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Trabalho e ação no mundo na visão budista – parte 2

Na continuação deste ensinamento, Lama Padma Samten fala sobre como transformar obstáculos em méritos, fazendo o trabalho deixar de ser algo penoso e se tornar parte da ação de bodisatvas em meio ao mundo


Por
Revisão: Cristiane Schardosim Martins
Edição: Jeanne Callegari
Transcrição: Janaína Araújo

Em 2016, o Lama Padma Samtem deu um ensinamento em São Paulo sobre trabalho e ação no mundo, em que fala sobre como podemos ampliar nossa visão sobre o trabalho e movimentar nossa energia para atuar no mundo de forma mais benéfica. O material abaixo é a segunda parte de um texto retirado desse ensinamento. A primeira parte pode ser lida aqui, e o vídeo com a palestra completa está disponível no canal do Lama, no YouTube.


A ação no mundo tem quatro ações, quatro formas que podemos examinar. A primeira delas é a ação de poder. 

A ação de poder é nós não sermos arrastados pelas coisas e pelas aparências que as coisas apresentam, pelas aparências que as pessoas querem produzir sobre nós. Isso é um ponto crucial. Esse é o goleiro na hora do pênalti. Ele não deveria ficar com medo. Mas isso também é a ação de quem vai bater o pênalti, ele não deveria tremer. Em teoria, é simples. Mas tem hora em que a pessoa treme. Estamos em vários lugares e isso significa não ser arrastado pela aparência que as coisas têm dentro daquela bolha. Muitas vezes eu lembro da situação dos médicos que vão socorrer as pessoas. Eles não deveriam tremer, mas ao mesmo tempo eles têm que estar sensíveis. Se eles não estiverem sensíveis, não tem como socorrer, eles têm que entender aquilo, só que a energia deles está calma.

Outro dia eu estava vendo a gravação da cabine daqueles voos que foram jogados contra as torres de Nova York. A gravação do piloto falando com a torre: “Olha, nós estamos aqui e tem um sequestro. Nós estamos sendo comandados em direção a tais coisas.” Com a voz calma. Só faltou ele dizer: “Eu sei que vou morrer, mas tudo bem, dá um abraço na família.” Alguma coisa assim, mas calmos. 

Então essa é uma habilidade. Quando a pessoa está em dificuldade, mas não se perturba, ela vai até onde é possível dentro daquilo. Então, estamos dentro de bolhas de realidade, estamos dentro de naves que vão até um certo momento, depois vamos transmigrar, mas nesse tempo vamos fazendo isto: nos movemos. Nos movemos trazendo benefício.

Foto: Vidar Nordli Mathisen (Unsplash).

Trazer benefício é a segunda forma de ação (a primeira é não se perturbar). A segunda é se acalmar. Acalmar o ambiente onde estamos. Esse acalmar seria a nossa função. Na segunda-feira, quando chegarem no trabalho, vocês acalmem quem estiver em volta. Esse acalmar não é dizer “Olha, tudo vai ficar bem”.  Porque não podemos garantir. As coisas podem ficar bem ou não. Mas estamos além da situação em que as coisas ficam bem ou mal. Então iremos descobrir dentro disso, alguma coisa que está além da desgraça. Eu acho comovente. Acho que deveríamos estudar cuidadosamente as pessoas que passaram por grandes desgraças e ressurgiram de outro modo. Isso é super importante.

Quando olhamos, por exemplo, esses grandes eventos, essas coisas horríveis que vão acontecendo, nós ficamos preocupados em saber quem atirou, quem matou, quem não sei bem o quê. O aspecto mais importante é saber como aquelas crianças conseguiram viver o dia seguinte. Como aquelas mulheres e aqueles homens foram capazes de se levantar e viver o dia seguinte. Isso é muito extraordinário. Como é que a pessoa é capaz de se refazer? Ela se refaz porque a natureza dela não é atingida. Ela pode ser atingida, mas a natureza da pessoa não é atingida. Ela tem uma liberdade, ela pode se reconstruir. 

