado Gaia. Eles clamam porque são continuamente atacados
Temos feito intervenções demais na Natureza e contra ela. Modificamos a base física e química da Terra. O que precisamos urgentemente é modificar nossa mentalidade. Se queremos salvar a biosfera e garantir um futuro próspero para todos, precisamos de uma ecologia mental e espiritual. Temos arrogância demais em nossas mentes, desejo demais de poder como dominação e tendências para prejudicar, subjugar e destruir os outros. O projeto da ciência tecnológica, que trouxe tantos benefícios à vida humana, também permitiu o nascimento do princípio da autodestruição. A máquina da morte já construída pode devastar toda a biosfera e tornar o projeto humano planetário impossível. Precisamos criar, por nossa vez, o princípio da responsabilidade mútua e do cuidado com tudo o que é e tudo o que vive.
Desta vez, não temos a Arca de Noé para salvar alguns e deixar que os outros pereçam. Queremos nos salvar juntos.
Precisamos desentranhar tendências que também estão presentes em nossas mentes: solidariedade, compaixão, cuidado, comunhão e amor. Tais valores e poderes internos podem lançar a fundação de um novo paradigma de civilização, a civilização da humanidade reunida na Casa Comum, no Planeta Terra.
Viver tais dimensões significa viver a verdadeira espiritualidade humana. E essa espiritualidade não é monopólio de religiões ou igrejas, mas das dimensões mais profundas do ser humano. Por meio dela, podemos perceber que todas as coisas no Universo não estão apenas justapostas, mas inter e retro conectadas. Um elo conecta e reconecta tudo, consistindo na unidade sagrada do Universo. Este elo secreto é a fonte primitiva de todo ser. É o que todas as religiões chamam de Deus.
O meu esforço nos últimos 30 anos, como um teólogo integral da libertação, foi pensar e repensar, viver e passar esta mensagem: a Terra e a Humanidade constituem uma única realidade. Na verdade, nós, seres humanos, somos a própria Terra que sente, pensa, ama e venera. Temos a mesma origem e o mesmo destino. Somos convocados a ser, não o Satã da Terra, mas seu bom Anjo. Chegamos à encruzilhada na qual devemos decidir sobre o futuro que queremos. Nossa missão é celebrar a grandeza da Criação e conectá-la novamente ao Núcleo de onde veio e para onde irá, com cuidado, leveza, alegria, reverência e amor.
Agradeço ao Prêmio Right Livelihood que consagrou essa perspectiva, porque foi vista como benéfica para o futuro dos pobres, da humanidade e do sistema Terra.
Muito obrigado.
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