Ensinamento do Lama Padma Samten sobre como podemos ampliar nossa visão sobre o trabalho e movimentar nossa energia para atuar no mundo de forma mais benéfica
Essa é a primeira parte de um texto retirado de um ensinamento do Lama Padma Samten, dado em São Paulo, em 2016, sobre trabalho e ação no mundo. O vídeo com a palestra completa está disponível no canal do Lama, no YouTube.
Trabalho e ação no mundo podem parecer que são a mesma coisa, mas a ação no mundo na perspectiva budista significa como poderíamos nos mover no mundo de forma lúcida. O trabalho está ligado a alguma coisa que fica meio enigmática para os budistas, pois na medida em que eles entendem a vacuidade, a transformação e a não solidez das coisas, ainda assim a segunda-feira chega e a pessoa fica com um cara estranha: como aquilo tem tanto poder? Isso é a noção de trabalho, nela sentimos que estamos dentro de uma estrutura da qual gostaríamos de pular fora ou que gostaríamos de negar, não sabendo bem como fazer.
Geralmente temos toda a teoria, mas a segunda-feira chega e é igualzinho, temos que nos reconectar com o tráfego, nos deslocar, chegar no horário certo nos locais e fazer aquilo que precisa ser feito. Não entendemos como aquilo nos prende tão bem, de uma forma tão estruturada que não conseguimos efetivamente escapar, ainda que tenhamos as palavras e os conceitos sobre como fazer.
Naturalmente, podemos estar, com respeito ao trabalho, em conexões ainda mais estreitas. Por exemplo, podemos estar esperando encontrar o trabalho perfeito, a forma satisfatória e agradável de trabalhar e que aquilo seja bom para nós, pague bem, seja estável, permita um seguro saúde, seguro de vida, uma propriedade para os filhos e assim por diante. Aspiramos uma certa segurança dentro de uma estrutura causal. Na visão budista, buscamos segurança sob uma perspectiva causal e aspiramos também que essa segurança seja uma coisa feliz, uma coisa boa. Então, essa é a estrutura comum da visão do trabalho e da visão das nossas vidas também.
No budismo, vamos olhar essa perspectiva como se fosse aquilo que chamamos de bloco zero. Não é o bloco inferior, pois ele seria o “menos 1” (-1), quando as coisas estão um pouco piores, ou seja, quando imaginamos que para obter alguma vantagem, algum nível de segurança para sobreviver em meio às coisas, precisaríamos fazer ações não virtuosas, então naturalmente vamos causar prejuízos aos outros pensando que é assim mesmo. Como vocês têm visto ultimamente, isso não depende de classe, renda, nível de instrução, nem do nível de responsabilidade. Isso não é uma coisa de periferia urbana, talvez pelo contrário. Então, vemos que o bloco menos 1 tem essa característica.
Se quisermos estudar essas coisas todas, o aspecto teórico disso, entramos pelos 12 elos da originação dependente. Como a realidade surge aos nossos olhos, como nossa mente configura as coisas, como as bolhas de realidade surgem, e especialmente, como atuam, a partir de olhos, ouvidos, nariz, língua e tato. Nós olhamos para as coisas e elas se manifestam no formato de vedana, ou seja, nós gostamos ou não gostamos delas. Não há um condicionamento em nível algum com respeito ao que vamos gostar ou não gostar. Não há nenhuma objetividade de fato. Há uma objetividade cármica. Ou seja, nós temos estruturas internas que vão definir o que a gente gosta ou não gosta. Essas estruturas são fugidias, elas não nos dão segurança, porque hoje nós podemos gostar e amanhã nós podemos ter rejeição. Então, isso é a impermanência atuando, impossibilitando a estruturação a partir dos vedanas, da sensação de gostar ou não gostar.