Esses abusos horríveis que vão acontecendo na Síria e no Iraque, lugares assim, as pessoas são totalmente violentadas de uma forma horrível. Aí como que a pessoa depois daquilo é capaz de dizer “eu passei por isso, passei por aquilo, passei por aquilo outro”. A pessoa está falando ali. Eu acho comovente. Ouvi alguns relatos, vi filmes sobre isso, a pessoa contando e enquanto ela conta de repente ela tem uma espécie de surto, entra em desespero, tem dificuldade de respirar e começa a passar mal, porque está lembrando do que aconteceu.

Como é que a pessoa é capaz de se refazer? Ela se refaz porque a natureza dela não é atingida

 

Mas as pessoas não estão inteiras, estão meio inteiras, estão mais ou menos, estão se equilibrando. Acho maravilhoso, isso é o aspecto mais profundo. Como é que a pessoa atravessa a desgraça completa e está viva depois? Nem vou dizer viva fisicamente. Ela é capaz de olhar sua vida, refazer sua vida e exercer um movimento. E esse movimento vem da liberdade interna, da liberdade que a pessoa é. A dificuldade que a pessoa tem no meio desse movimento são as lembranças daquilo que passou, não é aquilo que ela é. Onde é que a pessoa tem a força dela? Ela tem a força nesse lugar. Então, por exemplo, acalmar o outro ou a outra é sempre ajudar ele ou ela a se reconectarem com aquilo que está além das identidades que foram ou não foram, das desgraças que foram ou não foram. 

Então tem essa questão, como é que estamos vivos no dia seguinte? Isso é super  comovente. Então isso é acalmar. Acalmar é nos reconectarmos com essa natureza. A pessoa perdeu a família inteira e é a única que sobreviveu, viu todos os outros morrerem. Mas ela está viva! É espantoso que a pessoa vai se reconectar e vai refazer a sua vida. Vai refazer por quê? Porque ela vai juntar o que era? Não, o que era acabou, não tem mais como reconectar.

Com as crianças depois do tsunami no Japão, em Fukushima. A escola era num lugar alto, então, ela não foi varrida pelo tsunami e quando terminaram as aulas ninguém foi buscar elas. E quando elas voltaram pros lugares onde eram as casas delas, não existia mais casa. Não tinha nem pai, nem mãe, nem casa, nem nada. Eventualmente, encontraram algum brinquedo ainda na área e reconheceram. Não tinham mais nada, não tinham mais o mundo delas. Não foi algo do tipo “morreu alguém”. O mundo delas foi varrido. O que acontece na mente de uma criança? Como ela segue no dia seguinte ou naquele mesmo dia? Como é que é isso? Ela segue não pelo que sobrou, segue pelo novo que ela é capaz de construir, pela natureza livre da mente. Então, isso é a nossa solidez. A nossa solidez não está no conjunto de objetos que possamos reunir e proteger. Ela está nessa dimensão.

Essa dimensão na visão budista ultrapassa vida e morte. Então, acalmar é ajudar a reconhecer isso. Se é que existe algum seguro de vida, é esse; o resto é tudo fake. Podem ter certeza. Seguro de vida verdadeiro é “seguro budista” (risos).

Foto: Kelly Sikkema (Unsplash).

Encontramos esse tipo de dimensão. Esse é o argumento geral, não podemos reverter as coisas. As coisas vão surgindo e desaparecendo. Mas dentro disso tem essa natureza. Todos somos sobreviventes, pois se vocês olharem as desgraças do passado, podem começar assim: o ambiente de nossa infância desapareceu, nossos colegas desapareceram. Foi desaparecendo nossa família. Paulatinamente, deixamos de viver com pai, mãe, irmão, e aquilo foi se separando. Nossa vida é sempre encontro e separação. Temos mais pessoas que passaram ao nosso redor, do que pessoas com que convivemos próximo hoje. Aquilo vai se acumulando. Se permitirmos essa dor, vamos ter uma dor crescente. Por isso, é sempre importante fazer metabavana para as pessoas em todas as direções. Não temos controle sobre isso. Então, precisamos dessa ação que é uma ação tranquilizadora: uma ação que acalma as pessoas. 

