Como ser capazes de olhar para esta realidade de sofrimento e violência, reconhecendo que fazemos parte dela?
Ancorada na prática tradicional de sua linhagem de “sustentar o testemunho”, Roshi Joan Halifax escreve um texto honesto, comovente e provocador sobre a Guerra na Ucrânia e nos convida a relembrar nossos votos de bodisatvas e descobrir nosso próprio papel na construção da paz.
Hoje, enquanto testemunhamos em tempo real o que está acontecendo na Ucrânia, provavelmente assim como você, eu estou perfeitamente ciente de que o mundo está em risco; e espero que nós também percebamos que não estamos separados do mundo. Podemos nos perguntar: como ser capazes de olhar para esta realidade de sofrimento e violência, reconhecendo que fazemos parte dela? Qual é a nossa experiência ao testemunhar um humorista que se tornou uma figura global, o presidente Zelensky, se colocar nas ruas da capital da Ucrânia vestindo um colete à prova de balas com outras pessoas? Ou o jovem soldado russo segurando uma arma? E a velha senhora estendendo a mão cheia de sementes de girassol enquanto repreende o soldado russo, ou o jovem ucraniano ajoelhado diante do tanque russo, exemplos de resistência civil não violenta? Qual é a tarefa em nossas mãos e à nossa frente para encararmos a confusão, a delusão e a violência do nosso tempo, em nosso país, em nossas vidas? E como percebemos a transformação da paz no meio disso? E isso tudo em meio à nossa catástrofe climática causada pelos humanos…
O renomado humanista tcheco Vaclav Havel uma vez disse que moralidade significa assumir responsabilidade, não apenas pela sua vida, mas pela vida do mundo. De uma perspectiva budista, isso significa ver as raízes da violência em nosso país e em nós mesmos e, finalmente, entender que não estamos separados de todos os seres e coisas, e que devemos agir de acordo, ou mais violência se espalhará, assim como o Coronavírus se espalhou.
O Budismo, desde o seu início, tem guiado os seus praticantes a reconhecerem a forma mais radical de inclusão: a realização de que todos os seres em todos os reinos, independente de quão imorais e deludidos sejam, podem se liberar do sofrimento e da delusão; e também ver que não estamos separados de qualquer outro ser, seja Putin ou Hitler, ou Sua Santidade o Dalai Lama ou Malala.
Não é necessariamente fácil reconhecer isso. Muitos de nós não nos permitimos ir mais fundo do que nossa personalidade e nossas opiniões para ver e tocar quem realmente somos. Entretanto, budistas e contemplativos de muitas tradições têm sido guiados há muito tempo para descobrir não apenas a interconectividade de todas as coisas, incluindo o mundo natural, mas também a paz que ultrapassa a compreensão, o conhecimento, as ideias, as concepções e as opiniões; a paz que é a base de todos os seres quando voltam para casa em um estado de não alienação, e também a paz que nutre a ação corajosa e libertadora no mundo, sabendo que essa paz não é nem complacente nem agitada.
A partir desta paz sábia surge a ação compassiva. Se nós enxergamos que não estamos separados dos outros, então, não apenas compartilhamos o seu despertar, mas também seu sofrimento. Nesta manhã, enquanto eu escrevo estas palavras, eu não estou separada do medo e da coragem dos ucranianos que estão se colocando nas ruas de suas cidades, mas também não estou separada do sofrimento daqueles que estão atacando a Ucrânia.
Nessa experiência de não separação, agora mesmo, eu também percebo que não estou agitada e nem complacente. Eu estou aberta, aberta para descobrir, estar presente, testemunhar e acolher o máximo que puder com as costas fortes e a frente suave.
A transformação da paz é sobre reconhecer e viver a não-alienação de todos os seres em nossa terra, e viver essa realização como o Bodisatva faz, desfrutando do nascimento e da morte. A transformação da paz e o que aprendi com o trabalho de John Paul Lederach está fundamentado na experiência de conexão e na intimidade radical com o mundo. Trata-se da realização mais básica de que o despertar não é uma experiência individual, mas sim a liberação da intimidade nas nossas relações com e através de todos os seres.