Na nossa vida vamos girando dentro disso, e não tendo outros referenciais, os outros referenciais nem aparecem. Quando estamos no bloco zero, os referenciais que aparecem são os impulsos de gostar ou não gostar. E temos uma clareza interna: aquilo de que gostamos faz com que nos movimentemos naquela direção; e daquilo que não gostamos, tentamos escapar. Quando estamos lidando com a questão do trabalho e estamos no bloco zero, também é assim. Olhamos para as coisas, não só para o trabalho como um todo, mas no dia a dia do trabalho nos defrontamos com coisas que não gostamos, outras que gostamos. E as coisas que gostamos e não gostamos vão mudando, se transformando o tempo todo, aquilo vai dançando em nossa frente.
O fato de que aquilo dança em nossa frente e vai mudando nos impulsiona, então estamos sempre ocupados. Alguma coisa sai do lugar e temos que nos mover para arrumar aquilo numa outra direção. Então, é inevitável, cada um de nós está impulsionado o tempo todo por coisas que parecem mais urgentes ou menos urgentes e somos impulsionados o tempo todo para ajustar aquilo que está ao nosso redor. Isso vem de vedana (o gosto ou não gosto), depois tem desejo e apego, e surgem as ações volitivas, que são causais. É como se olhássemos para o entorno e víssemos aquilo a partir dos estados mentais que temos.
Se alguém briga conosco nos sentimos mal, se a pessoa sorri para nós, nos sentimos bem. Não pensamos que estamos sensíveis e que, se a pessoa está mal, não precisaríamos nos sentir mal também. Não pensamos assim. Nós simplesmente respondemos.
Nem imaginamos que temos liberdade dos estados mentais. É tão óbvio que se algo surge em nossa frente, aquilo é o que está produzindo as nossas condições internas. Achamos completamente razoável. Se alguém briga conosco nos sentimos mal, se a pessoa sorri para nós, nos sentimos bem. Não pensamos que estamos sensíveis e que, se a pessoa está mal, não precisaríamos nos sentir mal também. Não pensamos assim. Nós simplesmente respondemos. Ficamos super ocupados com ações para que as aparências externas se ajustem àquilo que achamos favorável, nos desgastamos. Num certo sentido passamos vidas nisso, o tempo todo estamos fazendo isso.
Esses movimentos em que tentamos ajustar uma coisa com a outra podem ser pequenos, mas, eventualmente, os movimentos são renascimentos. Saímos de uma bolha de realidade e entramos em outra. São mortes e renascimentos. É como se num certo momento disséssemos: isto por aqui não tem mais conserto. Eu começo a olhar em volta e pensar: agora eu me transfiro em outra direção. Temos esses movimentos intensos, dentro dos quais buscamos nos redefinir. No nono elo, nós estamos nessa função: tentamos obter coisas. E esse movimento de tentar obter coisas e mudar as aparências, tentamos, no bloco zero, juntar com o trabalho. O trabalho é alguma coisa um pouco estranha, porque aspiramos que o trabalho fosse alguma coisa boa para nós.
Mas na impossibilidade do trabalho pelo menos ser alguma coisa que eu faço para obter os recursos ou obter os meios hábeis para então poder fazer o que importa para mim, que é enfim me aproximar do que eu gosto e me afastar do que eu não gosto – essa é a nossa vida e se eu tiver que pagar um preço pra isso, o preço para isso pode ser o trabalho –, todos nós temos uma sensação de que poderíamos aliar o trabalho àquilo de que gostamos. Do nono elo, nós vamos para o décimo elo. O décimo elo de modo geral são os jovens surgindo no mundo. Eles imaginam que, já que eles gostam de surfar, poderiam ser surfistas profissionais; já que eles gostam de skate, poderiam ser skatistas profissionais; já que eles gostam de jogar no computador, eles poderiam ser gamers, e assim por diante.