Irrigar as qualidades

Na sequência, precisamos exercer a ação incrementadora. Eu acho isso maravilhoso. De onde vocês estão, uma vez que vocês não se perturbaram, acalmaram, agora vocês olhem as qualidades das pessoas e tentem irrigar essas qualidades. É como se vocês fossem jardineiros e estivessem cuidando para aquilo dar certo. É como quem olha uma criança, vai cuidando e não desiste, e de repente aquilo começa a crescer. Isso é a ação dos bodisatvas, isso é a nossa ação, isso é bodicita. Essa é a nossa intenção, é isso que  fazemos no mundo, isso é ação no mundo.

Depois tem o que vamos chamar de ação irada. A ação irada é quando vemos alguém fazendo alguma coisa que não vai dar certo e ajudamos a pessoa a não fazer aquilo. Se for o caso, impedimos. O Dalai Lama dá esse exemplo. Ele diz: “Se alguém vai se jogar de algum lugar para morrer e estamos meditando em volta, melhor é se envolver, melhor é impedir.” É natural que dentro da estrutura do carma pensemos “esse é o carma da pessoa e não vou interferir no carma da pessoa”. Na visão budista, o Dalai Lama diz “não ajudar numa hora dessa é parecido com a ação não-virtuosa de matar”. Se você pode impedir e não impede, então você é conivente. Melhor é interagir.

É como se vocês fossem jardineiros e estivessem cuidando para aquilo dar certo. É como quem olha uma criança, vai cuidando e não desiste, e de repente aquilo começa a crescer. Isso é a ação dos bodisatvas, isso é a nossa ação, isso é bodicita

 

Dentro do samsara, não tem ação que não tenha problema. Então fomos lá e impedimos aquilo, mas a pessoa era um grande assassino, depois ela agradece e dali em diante vai continuar matando. Todo mundo achava que se ele se matasse iria resolver o problema, fomos lá e impedimos que ele morresse, agora estamos com um problema. O samsara é todo cheio de contradições, mas ainda assim seguimos as ações. Estamos protegendo alguém, essa pessoa depois se levanta, está forte e faz ações negativas. Isso é assim. Não desanimamos. Não vamos consertar totalmente. Não temos o poder de deixar tudo arrumado, vamos fazendo parte a parte.

Então essa mente ampla que busca não se perturbar, e que busca acalmar os seres, trazer benefícios, incrementar/potencializar as ações positivas, evitar as ações negativas das pessoas, essa é a mente de Sambogakaia. É como se fosse assim: temos o sol que alimenta as plantas o tempo todo, e temos Sambogakaia que alimenta as mentes dos bodisatvas o tempo todo. Então, é como se fossem referenciais que não são de alguém, esses são referenciais que impulsionam coletivamente todo mundo. Vamos indo nessa direção.

A compaixão é como se fosse um sol ou uma estrela no céu. Todo mundo pode acessar. Acessamos, mas não é de ninguém. Podemos receber a luz do sol, mas não conseguimos dominar o sol. Então Sambogakaia é assim: podemos receber a luz da compaixão, mas não conseguimos nos apoderar da compaixão e falar que é nossa. Então isso é Sambogakaia. E a pessoa morre, mas a compaixão segue. Não é incrível isso? Seguem essas qualidades.

Foto: Bethany Legg (Unsplash).

Essas qualidades foram povoadas no céu pelos budas. Eles falaram de compaixão, amor, alegria, equanimidade, generosidade. Povoaram o céu da nossa terra pura com essas qualidades. Essas qualidades irradiam sobre nós. Eles povoaram o céu de terra pura com as quatro formas de ação, que é ação de poder, pacificadora, incrementadora e irada. São formas que podemos utilizar durante nosso tempo de vida como referencial para produzir os movimentos.

Como isso se dá em meio ao samsara, sempre tem algum nível de contradição. Mas esse movimento geral produz a nossa liberação. As contradições são assim, por exemplo, uma árvore que recebe a luz do sol, cresce e manifesta um tronco grande com muitos frutos pode ser cortada justamente porque deu certo. Virou uma árvore frondosa e as pessoas agora olham com um olho especial. A árvore vai dizer: eu que segui a luz do sol agora estou atingida. Mas é assim, o samsara tem essa contradição. Mas essa dimensão sutil que nos alimenta não é derrubada. Quando nós somos derrubados, ela segue. 