Portanto, o despertar é, em última análise, social, e o budismo, os budistas e os Budas estão a serviço e despertam com e através dos relacionamentos baseados na experiência vivida de uma vida profundamente compartilhada, uma vida dedicada à não violência e que beneficia cada ser e coisa em nosso planeta.
Desse modo, nós, como seres humanos que amamos e sentimos compaixão, não podemos nos esconder da presença do sofrimento pervasivo e da alienação enquanto testemunhamos o que está acontecendo na Ucrânia neste exato momento. Não podemos dar as costas à tendência de transformar o mundo e seus seres em objetos que chamamos de “outro”.
Quando há um “outro”, há um Auschwitz, uma casta de pessoas que não vamos tocar, uma mulher devastada e estuprada, uma floresta desmatada, uma criança abusada e abandonada, um homem atrás das grades medicado desconectado de sua mente e coração, uma abandonada aldeia de mulheres velhas cujos homens todos morreram na guerra, um jovem da Rússia com medo e ódio nos olhos com uma arma na mão rondando uma rua em Kyiv.
Os votos básicos que nós fazemos como budistas nos lembram que não existe um “outro”. As práticas mais fundamentais que todas as escolas do budismo realizam apontam para o fato de que não existe um “outro”. Os ensinamentos do Buda nos dizem que não existe um “outro”. Ainda assim, nós vivemos em um mundo povoado por aqueles que estão sujeitos às formas mais profundas de alienação de sua própria sabedoria natural, um mundo onde comunidades inteiras veem “outros” que devem ser abolidos, liquidados, eliminados, estuprados, devastados, cortados e baleados.
Hoje, mais do que em qualquer outro momento da história humana, nós estamos vivendo em um tipo de familiaridade e imediatismo que pode destruir ou libertar. Nossas armas podem encontrar seus alvos em minutos, nossas doenças podem se espalhar como um incêndio em uma floresta seca e nossas delusões podem contaminar rapidamente as mentes de milhões. Como o ativista e sociólogo George Lakey nos lembra: a violência não pode nos manter seguros.
Ao mesmo tempo, no mesmo instante, nós devemos chegar corajosamente até onde o sofrimento é mais agudo, enviando a nossa voz, nos posicionando e trazendo paz através do fortalecimento dos nossos valores, visões e comportamentos que se baseiam nos grandes tesouros da compaixão e da sabedoria.
Nós podemos nutrir a paz através da transformação de nossas próprias vidas. E, ao mesmo tempo, nós devemos trabalhar ativamente pela não violência com todos e pelo diálogo profundo e verdadeiro com respeito e apreciação das diferenças e da pluralidade. E nós devemos assumir a responsabilidade. Temos que perguntar qual é nosso papel e o papel de nosso país na alimentação do demônio do ódio e da violência?
Todos nós vivemos sob a pele uns dos outros, e agora, mais do que nunca, é funcionalmente intolerável afastar-se do que está acontecendo na Ucrânia e em muitas outras partes do nosso mundo, seja na Ucrânia, no Afeganistão ou nas ruas de Chicago. Como budistas, compartilhamos a aspiração comum de despertar da nossa própria confusão, ganância e raiva para libertar os outros do sofrimento. Os votos do Bodisatva, no coração da tradição Mahayana, são, no mínimo, uma expressão poderosa do que tenho chamado de “esperança sábia” e esperança contra todas as expectativas. Esse tipo de esperança é de um tipo que vence o medo e o tempo. Se não esta, que outra visão nos guiaria ao entoarmos: As criações são incontáveis, eu faço o voto de libertá-las. As delusões são inexauríveis, eu faço o voto de transformá-las. A realidade é indelimitada, eu faço o voto de percebê-la. O caminho do despertar é insuperável, eu faço o voto de corporificá-lo.
Que possamos realizar esses votos agora em palavras e ações…
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3 Comentários
Muito grato por compartilhar e me relembrar que o “outro”, sou eu!
Um excelente texto sobre a Ucrânia! Que possamos fomentar e desenvolver a paz nos corações de todos os seres!
É muito triste o que está acontecendo na Ucrânia!