A pessoa pensa que aquilo que ela pega, aquilo mesmo poderia ser o próprio meio de sustentar a vida. Tem gente que gosta de pintar e pensa “vou ser pintor e ser artista”. Pense! Isso nunca vai dar certo. E a pessoa entra no décimo primeiro elo. O 11º elo é quando a pessoa diz: eu já sei como fazer. E ela se intitula: eu sou surfista profissional, skatista, artista, eu sou isso…. A pessoa junta os amigos para tocar na garagem: “e agora lancei um selo, uma gravadora, agora estou no Youtube e por favor coloquem likes para mim”, e a pessoa começa a viver de likes.
O 11º elo é onde estamos. Cada um de nós está em algum lugar fazendo isso. Tem uma identidade girando em meio ao mundo, aspirando que as ações dessa identidade se conectem a um meio de sustentar sua própria vida. Se não for possível isso, então que sejamos pelo menos um músico no fim de semana, à noite. Durante o dia somos entregadores de pizza, fazer o quê? Vamos fazer alguma coisa. Mas eu preciso ter algum recurso para poder fazer, enfim, o que eu gosto. Com aquilo de que gostamos funciona um pouco – não resolve totalmente -, mas funciona. Estamos nesse movimento. Buscando alguma coisa assim, esse é o 11º elo.
No meio disso, andamos em direção ao 12º elo. O 12º elo é a nossa preocupação, o nosso problema, fugimos dele o tempo todo. Mas, inevitavelmente, o 12º elo significa decrepitude, o envelhecimento. Para não trazer nada muito dramático: a pessoa era datilógrafa, a profissão envelheceu e acabou, virou digitadora ou qualquer outra profissão que venha a existir. A pessoa vai mudando. O contexto envelhece, as coisas mudam, e a pessoa é alguma coisa, mas começa a deixar de ser aquilo.
É comum em cada profissão que a pessoa se intitula, ela envelhecer ali dentro. O processo de envelhecimento nem sempre é o contexto, mas por vezes, é a forma como a pessoa se insere dentro daquilo. Lá pelas tantas, ela não quer mais aquilo. É super difícil, imagine a pessoa fazer um curso de medicina, fazer residência até o ponto que ela tem contratos e está trabalhando e está inserida no mundo. Mas a pessoa cansa. Em cada uma das coisas que nos propomos a ser, podemos nos cansar, nos desiludir e desistir. Esse processo de desistência é o envelhecimento, decrepitude, doença e morte. Nem sempre essa morte significa morte física, pode ser a morte daquelas identidades, daquela forma de ser. Nesse sentido, as mortes e os renascimentos, o que o Buda descreve como ciclo de mortes e renascimentos, esse ciclo não é um processo que necessite a morte física propriamente.
Neste tempo que poderíamos dizer que é um tempo acelerado (para não dizer de degenerescência, que, enfim, os tempos acelerados são de degenerescência) os ciclos das nossas vidas são cada vez mais curtos. Funcionamos de um certo jeito por um tempo e, por uma razão ou outra, por impulso próprio ou por um movimento ao redor, somos obrigados a nos redefinir. Isso é o processo de renascimento. Renascemos dentro de uma outra bolha, nos redefinimos e nos re-organizamos de um outro jeito.
Nesse tempo que poderíamos dizer que é um tempo acelerado, os ciclos das nossas vidas são cada vez mais curtos. Funcionamos de um certo jeito por um tempo e, por uma razão ou outra, por impulso próprio ou por um movimento ao redor, somos obrigados a nos redefinir. Isso é o processo de renascimento
É um tempo, por exemplo, que surge o coaching. Vamos para um bardo, a pessoa encosta num coach. O coach seria o vir-a-ser, aí a pessoa treina para ser uma outra coisa. É como se ela tivesse morrido, ela encontra o maharaja do outro lado e ele pergunta “O que você gostaria de ser?” (O maharaja está em um dia bom). Ah, eu gostaria de dirigir! Agora nós vamos fazer um treinamento, você sabe dirigir? Não tem problema, aprendemos. Aí a pessoa sai de uma coisa e vai para outra e começa a funcionar de um outro jeito. Nos redefinimos.