Transformando os obstáculos em méritos

Quando nos conectamos com essas dimensões, elas não se apagam quando as coisas condicionadas surgem, quando nossos obstáculos e as dificuldades surgem, mas temos cada vez uma conexão mais clara com esses referenciais. Então, assim vamos transformando o trabalho, que é penoso, em ação dos bodisatvas em meio ao mundo.

Foto: Veeterzy (Unsplash).

Eu acho que a grande descoberta do Buda também, é que na medida em que nos movimentamos em meio ao mundo, aquilo que chamaríamos de dificuldades materiais e financeiras, numa linguagem do mundo econômico que operamos hoje, também se dissolvem, porque enfim nós vamos gerando méritos. A linguagem do mundo é a linguagem dos méritos. Quando as pessoas têm méritos, de um jeito ou de outro andam. Então, o meu conselho é esse, que geremos os méritos, nos aproximemos das dimensões Sambogakaia, dessas qualidades que estão além do mundo causal propriamente.

Que consigamos ultrapassar o funcionamento dos doze elos da originação dependente. Que consigamos viver a partir das qualidades como compaixão, amor, alegria, equanimidade, generosidade, moralidade. As quatro qualidades incomensuráveis e as seis perfeições; as quatro formas de ação no mundo e as cinco sabedorias. Então, tudo isso está em Sambogakaia. Todos esses referenciais estão em Sambogakaia.

Vamos nos aproximando disso, temos o meio hábil de poder manifestar a energia dos cinco elementos em meio ao mundo, trazendo benefício aos seres. Isso vai construir as terras puras. Então, a nossa ação no mundo é a construção das terras puras. Podemos construir isso desde o lugar onde estamos. Não importa que lugar é esse. Deveríamos agradecer o fato que que estamos inseridos dentro do samsara. Porque de dentro do samsara, num lugar específico –  às vezes pequeno e apertado – temos as possibilidades de contato em muitos níveis, e ali mesmo é o melhor lugar para ajudarmos os seres.

Deveríamos agradecer o fato que que estamos inseridos dentro do samsara. Porque de dentro do samsara, num lugar específico –  às vezes pequeno e apertado – temos as possibilidades de contato em muitos níveis, e ali mesmo é o melhor lugar para ajudarmos os seres

 

Está certo que esse é o melhor lugar, mas mais adiante podemos ir para um outro lugar e um outro. Tem uma mobilidade natural, mas não precisamos começar trocando de lugar. Começamos no lugar em que estamos, do jeito que estamos, com as pessoas com quem estamos e tudo deve ir melhorando. A liberação diz respeito a isso: saímos cognitivamente dos doze elos e entramos nas cinco sabedorias, nas quatro qualidades incomensuráveis, nas seis perfeições (cognitivamente, vamos descrever desse modo).

Energia autônoma

Sob o ponto de vista energético, mais sutil, o que acontece é que a nossa energia se desprende das aparências e é capaz de se movimentar a partir desse centro livre, pelo menos de vez em quando. Vamos andar nessa direção, com energia autônoma. 

Vejam que quando chegamos nos lugares e estamos presos ao samsara, ficamos vendo o que o lugar emana sobre nós. Quando estamos operando fora do samsara, mas em meio ao mundo, aspiramos poder derramar sobre esses lugares nossa energia. Não estamos drenando energia dos lugares, estamos derramando energia. Isso é uma grande diferença. Enquanto chegamos nos lugares e aspiramos que os lugares ofereçam algumas coisas para nós, estamos muito próximos do reino dos seres famintos. Quando chegamos nos lugares e derramamos a energia, estamos fechando o reino dos seres famintos totalmente, estamos nos liberando dessa operação. A palavra liberação diz respeito a isso. Nós nos liberamos desses hábitos. Derramamos sobre esses lugares uma energia infinita. Ela não tem origem definida, e é inesgotável. Ela brota de modo inesgotável. Este é o segredo dos bodisatvas: manifestar isso desse modo.

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