A pessoa começa a olhar tudo diferente. Esse é um ponto interessante. Nesse processo, surge um outro mundo, uma outra visão: “Uau, eu adoro dirigir!”. Aí tem um momento em que a pessoa fala “Olha, eu não estou aguentando mais”. Ela vai virar uma outra coisa. Então esta é a nossa situação, estamos neste processo de transmigração.
A transmigração pode parecer divertida por um tempo. Fazemos uma coisa, fazemos outra, vamos para a Austrália, Canadá, vamos indo. Aquilo pode parecer interessante, mas tem um certo momento, aparece o Buda para “estragar” e diz: “Observe esse processo de transmigração que não tem fim.” E nós: “Como? Então quer dizer que eu não vou encontrar o que eu sou mesmo?” E ele responde: “Olha, não vai ser assim.”
Temos uma sensação de que vamos encontrar um formato dentro disso que enfim é o que é. Na verdade, estamos perto desse formato, sempre muito perto, só que não chegamos a localizar. Olhamos na direção errada, então não vemos. Mas vamos nos aproximando. Por exemplo, o aspecto mais interessante da transmigração não é a face que adquirimos a cada ciclo, mas é o fato de que cada ciclo não resolve e que há uma liberdade que me permite sair de um ciclo e entrar em outro e outro. Essa liberdade é óbvia, ela estava ali o tempo todo e sempre esteve. Se é que temos alguma cara, é a cara dessa liberdade. Essa liberdade não se desgasta, está sempre ali. Não vemos. Sempre procuramos uma nova face condicionada, que apareça como algo atraente às sensações, às percepções. Buscamos isso. Estamos sempre diante de uma realidade super profunda, mas não vemos propriamente. Estamos jogando um jogo comum dentro uma realidade super profunda.
Há uma liberdade que me permite sair de um ciclo e entrar em outro e outro. Essa liberdade é óbvia, ela estava ali o tempo todo e sempre esteve. Se é que temos alguma cara, é a cara dessa liberdade
Um aspecto que eu acho muito interessante é o fato de que a nossa visão das coisas muda, o que nós vemos nas coisas muda. De acordo com a bolha de realidade, de acordo com o estágio da nossa transmigração, estamos dentro de uma bolha e passamos para outra, a visão do mundo muda, isso é uma coisa muito bonita.
Eu lembro do Chagdud Rinpoche quando ia dar iniciações. No início, tinha o tempo em que ele entrava na sala mas ninguém podia entrar. O que acontecia ali? Uma vez eu virei uma mosquinha, entrei e sentei. Essencialmente, o que Rinpoche ia fazer ali? Ele ia consagrar o ambiente. Isso eu acho super importante. Essa é uma sugestão que dou para todos os meus alunos: vocês não precisam limitar a entrar na sala um de cada vez, mas aquilo tem um simbolismo. Por exemplo, estamos dentro da sala, depois a pessoa, para entrar, tem que lavar corpo, fala e mente. Tem água com açafrão para lavar a boca, ou seja, tudo que ela disser do lado de dentro deveria ser verdadeiro dali para diante. É uma coisa simbólica. Então você molha testa, garganta e coração. É como se limpasse corpo, fala e mente. É como se entrasse num lugar perfeito.
Então o que é um lugar perfeito? No caso do Rinpoche, ele consagrou o lugar. O que significa “consagrar”? Significa ele transformar uma sala de hotel numa plataforma de lançamento para o infinito. Esse é o olhar, ou seja, a forma como vemos o local. É isso. Se estivermos num local comum, é o local comum das bolhas, mas os locais não são comuns. Nenhum local é comum na verdade. Se tivermos habilidade, por exemplo, de consagrar a nossa casa, essa é uma boa coisa. Consagrar os lugares onde estamos é o nosso olhar. Aquele é um lugar mágico, onde temos a capacidade de transformar a nossa vida e reconhecer os aspectos últimos. Os locais já são isso, porque eles não são alguma coisa fixa. Eles são inseparáveis de nós. Eles são espelhos que refletem a nossa própria mente.
Temos a capacidade de olhar para uma coisa muito inferior e transformar numa coisa ampla, isso é ação no mundo. Mas nós não estamos fazendo ação no mundo, de modo geral nós estamos trabalhando. O que é o trabalho? É estarmos dentro de um lugar tentando arrumar aquilo para que nos sintamos bem. Sendo que o “sentir-se bem” é algo transitório. Então, para nos sentirmos bem, nós precisarmos de coisas, que acabam perdendo o poder, que vem do nosso olhar e vão virando coisas descartáveis. É muito comovente isso. As coisas vão virando recursos. Elas são recursos de vários tipos e vamos gerando lixo, nós temos coisas descartadas e tem-se volume de coisas descartadas. Pois estamos dentro de uma visão onde as coisas vão perdendo o poder.
A realidade das coisas é assim: as coisas surgem inseparáveis da nossa mente, operando dentro de bolhas de realidade. Essa não é a verdade mais elevada. A verdade mais elevada é que a nossa mente é capaz de atribuir significado a coisas e construir bolhas. Essa mente não morre. É bom que se diga, eu tento lembrar sempre. Mesmo que a pessoa esteja velha ou numa situação difícil. Vocês podem testar essa nossa capacidade, que podemos chamar de originação dependente. Ela dá origem às coisas. Ela pega algo e transforma em algo mais elevado o tempo todo. Um exemplo desse aspecto da originação dependente e do poder das bolhas é o sonho noturno. Dormimos, sonhamos e aquela realidade domina a nossa mente totalmente. Estamos dentro daquilo, esquecemos a nossa vida, esquecemos o nosso carro, esquecemos que estamos pagando prestações e esquecemos tudo aquilo.
Então esse é o poder da bolha. Não importa o conteúdo. O fato de que os sonhos surgem e nós andamos por dentro do sonho e atribuímos significados àquilo tudo e pensamos sobre aquilo, nos deslocamos aspirando algumas coisas e escapando de outras, aponta diretamente para essa mente criativa e luminosa, que é o que nos acompanha, aquilo que dá significado às realidades. Quando nós estamos na ação do mundo, temos consciência sobre esse processo complexo. Nós somos capazes de entrar nos lugares e redefinir as aparências e ajudar as pessoas a andar melhor, mesmo que tenhamos uma aparência comum. Não precisamos ter uma aparência de alguém espiritualizado, alguém que está fazendo prática ou alguém que seja o instrutor de alguma coisa. Em todo lugar, nós estamos sempre contribuindo para a construção do aspecto sutil daquela realidade. Quando nós temos essa consciência, somos praticantes em meio à ação no mundo, temos a motivação de ajudar as pessoas a ultrapassar seus próprios sofrimentos e encontrar uma estrutura de equilíbrio que não dependa das aparências.
Não precisamos ter uma aparência de alguém espiritualizado, alguém que está fazendo prática ou alguém que seja o instrutor de alguma coisa. Em todo lugar, nós estamos sempre contribuindo para a construção do aspecto sutil daquela realidade
Quando nós estamos no outro lado, no bloco zero, tocados pelas aparências, arrastados por elas, lutando para que as aparências sejam de um tipo ou de outro, nós estamos em meio àquilo que é o esforço, é o trabalho. Eu tenho a sensação de que na visão cristã, a queda do paraíso introduziu a noção de trabalho, de esforço. Foi a incapacidade de ver o aspecto profundo. Nós vamos agora olhar o aspecto comum e vamos fazer esforços sem fim, não tem solução, nós estamos condenados a fazer esforços. Temos uma sensação de desgaste em meio ao esforço, esse é o processo.
Então a nossa questão é essa. Se olharmos da perspectiva comum, nós vamos sempre tropeçar nisso. Vamos fazendo esforços, aspirando que as coisas nos recompensem, que elas sejam felizes para nós. Então a pessoa, por exemplo, se lança como profissional numa certa área e se ela encontra dificuldades ela vai dizer “as pessoas são muito competitivas, o salário é muito baixo, isso aqui é muito difícil, eu não estou preparado ou estou preparado, mas eles não me reconhecem ou não me dão o lugar certo”. Sempre tem uma tensão.
Eu já vi várias coisas. Por exemplo, tem pessoas que adoecem no ambiente de trabalho. Geram erupções na pele, dor de estômago, diarreia, emagrecem, passam mal. Tem pessoas que ficam nervosas, ansiosas, autoritárias, briguentas, têm aumento da pressão arterial. Elas se queixam do ambiente, tentam obter algum tipo de compensação. Isso é perfeitamente natural, é normal, é assim mesmo. Por outro lado, por exemplo, quando a pessoa se move, no ambiente de trabalho e tem essa expectativa de que o ambiente reponha a energia que ela está despendendo, a pessoa está numa armadilha, numa situação bem difícil. A pessoa vai transmigrar no final de um tempo porque ela vai ficar esgotada. É como se tivesse uma energia cármica para entrar naquele lugar onde ela está. Ela entrou e vai desgastando aquilo. É como alguém que diz: “Olha eu fiz tudo que eu pude fazer, eu me dediquei, mas as pessoas não respondem, elas não são boas pessoas, esse não é o ambiente que eu imaginei, a minha cota eu já dei, eu estou saindo.” Uma coisa assim. A pessoa tem uma sensação de desgaste.
Agora, como que a pessoa pode entrar em qualquer lugar e praticar aquilo que chamamos de ação no mundo? Esse ponto é crucial e é difícil de resolver através de um processo discursivo. Porque aquilo que rege o nosso funcionamento não é propriamente uma ideia, é uma energia que se move. Acho melhor tratar essa questão do trabalho e da ação no mundo sob o ponto de vista de energia. Porque naturalmente podemos ter vários argumentos e várias ideias, e quando colocamos as ideias em funcionamento, eventualmente nossa energia muda.
Mas na visão budista, não precisaríamos tentar buscar a energia nas imagens das coisas, aquilo que eu possa visualizar ou olhar. Porque aquilo está dentro de nós. Somos aquele que atribui significado às coisas, já temos isso. Treinamos essa capacidade de permanecer vivos, calmos. Isso é super útil. Quando encontrarmos o chefe, isso vai ser crucial.
Isso é não discursivo. Porque nem sabemos como vemos a energia. Vocês veem o quê quando veem energia? Mas tem uma diferença: estamos com a energia ou não estamos?
Quando a gente vai meditando, desenvolvemos essa habilidade de estabilizar a energia. A energia é um objeto de meditação muito interessante. Porque ao mesmo tempo que se diz “ela”, no caso a energia, aquilo não parece que seja separado de nós. Então é um objeto super especial, porque ele já traz a experiência de não-separatividade. Ele também traz a experiência de separatividade, porque eu digo a energia da terra, da água etc., mas eu estou falando de mim mesmo, não estou falando de outra coisa. Aquilo se funde conosco, é inseparável de nós, mas ao mesmo tempo sentimos que somos capazes de produzir aquilo, mas aquilo é nosso. Então, isso é um ponto super interessante, porque estamos antes do primeiro elo da originação dependente, e tem uma mente que tem uma liberdade, ela produz as aparências, ela é inseparável das aparências que ela produz, ela movimenta energia. Vemos que a mente e a energia estão juntas, porque a mente movimenta a energia.
Se vocês ficarem muito tempo em silêncio totalmente estabilizados, a alteração/flutuação da energia é o movimento da mente. Então, a mente e a energia estão juntas. Vocês vão ver isso.
Então é super importante descobrirmos que há a possibilidade de estabilidade de tal modo que quando nos defrontamos com as coisas, podemos olhar as coisas a partir desse ponto que está parado. Não precisamos olhar as coisas a partir do ponto onde a nossa energia se movimenta, porque dali as coisas parecem favoráveis ou desfavoráveis. Então, descobrimos que diante das coisas, podemos definir como a energia vai se movimentar. Às vezes eu brinco: encontramos, por exemplo, uma pilha de louças ou uma pia desorganizada com panelas ou coisas mais graves, e aí vamos fazer o quê? Como que resolvemos aquele problema (razoavelmente complexo)? Aquilo é simples, mas o obstáculo é nossa energia. Olhamos para aquilo e surgem inimigos de todos os lados. A pessoa respira uma vez e já sorri: “uma pia para lavar”. Se a pessoa encontrar a energia, ela faz aquilo, ela sabe que está endireitando o mundo literalmente. A gente vai lá e arruma aquilo.
Nós damos o significado que quisermos dar para as coisas. Temos essa capacidade. Isso é um treinamento inicial de questões muito mais complicadas. Por exemplo, naturalmente vai ter o tempo em que nós vamos morrer, não é? É um problema um pouco mais complexo do que a pia. Não vai ter muito como resolver. Então, é melhor equilibrarmos a energia. A energia está conectada diretamente, se vocês observarem e meditarem aí dentro, ela está conectada diretamente com Darmata. Quando descrevemos através do aspecto cognitivo é o que poderíamos conectar mais facilmente com a noção do espaço, o espaço livre da mente: Darmata; de onde brota a energia e brota o significado das coisas.
Darmata é a nossa essência, é o que nós somos. É assim, o estado não-bolha. Tem as bolhas e nós nos sentindo existindo com identidades dentro das bolhas, isso vem e vai; vamos transmigrando e virando outras coisas. O que que há de constante nisso? É o fato de quando a bolha entra em falência, Darmata ressurge como um centro lúcido capaz de criar outra bolha (mais ou menos lúcido), ele cria outra bolha, mas tem um nível de manifestação que independe da própria bolha. Quando a bolha entra em colapso, tem esse nível que produz as novas realidades. Mesmo que a bolha não entre em colapso, nós estamos dentro da bolha e podemos dizer: “Valha-me Darmata! Uau, eu estou dentro disso, mas minha natureza é livre, eu não sou isso! Isso é maravilhoso.”
Podemos ter essa sensação. A sensação não precisa ter a dissolução da bolha. É uma sensação permanente. A pessoa chega em casa, se defronta com a louça e diz: “Uau, minha natureza é a liberdade.”
Se vocês ficarem muito tempo em silêncio totalmente estabilizados, a alteração/flutuação da energia é o movimento da mente. Então, a mente e a energia estão juntas. Vocês vão ver isso
Nós estamos dentro da bolha, mas nós não somos o personagem da bolha. Podemos até ser, podemos nos manifestar daquele modo. E isso produz uma proximidade muito grande entre ação no mundo e as nossas identidades condicionadas. Eu sempre sugiro: não mude nada, siga a identidade condicionada que você tem manifestado, não mude nada, finja que é igual, mas não é. Porque o lugar onde nós estamos é um lugar super especial. E as ligações que nós temos com as pessoas a partir do lugar onde nós estamos é super especial. Esse lugar nos permite desenvolver uma relação com os outros do jeito que nós já estamos estabelecendo. Agora nós só mudamos o jeito. Em vez de ficar cobrando tudo dos outros, nós temos uma energia que é capaz de começar a embelezar o mundo onde estamos.
Diz-se que os bodisatvas são aqueles que embelezam as terras de Buda. Eu acho isso super bonito. Os bodisatvas seguem os budas. Surgem no tempo de um Buda. O Buda foi aquele que conseguiu entrar naquele mundo correspondente àquelas bolhas de realidade e gerar uma linguagem capaz de ajudar os seres que estão ali. Os bodisatvas entenderam isso e atingiram a liberação. Mas eles estão sob o poder do Darma que o próprio Buda gerou. Eles estão sob o poder da concepção, da forma de descrição e dos remédios que os budas geraram e são aqueles que passaram pelo tratamento e deu certo. Eles estão nos seus múltiplos mundos, mas dentro daqueles mundos são capazes de gerar outras visões e ajudar as pessoas a migrar dentro das suas ações para ações melhores. Assim, eles começam a embelezar e melhorar o mundo. O mundo vai virando paulatinamente uma terra pura, um lugar apropriado para nós andarmos. Se agora o Darma existe e é possível andarmos e seguir, é porque o Buda falou o Darma, abriu isso num tempo de escuridão, ele foi capaz de surgir e abrir essa compreensão. Gerou uma linguagem. Aí surgiu um número incontável de mestres posteriores, que são os bodisatvas, que foram encontrando um jeito de ajustar aqueles ensinamentos nos vários contextos das pessoas.
E vamos transformando o mundo em algo um pouco mais elevado. Vai virando uma terra pura que vai nos levando dentro de um barco em direção à liberação. Eu acho mesmo que estamos mais ou menos condenados à liberação. Eu acredito que isso vai acontecer. Porque não somos mais totalmente bobos, só um pouco. E somos um pouco bobos, mas já temos um nível de lucidez. Esse nível de lucidez vai se ampliar porque vamos olhando para as coisas e vamos vendo elas de modo mais complexo e mais profundo, vamos ultrapassando.
Vamos saindo do trabalho em direção a ação no mundo. O trabalho parece que é alguma coisa que pesa sobre nós e ação no mundo é alguma coisa que derramamos sobre os lugares onde andamos. Se conseguirmos fazer essa mudança interna, que é uma coisa possível, esse é o software geral nesse processo. Então entramos pelo trabalho, nos sentindo um pouco condicionados e compelidos a isso, e vamos ultrapassando.
Por exemplo, às vezes eu converso com as crianças que estão em sala de aula. Uma forma de fazer isso para uma criança que está em sala de aula é dizer para ela: “Olha para os teus colegas, para a(o) professora(or), cuida dos teus colegas, aqueles que não estão muito bem, vai lá e conversa um pouco com ele. Se ele está pronto para fazer alguma bobagem, vai lá e tenta evitar aquilo.” Aí tudo começa a melhorar.
Eventualmente é possível conversar com duas ou três crianças que já entendem isso e dizemos: “Olha, vocês se revezem e cuidem daquele lá pois ele está aprontando.” Porque se ele seguir aprontando, as outras crianças começam a rejeitá-lo. Então, ajudem a integrá-lo e puxem ele de volta. Ele está em ambientes super difíceis (na casa dele e onde ele mora), ele não está bem e vocês podem ir lá e ajudá-lo. As crianças de seis a sete anos entendem isso. Eu acho que os menores também entendem.
Nesse momento, eles deixam de ser alguém que está esperando que a aula seja boa ou não e já estão movimentando uma energia para transformar aquele ambiente. Eles automaticamente já estão vendo o ambiente como alguma coisa móvel e plástica, em que atuamos sobre as coisas. Aquilo é super fácil e eles entendem isso. É uma coisa possível.
Isso é o que nós adultos também fazemos. Chegamos nos lugares e não importa qual é nossa identidade ilusória, a bolha que alguém nos colocou. Aquela bolha vira uma vestimenta, eu tenho um lugar e uma função. Eu não sou isso, mas eu exerço isso. Enquanto eu exerço isso, eu tenho formas de relação com as pessoas. Eu tenho essas formas de relação e eu posso agora interagir de um modo mais elevado, eu posso trazer benefício às pessoas de um outro modo.
Mas para isso eu preciso, por exemplo, manifestar uma energia estável. Essa manifestação da energia estável é a essência daquilo que vamos chamar de ação de poder. […]
[Parte 2 na próxima semana]
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